Arquivo da tag: crise democrática

Trump em guerra

Há uma guerra instalada no mundo. É a segunda grande guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais. 

O eixo autocrático é composto por autocracias (fechadas e eleitorais) e regimes eleitorais parasitados por governos populistas. De qualquer modo, o eixo autocrático usa o populismo como sua principal arma.

Mas não há apenas um tipo de autocracia (fechada ou eleitoral) no eixo autocrático e sim dois tipos: as autocracias ditas de direita ou de extrema-direita e as autocracias ditas de esquerda (ou socialistas). 

E não há apenas um tipo de populismo e sim dois tipos: o nacional-populismo ou populismo-autoritário (dito de direita ou extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda). 

Então, tudo isso significa que há duas alas em disputa no eixo autocrático. A ALA A versus a ALA B. Vejamos.

ALA A

(Apenas alguns exemplos. A classificação de regimes é a do V-Dem 2025)

AUTOCRACIAS E REGIMES ELEITORAIS NÃO-AUTORITÁRIOS PARASITADOS POR GOVERNOS POPULISTAS DITOS DE DIREITA (OU EXTREMA-DIREITA)

Hungria = Autocracia eleitoral: Orbán no governo

Turquia = Autocracia eleitoral: Erdogan no governo

El Salvador = Autocracia eleitoral: Bukele no governo

Índia = Autocracia eleitoral: Modi no governo – Posição ainda incerta

Itália = Democracia liberal: Meloni no governo – Posição ainda incerta

EUA = Democracia liberal: Trump no governo

Eslováquia = Democracia eleitoral: Fico no governo

Argentina = Democracia eleitoral: Milei no governo – Posição ainda incerta

Israel = Democracia eleitoral: Netanyahu no governo

FORÇAS NACIONAL-POPULISTAS DITAS DE DIREITA (OU EXTREMA-DIREITA) FORA DO GOVERNO

França = Democracia liberal: Le Pen fora do governo

Alemanha = Democracia liberal: Weidel fora do governo

Reino Unido = Democracia liberal: Farage fora do governo

Holanda = Democracia liberal: Wilders fora do governo

Espanha = Democracia liberal: Abascal fora do governo

Portugal = Democracia eleitoral: Ventura fora do governo

Finlândia = Democracia liberal: Purra fora do governo

Brasil = Democracia eleitoral: Bolsonaro fora do governo

ALA B

(Apenas alguns exemplos. A classificação de regimes é a do V-Dem 2025 – com exceção da África do Sul)

AUTOCRACIAS (FECHADAS E ELEITORAIS) DITAS DE ESQUERDA (OU SOCIALISTAS)

China = Autocracia fechada: Xi Jinping no governo

Coreia do Norte = Autocracia fechada: Kim no governo

Laos = Autocracia fechada: Bouphavanh no governo

Vietnam = Autocracia fechada: Chính no governo

Angola = Autocracia eleitoral: Lourenço no governo

Cuba = Autocracia fechada: Diáz-Canel no governo

Venezuela = Autocracia eleitoral: Maduro no governo

Nicarágua = Autocracia eleitoral: Ortega no governo

REGIMES AUTORITÁRIOS APOIADOS PELA ESQUERDA (E ÀS VEZES PELA DIREITA)

Irã e seus braços terroristas = Autocracia eleitoral: Khamenei (e IRGC) no governo – apoiados pela esquerda

Rússia = Autocracia eleitoral: Putin no governo – apoiado pela esquerda e, às vezes, pela direita ou extrema-direita

Bielorrússia = Autocracia eleitoral: Lukashenko no governo – apoiado pela esquerda e, às vezes, pela direita ou extrema-direita

Iêmen, EAU, Egito e outras ditaduras islâmicas – apoiadas pela esquerda

Cazaquistão, Uzbequistão e outras ditaduras asiáticas sob controle da Rússia ou da China

Congo DR, Nigéria, Uganda e outras ditaduras africanas sob controle da Rússia ou da China

REGIMES NÃO-AUTORITÁRIOS E NÃO-LIBERAIS DITOS DE ESQUERDA (E ALINHADOS AO EIXO AUTOCRÁTICO) 

México = Democracia eleitoral: Claudia no governo

Honduras = Democracia eleitoral: Xiomara no governo

Colômbia = Democracia eleitoral: Petro no governo

Bolívia = Democracia eleitoral: Arce no governo

Brasil = Democracia eleitoral: Lula no governo

África do Sul = Democracia eleitoral: Ramaphosa no governo

Indonésia = Autocracia eleitoral: Subianto no governo – é a única exceção de regime autoritário neste conjunto

BRICS, UM BOM EXEMPLO

O BRICS (ou Sul Global) é uma articulação política disfarçada de bloco econômico sob influência predominante da ALA B.

Dos 11 membros permanentes (plenos) do BRICS, 9 (82%) são ditaduras que se alinham:

Brasil – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Rússia – Autocracia eleitoral | ALA B

Índia – Autocracia eleitoral | ALA A (mas a posição ainda é incerta)

China – Autocracia fechada | ALA B

África do Sul – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Egito (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral | ALA B (vulnerável à ALA A)

Etiópia (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral | ALA B

Irã (aderiu em 2024) – Autocracia eleitoral | ALA B 

Emirados Árabes Unidos (aderiu em 2024) – Autocracia fechada | ALA B (vulnerável à ALA A)

Indonésia (aderiu em janeiro de 2025) – Autocracia eleitoral | ALA B

Arábia Saudita – Autocracia fechada – Ainda não decidiu se permanece no grupo | ALA A

Dos 10 países parceiros do BRICS, 8 (80%) são ditaduras que se alinham:

Bielorrússia – Autocracia eleitoral | ALA B

Bolívia – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Cazaquistão – Autocracia eleitoral | ALA B

Cuba – Autocracia fechada | ALA B

Malásia – Democracia eleitoral (não-liberal) | ALA B

Nigéria (confirmada como parceira em 17 de janeiro de 2025) – Autocracia eleitoral | ALA B

Tailândia – Autocracia eleitoral | ALA B

Uganda – Autocracia eleitoral | ALA B

Uzbequistão – Autocracia fechada | ALA B

Vietnã (o último confirmado) – Autocracia fechada | ALA B

Ou seja, o BRICS está claramente no campo da esquerda (ou sob influência predominante da esquerda) – ALA B. Por isso virou alvo da guerra de Trump.

A GUERRA DE TRUMP

Trump – sob influência MAGA ou realizando seu propósito – quer ser o líder global de um eixo autocrático populista de extrema-direita – a ALA A. Mas a parte mais ativa (e poderosa) do eixo autocrático realmente existente, no comando de governos, é de esquerda ou mais próxima da esquerda, ou apoiada pela esquerda (considerando que, politicamente, a Rússia, a Bielorrússia e o Irã, que do ponto de vista interno poderiam ser considerados de direita, do ponto de vista externo estão alinhados à esquerda) – a ALA B.

Numa conjuntura de guerra contra a ala esquerda do eixo autocrático (sobretudo a China), qualquer um na posição de Trump – ou seja, nacional-populista, autoritário, iliberal e antidemocrático, de extrema-direita – tomaria atitudes ainda mais duras contra Cuba, Venezuela, Nicarágua, México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul etc. pelo fato de esses regimes de esquerda ou pertencerem ao eixo autocrático (caso dos três primeiros) ou estarem se alinhando a esse eixo (caso dos seis últimos). Tudo, porém, na ALA B. 

O Brasil, em especial, foi escolhido por Trump por alguns motivos. O primeiro deles é o processo contra Bolsonaro, com o qual se identifica; e contra os bolsonaristas, que são aliados do MAGA. 

O segundo é a perseguição movida por Alexandre de Moraes (e seus colegas do STF) às plataformas americanas de mídias sociais (em especial as medidas censórias contra o X, mas não só) que se alinharam à ALA A. O governo americano sabe que os poderes no Brasil são formalmente independentes, mas não acredita nisso diante da evidência de o STF estar atuando em conluio com o governo. Aliás, Trump não acredita nessa independência do judiciário nem nos Estados Unidos. 

O terceiro motivo é a saliência de Lula em aparecer no BRICS como campeão da luta contra o imperialismo norte-americano, para se cacifar como o grande líder emergente do Sul Global. Lula, de certo modo, “cavou a falta” para aumentar sua popularidade cadente na base da patriotada fácil e da exploração populista do nacionalismo contra o grande satã. 

O fator mais decisivo, porém, foi o alinhamento do governo Lula à ALA B do eixo autocrático. Setores da Casa Branca avaliam que o Brasil, se já não é, pode se converter em braço da China (e da ALA B) nas Américas. Então é guerra.

Mas Trump não deseja a guerra quente (uma terceira guerra mundial nos moldes da primeira e da segunda). A sua guerra é uma guerra fria, baseada na ameaça e na imposição de sanções. Ele quer um eterno ‘estado de guerra’, de preferência sem derramamento de sangue.

Às vezes parece que Trump gostaria de um mundo que evocasse o 1984 de George Orwell. Três grandes potências autocráticas – Oceânia (EUA), Eurásia (Rússia) e Lestásia (China) – regulariam adversarialmente todo o globo (em guerras regionais quentes e em guerras que não seriam consumadas como conflitos violentos, algumas até de mentirinha – como pretexto para autocratizar internamente o próprio regime americano, pois os outros dois já são autocracias). Um mundo em que não haverá mais instituições multilaterais reguladoras, pois a força faz a lei. Esse mundo, entretanto, não é possível – mas o pretexto é possível. No final do dia, Trump espera não propriamente ser imperador do mundo (como disse Lula) e sim imperador de um novo – e tenebroso – Estados Unidos da América Autocrática. É claro que, se os EUA se transformarem em uma autocracia intervencionista (mesmo que apenas em termos de sanções econômicas e disposições restritivas geopolíticas sustentadas por poderio militar), todas as democracias liberais estarão ameaçadas de morte pela ALA A. Assim como também estarão se houver o predomínio da ALA B.

Por isso não pode analisar a questão como um FLA X FLU. Interessa igualmente à ALA A e à ALA B instaurar um clima de guerra (causando internamente polarização e divisão nas sociedades nacionais). É isso que destrói a democracia e não a vitória de um lado ou do seu oposto. Do ponto de vista das democracias liberais ambos são ameaças, porque ambos – cada qual a seu modo – são iliberais. Por isso Putin financia tanto Le Pen (da ALA A) quanto, por baixo do pano, incentiva Melénchon (da ALA B). E Trump, ao mesmo tempo em que apoia Putin, o ameaça com sanções. E sanciona a Índia (que pende mais para a ALA A) com tarifas semelhantes às aplicadas aos países cujos regimes estão alinhados à ALA B. A guerra fria permanente é a chave.

Ou é guerra ou não é guerra. Guerra fria é guerra. Se é guerra, de qualquer modo, a autocracia (seja dita de direita ou de esquerda) está vencendo; quer dizer, a democracia está perdendo. A guerra – não quem a promove – é a autocracia.

Foto: Sérgio Lima/Poder360

A complexidade da política

A política praticada como continuação da guerra por outros meios está sujeita a condições infensas a julgamentos morais de partida. Isso não quer dizer que os democratas devam abrir mão dos seus princípios morais. Mas quer dizer que, na política degenerada como luta contra inimigos internos ou externos (quer dizer, guerra), raramente os atores modulam seus impulsos e ações a partir de imperativos morais.

A política (essa política e qualquer política) lida com correlações complexas de forças, em configurações mutantes que são, em si, muitas vezes, contraditórias.

É o que aconteceu em Atenas, na época da invenção da primeira democracia: a intervenção dos autocratas espartanos em Atenas (inimigos figadais da democracia) acabou sendo decisiva para a deposição do tirano Hípias, sem a qual a reforma distrital de Clístenes (em 509 a.C.) não teria prosperado. E se ela não tivesse prosperado jamais teríamos ouvido a palavra democracia.

Vejamos, porém, dois exemplos mais recentes.

Exemplo 1 – O “centrão” no Brasil

No Brasil, se não fosse o chamado “centrão”, em boa parte fisiológico e corrupto, nossa democracia estaria em estado muito mais avançado de erosão (de vez que aquele “pântano” congressual resistiu às tentativas golpistas de Bolsonaro, assim como continua resistindo às investidas hegemonistas de Lula).

Por que? Ora, porque o “centrão” vive, por assim dizer, da política como negócio (é o seu ganha-pão) e não quer que uma força golpista consiga – alterando a natureza do regime – abolir ou restringir esse livre “mercado”. E também não quer que um “monopólio” se erija, com a prevalência de uma força hegemonista.

Resultado. No jogo político o “centrão” atua – objetivamente – como uma força democrática, mesmo que seus integrantes não sejam democratas.

Exemplo 2 – A ascensão mundial da extrema-direita

No mundo todo, se não fosse a ascensão de uma extrema-direita antissistema, o eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã et coetera) já teria conquistado um número muito maior de regimes eleitorais não-liberais, ensejando que governos populistas não-autoritários se tornem hegemônicos. É o caso dos governos populistas de esquerda, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, etc. Isso para não falar dos governos populistas autoritários já alinhados ao eixo autocrático, como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Angola.

Cabe esclarecer que o eixo autocrático – com exceção de Bharat (a nova Índia nacional-populista de Modi), cuja posição ainda é incerta, e também de Hungria, Turquia, El Salvador, Israel, Itália, EUA (a partir de 20/01/2025) e, talvez, Eslováquia – é composto, majoritariamente, por países que não são governados por forças políticas de extrema-direita ou de direita. Tirando Rússia e Bielorrússia (que não podem ser classificados adequadamente pelo esquema anacrônico esquerda x direita), temos China, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Vietnam, Laos, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola etc. – ou seja, a imensa maioria de esquerda ou de regimes mais simpáticos à esquerda do que à direita. Forças populistas de extrema-direita ameaçam, ainda de fora dos governos, as democracias: Salvini (mais extremo do que Meloni, na Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia) – nenhum desses está chefiando governos em 2025.

A esquerda quer esconder tudo isso dizendo que o principal (ou único) inimigo da democracia é a “internacional fascista” (que congrega seis, provavelmente oito ou, no máximo, dez governos). Sim, os regimes dominados por governos de extrema-direita são um perigo para as democracias, mas não são a única ameaça, nem a principal.

Forças de extrema-direita – objetivamente – impedem que governos populistas de esquerda consigam conquistar hegemonia sobre as sociedades que dominam. É contraditório porque essas forças pertencem ao eixo autocrático ou estão alinhadas a uma parte dele. Mas, por outro lado, sem a polarização que elas ensejam com as forças políticas populistas de esquerda, essas últimas também não se afirmariam (por exemplo, no Brasil, sem o bolsonarismo o lulopetismo perderia força para continuar se prorrogando no governo). Pode-se dizer que a polarização e a divisão que elas instalam nas sociedades é um elemento central da netwar atual, ou seja, da segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais.

Entretanto, em termos gerais, para o eixo autocrático, a divisão das sociedades democráticas é mais importante do que o predomínio de uma força política populista de esquerda ou de direita. Porque seu objetivo último é exterminar as democracias liberais, o que começa por cindir as sociedades democráticas. Mesmo assim, em algumas circunstâncias, as forças de extrema-direita (nacional-populistas ou populistas-autoritárias) impedem (ou dificultam) que as forças populistas de esquerda empalmem o poder alterando por dentro o “DNA” da democracia.

Isso não quer dizer que as forças populistas de extrema-direita sejam democráticas. Pelo contrário, elas são autocráticas. Mas, repetindo, quer dizer que, em certas circunstâncias, elas impedem que forças populistas de esquerda, que também não são democráticas, conquistem hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado por elas aparelhado, delongando-se no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, a natureza do regime democrático. Ainda que a polarização e a divisão das sociedades, introduzidas pelo choque entre dois populismos, impeçam que os regimes parasitados ascendam à condição de democracia liberal ou plena. Ou seja, impeçam (ou dificultem) a emergência de uma força política democrática-liberal capaz de fazer isso, quer dizer, de operar a transição de um regime eleitoral (uma democracia defeituosa ou apenas eleitoral) para uma democracia liberal.

Para entender essa complicada configuração é preciso perceber que as forças políticas de extrema-direita não são propriamente uma alternativa estratégica (positiva). A rigor elas não têm estratégia a não ser destruir o sistema tal como está configurado e funciona. Sua ascensão corresponde a uma revolução (conquanto reacionária) e só é possível porque a democracia representativa entrou em crise. E porque, como causa e ao mesmo tempo em consequência desse declínio democrático, o número de agentes democráticos decaiu para níveis subótimos, insuficientes para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.

Mas não fosse o choque que elas provocam nas democracias em crise, o sistema tenderia a se reciclar, passando a se estruturar e a funcionar em estado larvar, mais imune às mudanças exigidas pela continuidade do processo de democratização. Sem um choque desse tipo as democracias que não sucumbissem à autocratização, poderiam paralisar seus processos de democratização.

O establishment democrático “tradicional” (se se puder falar assim) não está preparado para, por si só, sair da crise da democracia ou superá-la mantendo-se como está (na base do “conservadorismo democrático”: da defesa das velhas instituições, da preservação dos atuais mecanismos de freios e contrapesos, da vigência de direitos políticos e liberdades civis como até então foram concebidos e praticados). Em poucas palavras: a democracia que temos não está mais conseguindo configurar ambientes favoráveis à emergência das democracias que queremos.

Essa é a crise. O establishment democrático tradicional, deixado a si mesmo, tende a se manter conservadoramente. Em certo sentido, a democracia não está dando conta de defender a democracia. Porque defender a democracia não é apenas mantê-la e sim seguir adiante, o que nos remete à metáfora da bicicleta (parou de pedalar cai) – o que já é assunto para outro artigo.

Reconhecer que a ascensão da extrema-direita é uma revoluçãonão tem a ver com aprovar esse movimento avesso à democracia liberal e contrário aos direitos (e valores) humanos (ou humanizantes). Reconhecer que as forças populistas de esquerda que se opõem à extrema-direita não são democráticas por causa disso – nem menos perigosas para as democracias liberais – é fundamental para defender a democracia, sobretudo se essas forças se alinham ao eixo autocrático.

E, mesmo sabendo disso, algumas vezes os democratas têm que apoiar um candidato de uma força populista (contra-liberal) de esquerda para evitar a chegada ao governo ou a permanência nele de um candidato de uma força populista (iliberal) de extrema-direita. Foi o que aconteceu no Brasil em 2022, na opção por Lula para impedir a reeleição de Bolsonaro. Não que Lula (hegemonista), no médio ou longo prazos, fosse menos perigoso para a democracia liberal do que Bolsonaro (golpista). Mas a conquista de hegemonia é um processo longo, que dá mais tempo para as forças democráticas-liberais se organizarem do que um golpe de Estado, fulminante no curto prazo (se tivesse sido bem-sucedido – o que, no caso da tentativa bolsonarista ter se concretizado, é para lá de duvidoso).

Eis a complexidade da política. Os democratas não podem operar apenas com as forças boas. É impossível fazer política sem os adversários ou, no caso da política degenerada como guerra, sem os inimigos. Pessoas que têm uma apreensão religiosa da política (mesmo que seja a de uma religião laica como o marxismo) e pessoas que querem tomar a política seguindo imperativos morais, na partida e na chegada, tentando conformá-la à ética, dificilmente entenderão isso.