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Foto: Mustafa Hassona/Anadolu Agency via Getty Images

Não há solução no curto prazo para o conflito israelo-palestino

A defesa de Israel ao ataque terrorista do Hamas – atuando como ponta de lança do eixo autocrático (Rússia, Irã, Síria e outras tiranias do Oriente Médio, com o apoio da China e de governos populistas da Europa, América Latina e África, reunidos no BRICS e no Sul Global) em guerra (a segunda grande guerra fria) contra as democracias liberais – é legítima, independentemente de seu governo atual ser ou não ser democrático. Qualquer governo de Israel – autocrático ou democrático – teria de reagir, contra-atacando o Hamas, sob pena de deixar a sociedade israelense vulnerável a novos ataques terroristas. Todo problema aqui é como reagir.

O governo Netanyahu não é democrático. É populista-autoritário, abrigando muitos tarados supremacistas. Entretanto, o regime político de Israel é uma democracia liberal segundo todos os institutos que monitoram a democracia no mundo (V-Dem, Freedom House, The Economist Intelligence Unit etc.).

Ao reagir declarando imediatamente guerra total ao Hamas, bombardeando e invadindo militarmente o território de Gaza com efeitos colaterais inevitáveis, como a morte de civis não-combatentes, passíveis de serem explorados cinematograficamente, o governo Netanyahu caiu numa armadilha, talvez uma armadilha na qual não poderia não cair – mas caiu. De sorte que Israel perdeu a guerra de propaganda – uma guerra suja, com a divulgação diária, feita exclusivamente pelo Hamas, de proporções falsificadas de mulheres e crianças mortas em relação ao número total de mortos de palestinos em Gaza. Além disso, ficou vulnerável a acusações infundadas de terrorismo e genocídio.

Perdida a guerra da propaganda, o problema é o que fazer daqui para frente. A guerra quente, na sua forma atual, não pode ser eterna. Em algum momento deverá haver cessação das hostilidades generalizadas. Mas o governo Netanyahu dificulta – e no limite inviabiliza – qualquer negociação de paz. Por isso precisa ser derrubado pelos próprios democratas israelenses, por meio dos mecanismos legais disponíveis em seu regime democrático. De preferência, isso não deve ser feito só depois da fase atual da guerra (quente) e sim o quanto antes. Após a queda do governo Bibi, uma nova coalizão democrática no governo de Israel deve buscar ativamente a paz, entrando em negociação com as potências democráticas e com os países da região que não apoiam o Hamas. Fará parte necessariamente dessa negociação parar e começar a remover os assentamentos judaicos na Cisjordânia (ou negociar áreas ocupadas por troca de terras em outros lugares – quando isso for possível) e suspender a presença ostensiva de forças militares e policiais naquele território.

O Hamas, a Jihad Islâmica, a Frente de Libertação da Palestina, o Hezbollah e as milícias xiitas que atuam na Síria, no Iraque e no Iêmem sob o comando do Irã, não são players válidos nas relações internacionais porque são organizações terroristas. Com eles não se pode contar para a ereção de um Estado palestino que, ao lado do Estado de Israel, possa estabelecer a paz na região. Um Estado comandado por terroristas será um Estado fora da lei, um Estado de bandidos que viverá fustigando Israel, e não um Estado de direito – nem mesmo será um Estado autocrático que, por razões de realpolitik, não queira atacar Israel.

Gaza (visível) não é o Hamas, mas o Hamas é Gaza (invisível) porque está profundamente enraizado na sociedade palestina que ali vive a ponto de ter conseguido transformar o território da Faixa em um laboratório de experimentos exterministas e em uma fábrica de terroristas que visam a aniquilar Israel. O terrorismo em Gaza já se reproduz intergeracionalmente por meio das famílias, das escolas, das mesquitas e de entidades civis com a ajuda de militantes autocráticos homiziados em agências da ONU e em organizações humanitárias internacionais, com financiamento e apoio do Irã, da Turquia, sobretudo do Catar, e de outras autocracias da região.

A estratégia de matar os milhares de militantes do Hamas um-a-um é inócua no curto prazo. Cada líder morto será imediatamente substituído por outro líder. Até agora, pelos números fornecidos pelas próprias Forças de Defesa de Israel, só foram mortos 25% do presumível total de combatentes do Hamas. O Hamas é uma rede extensa e profunda. Israel não dispõe do tempo político necessário para consumar a operação de eliminar todos os nodos da rede (que perfazem cerca de 2% da população de Gaza) um-a-um, o que exigiria – numa avaliação otimista – oito meses de guerra na sua forma atual. Mas o Hamas ainda pode ser muito mais numeroso do que se estima (se considerarmos jovens menores de idade e simpatizantes que estão entrando continuamente no combate).

Por outro lado, matar no atacado os militantes e simpatizantes do Hamas para extinguí-lo completamente, exigiria arrasar a terra de Gaza eliminando boa parte da população palestina. Isso não foi feito até agora por Israel porque seria inaceitável. Pelos números (sempre falsificados) de mortos divulgados pelo próprio Hamas, morreram cerca de 1% de civis palestinos (incluindo combatentes do Hamas – que são considerados civis).

A rede de túneis que abriga a infra-estrutura bélica do Hamas pode ser destruida, mas a rede de túneis não é nada diante da rede de pessoas. Uma rede não é a coleção de seu nodos. Para eliminar o Hamas seria necessário quebrar as conexões entre os nodos dessa rede e cortar os atalhos entre os seus clusters (dentro e fora do território de Gaza). Isso não pode ser feito no curto prazo.

A única saída (provisória) é uma negociação bancada pelas potências democráticas em aliança realista com autocracias do Oriente Médio que não visam a destruição de Israel para impor um novo governo em Gaza e na Cisjordânia sem a participação de organizações terroristas – o embrião de um Estado palestino – que mantenha uma coexistência não-beligerante vigiada com o Estado de Israel.

Nos curto e médio prazos é altamente improvável que esse novo Estado palestino seja um Estado democrático de direito. Será mais uma ditadura, entre as quatorze que já existem no Oriente Médio (a única democracia da região seguirá sendo Israel por muito tempo). Uma saída mais definitiva talvez possa ser alcançada no tempo de uma geração, se as crianças palestinas que ainda vão nascer e as de hoje (menores de 12 anos) deixarem de ser doutrinadas por organizações do jihadismo ofensivo islâmico e por organismos internacionais disfarçados de humanitários.

Navalny: o sopro de liberdade que desafia Putin

Um homem foi enterrado na Rússia. Chamava-se Alexei Navalny. Em circunstâncias adversas, sob frio intenso, sob ameaça de retaliações e prisões, uma multidão esteve presente nos rituais fúnebres para as derradeiras homenagens àquele que denunciou a corrupção e a tirania do Kremlin e que ousou desafiar o poder de Vladimir Putin, pagando o seu ato de coragem com a própria vida.

A morte do opositor era esperada. Putin já o havia mandado envenenar em 2020. O filme “Navalny”, produzido pela CNN e que, em 2023, ganhou o Oscar de melhor documentário, traz os detalhes dessa tentativa de assassinato, contextualizando o episódio do envenenamento e mostrando os bastidores da vida do político até a sua prisão.

Mesmo sabendo que certamente seria preso e que sua vida estaria novamente em risco, Navalny tomou a decisão de deixar a Alemanha e retornar à Rússia tão logo sua saúde foi reestabelecida. Ele foi detido assim que desembarcou em Moscou e, durante três anos, esteve submetido a frio, fome e a um confinamento opressivo na colônia “lobo polar”, uma remota e inacessível prisão, localizado na Sibéria, onde a temperatura se aproxima de -40°C no inverno.

A sua prisão provocou uma onda de protestos, seguida de dura repressão, com cerca de 1600 pessoas detidas. Os russos foram corajosos, naquela ocasião, e também neste 1 de março de 2024, quando cantaram, em frente à igreja onde seu corpo foi sepultado: “Você não teve medo e nós não temos medo”.

De que lado estamos?

O mundo livre está cada dia mais preocupado com Putin. O tirano já deu provas de que seu método é a crueldade, tanto na política externa quanto na política interna. A invasão da Ucrâniae o modo com Navalny e seus outros opositores sucumbiram, expõe o caráter reprovável do chefe do Kremlin e faz um chamamento à consciência daqueles que buscam se posicionar diante dos conflitos bélicos atuais e das ideologias.

É preciso reavaliar posicionamentos políticos a partir da recuperação de princípios básicos, mesmo que o evento em questão não nos toque particularmente enquanto brasileiros. Somos seres humanos, não somos? Precisamos, pois, repudiar a cumplicidade com ditadores que desprezam os direitos humanos e cujas ações dizem respeito mais à tentativa de manutenção de um poder do que à salvaguarda do indivíduo diante dele.

O mundo se posiciona hoje em torno de duas tendências díspares: uma tendência autoritária e autocrática e uma tendência democrática e liberal. Pela forma como os políticos se movimentam em torno das figuras proeminentes desse mundo em conflito podemos avaliar o teor de suas próprias tendências.

Por que o nosso país não se posiciona conforme as democracias consolidadas do Ocidente, mas apoia em discursos e em gestos as tiranias em voga e em vias de formação?

É vergonhoso e deplorável o alinhamento do Brasil com a Rússia e o cinismo com que o presidente Lula tratou a morte do principal opositor do autocrata russo, ao comentar que a morte estava sob suspeita e que era preciso fazer uma investigação para dizer que “o cara morreu disso ou daquilo”.

A liberdade criadora de Alexei Navalny

Em artigo publicado no jornal suíço Neue Zürcher Zeitung, Andreas Rüesch escreve que o destino de Alexei Navalny revela muito sobre a Rússia de hoje. Putin, escreve o ex-correspondente no NZZ em Moscou, “garantiu o seu lugar nos livros de história como o tirano que mergulhou a Rússia na ruína com a guerra megalomaníaca contra a Ucrânia. Inextricavelmente ligados a isto estão os crimes contra os adversários como Navalny. O seu caso cristaliza o mal que está corroendo a Rússia. O país está consumido pela corrupção e a sua elite está enriquecendo a um nível que teria sido impensável mesmo nos tempos soviéticos”.

O artigo segue explicando que o país está sufocado, perdendo os seus melhores talentos e afirma que “a Rússia precisa, como o ar para respirar, de uma capacidade de organização como a de Navalny.” O ar que Navalny respirava e que ele soprou na Rússia chama-se liberdade.

Todos os países deveriam orgulhar-se de um conjunto criativo de energia como Alexei Navalny”, escreveu Andreas Rüesch. “Ele não era um político comum; ele revolucionou o trabalho da oposição com sua originalidade, novos métodos de pesquisa, talento organizacional e uma refrescante dose de humor. Além disso, ele era acessível no contato pessoal, com graça e sem pedantismo. Navalny tinha carisma, uma qualidade que falta a toda a equipe do Kremlin. Pessoas como ele vão longe em países livres. Na Rússia eles estão morrendo”.

Testemunho x ideologia

Os que querem ver a Rússia como o império glorioso de outros tempos não entenderam ainda que a verdadeira grandeza é a do espírito e que a grandeza do espírito humano só se expressa na liberdade. A nação que a sufoca perece em vez de se engrandecer.

Milhares de russos afrontaram Putin e prestaram as últimas homenagens a Alexei Navalny, expressando deferência àquele que pereceu por um ideal e que fez ressurgir nos jovens a coragem de lutar para ser livre.

Nenhum tirano é capaz de sufocar o desejo humano por justiça e liberdade e nenhum poder temporal é capaz de arrefecer o ânimo de luta política daqueles que são movidos por verdadeiros valores.

Para aqueles que estiveram presentes no velório, Navalny não era apenas um corpo inerte e inanimado, ele representava a coragem e o vigor daqueles que compreendem que a justiça só se conquista com valor e testemunho.

Testemunhar é agir de acordo com a verdade apregoada; é fazer a vida dar sinal do discurso e modular o discurso em consonância com a vida. Testemunhar é assumir os riscos das escolhas e aceitar a dor das consequências; é elevar-se além do raciocínio pragmático do autointeresse e das contradições das ideologias.

Ideologias não induzem ao testemunho, mas ao fanatismo. A ideologia conduz a uma ação cega, obnubilada, obcecada e, por vezes, cruel, em nome de uma crença não refletida, mal assimilada e descolada da verdadeira natureza das coisas.

O testemunho, pelo contrário, conduz à superação do fanatismo e do egoísmo porque, estando em consonância com a verdade, abre espaços de reflexão mais profundos, mais espiritualizados, mais sublimes. O verdadeiro testemunho é aquele que se eleva aos verdadeiros valores. O ato heroico não se coaduna com a mediocridade nem com a vilania.

O verdadeiro homem e o falso líder

Não temos mais tempo para falsos heróis ou falsos profetas. Nossa época clama por homens reais, como Alexei Navalny, cuja autenticidade inseriu valor na ação política, reunindo, com o seu sopro de liberdade criadora, as vontades dispersas e difusas.

Homens reais e autênticos são mais veneráveis que falsos mitos que se autoproclamam líderes e conduzem as massas. A diferença é sutil. Mas aqueles que estiverem atentos haverão de reconhecer e separar o verdadeiro homem do falso líder. Os nossos falsos líderes estão hoje ao lado do tirano que assassinou um verdadeiro homem.

Democracia e Investimento

O investimento direto estrangeiro se tornou importante diante de um mundo cada vez mais conectado e com economias interdependentes. Além de financiar ações seminais em áreas como inovação e desenvolvimento, é responsável por impulsionar setores essenciais da economia na construção de comunidades com enorme diferencial competitivo. Isto se torna ainda mais importante em países como o Brasil, que possuem forte déficit de poupança interna e se tornaram dependentes de capital externo para realização de investimentos

Ao mesmo tempo, com um Estado que direciona 92% dos recursos do setor público para custeio, fica claro que o governo brasileiro possui capacidade estatal de investimento limitada e muito menor do que as necessidades de nossa economia. Isto explica por que mais de 65% das obras do PAC são realizadas com dinheiro da iniciativa privada. 

Esta é a razão pela qual o governo brasileiro trabalha constantemente para atração de investimento direto estrangeiro para a ampliação de nossa economia. Nesta disputa externa em busca por recursos internacionais, diversos fatores surgem como elementos essenciais que atraem capital de qualidade. Entre eles podemos citar um ambiente regulatório confiável, judiciário independente, contas públicas equilibradas, moeda e regras estáveis, liberdades individuais asseguradas e democracia consolidada, ou seja, uma trilha virtuosa que assegure o retorno dos investimentos.

Ao mesmo tempo que existem recursos de qualidade que exigem este arcabouço de virtudes, também existem investimentos predatórios, de mais fácil atração e que não exigem este ambiente de estabilidade. São perigosos porque trafegam em modelos corruptos, exigem contrapartidas e carregam armadilhas de dependência política, financeira, econômica e social.

Com base neste risco, muitos países desenvolvidos vêm trabalhando modelos de defesa contra investimentos predatórios. Como consequência, a União Europeia viu uma diminuição muito significativa do investimento predatório a partir de 2022. Ali existem iniciativas de adoção e atualização de mecanismos de análise de investimentos diretos estrangeiros existentes. A Itália, por exemplo, retirou-se das iniciativas chinesas da Nova Rota da Seda por considerar o modelo perigoso para seu interesse nacional. 

Em Portugal, desde 2014, se estabelece o regime de salvaguarda de ativos estratégicos essenciais para garantir segurança da defesa nacional e do aprovisionamento do país em serviços fundamentais. O governo pode opor-se a qualquer transação da qual resulte, direta ou indiretamente, a aquisição de controle de terceiros à UE sobre ativos estratégicos nos setores de energia, transportes e comunicações.

O Brasil deveria seguir o mesmo caminho, especialmente por se alinhar atualmente com países que optaram pelo investimento predatório, como os membros do BRICS. Nosso país deveria optar pelos investimentos de qualidade, com recursos de origem conhecida e limpa, ao mesmo tempo que realiza reformas que tornem o país receptivo àquelas democracias que visam parcerias longas, sadias e focadas na construção de um país forte e próspero. Devemos trabalhar na atração de investimentos diretos estrangeiros de qualidade, sob pena de nos tornarmos reféns de um modelo que pode aprisionar nossa economia e nossa sociedade.

A força de Bolsonaro e a fraqueza do Brasil

Jair Bolsonaro, na mira do STF por articular decretação irregular de Estado de sítio e intervenção no TSE, convocou seus eleitores para defendê-lo no dia 25 de fevereiro, na Avenida Paulista, e a massa de apoiadores compareceu.

No vídeo da convocação, Bolsonaro diz que se trata de um “ato pacífico em defesa do nosso Estado democrático de direito.” Sabe-se lá o que o Estado democrático de direito é na cabeça de um populista autoritário que faz reunião com todos os seus ministros para combinar a virada de mesa que iria mantê-lo no poder a despeito do resultado das eleições.

Bolsonaro queria um golpe de Estado, seu entorno planejou um golpe de Estado, que não aconteceu porque as Forças Armadas, como instituição, se negaram a implementá-lo, embora alguns militares, individualmente, tenham participado da “intentona bolsonarista.”

Em seu discurso, Bolsonaro falou da bíblia como uma “caixa de ferramenta”, dramatizou em torno do episódio da facada que sofreu em 2018, citou luta armada de 1970 e um tenente “executado pela esquerda”, lembrou sua “carreira das armas”, recordou os 28 anos como deputado “discursando para as paredes”, citou platitudes sobre seu governo até chegar ao momento “daquela coisa que aconteceu em outubro de 2022” e mostrou-se satisfeito por ter conseguido o que queria: “uma fotografia para o mundo.”

A instrumentalização do conservadorismo

Mas não faltou aquela carga ideológica caricata que, de fato, responde pela sua capacidade de aglomerar tão grande público: “Nós não queremos o socialismo para o nosso Brasil. Nós não podemos admitir o comunismo em nosso meio. Nós não queremos ideologia de gênero para os nossos filhos. Nós queremos respeito à propriedade privada. Nós queremos o direito à defesa à própria vida. Nós queremos o respeito à vida desde a sua concepção. Nós não queremos a liberação das drogas em nosso país.”

Eu e provavelmente mais da metade dos brasileiros concordamos com esse parágrafo. O que não concordamos é que o sujeito, por defender isso, não seja responsabilizado pelos desvios cometidos em outros aspectos fundamentais da ética, da moralidade, da civilidade. O problema é que o sentimento conservador do brasileiro comum foi manipulado, instrumentalizado por políticos desqualificados, ineptos e desonestos.

É uma cena burlesca ver os autoproclamados patriotas antipetistas aplaudirem com entusiasmo o discurso do presidente do PL, Valdemar da Costa, condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no escândalo do mensalão, ocorrido no governo Lula.

Ainda mais constrangedor e decepcionante é ver um dos ícones da operação Lava-Jato, o ex-deputado Deltan Dallagnol, junto a outros expoentes do partido Novo, participar da manifestação bolsonarista, sob a justificativa de união da direita contra os abusos do STF.

Ora, todos sabem que a CPI da Lava-Toga, protocolada pelo senador Alessandro Vieira, em 2019, com o objetivo de investigar o judiciário, foi inviabilizada pelo bolsonarismo para livrar a pele de Flávio Bolsonaro das investigações do caso das rachadinhas. A foto do caloroso abraço de Bolsonaro aos ser recebido pelo ministro Dias Toffoli em sua casa, em 2020, diz tanto do Brasil quanto a foto da multidão bolsonarista na Paulista.

Lava-Jato e falta de coerência moral

Sérgio Moro, ao decidir apoiar Bolsonaro no segundo turno, após ter denunciado a intenção do ex-presidente de interferir na Polícia Federal e após ter feito uma espécie de pré-campanha para presidente na qual expôs em livro e em discursos o mal que Bolsonaro tinha feito ao combate à corrupção, acabou com a esperança política daqueles que acreditaram e defenderam a Lava Jato por princípio e por anelo de justiça e não por mero oportunismo.

Da mesma forma, Deltan Dallagnol, aderindo ao bolsonarismo, de certa forma despreza a parcela da direita antibolsonarista que viu nele alguém firme e inabalável no combate à corrupção. 

Conforme escreveu Felipe Moura Brasil no artigo O Novo parasita o bolsonarismo, os valores e princípios inegociáveis do combate à corrupção foram sabotados por Bolsonaro e colar na direita bolsonarista não é o melhor exemplo de coerência moral.

Eis a fraqueza do político brasileiro e do brasileiro comum: a falta de coerência moral. Não é porque o STF está cometendo abusos – de fato, está – que precisamos desconsiderar os crimes cometidos por aqueles que são alvos da investigação. E entre os crimes está a tentativa de golpe, infelizmente minimizada pela direita, que compromete assim o seu papel de firme, porém democrática oposição.

Duas pontas que se retroalimentam 

Em seu discurso, Bolsonaro também pediu uma anistia para “os pobres coitados que estão presos em Brasília”. Sim, eles merecem anistia. Foram massa de manobra de gente mais graúda. Eles estão presos na Papuda e o Brasil está preso a dois populistas grotescos e rasteiros que se retroalimentam, como escreveu a ex-deputada Janaina Paschoal, em postagem no seu perfil X, em momento de singular lucidez:

“Respeitando opiniões divergentes, eu vejo, com clareza, um novo teatro das tesouras. Duas pontas que se retroalimentam e, guardadas as particularidades, funcionam de forma muito parecida. Ambas têm seus fiéis, que veem crimes na outra ponta, ambas têm seus atos de dramatização e ‘despedida’. Uma ponta brinca de fazer calar a outra. Antes, eu tinha pena do povo, que acredita nesse teatro. Hoje, vejo que o povo gosta e também se alimenta disso. Pobre daquele que pensa que essa representação os aniquila mutuamente. Esse teatro os mantém vivos e eles sabem disso!”

A manifestação na Avenida Paulista foi exitosa. Deixou clara a tragédia política brasileira: só Lula e Bolsonaro conseguem mobilizar as massas e encher as ruas; e as aberrações de um fazem as aberrações do outro parecerem menores. A força de Lula e Bolsonaro é a fraqueza da democracia do Brasil.

Israel diante da bifurcação

Sim, existe uma extrema-direita autocrática (e teocrática) na sociedade de Israel e no governo de Israel. Assim como, infelizmente, existe também na sociedade americana (ameaçando voltar ao governo dos EUA com Trump). Assim como existe até na própria Alemanha (com a AfD). Essa é uma das características da segunda guerra fria, que não é igual à primeira porque não opõe dois blocos coesionados de países (Leste x Oeste) e sim porque está presente dentro de cada país. A divisão não é global e sim glocal. Fomos assaltados, nos anos 20 do século 21, pelo anos 20 do século 20 (muito antes da primeira guerra fria).

Mas há uma armadilha aqui: fazer uma conexão mecânica do que acontece em Gaza com os propósitos delirantes dessa força autocrática presente em Israel. Fosse o governo israelense composto por moderados, até por democratas, uma vez colocada em curso uma guerra (não uma ação policial com recursos militares para caçar os terroristas e libertar os reféns, mas uma guerra mesmo), aconteceria no teatro de guerra de Gaza alguma coisa muito parecida com o que está acontecendo agora. Ou seja, do fato dos extremistas isralenses estarem no governo e terem intenção genocida, não se pode derivar que a ação de Israel na guerra seja orientada por uma intenção genocida.

Falando de intenções

E por falar de intenções, o Hamas, sim, tem uma intenção genocida. Eliminar um grupo populacional: os judeus (inicialmente os de Israel).

A África do Sul, que mantém relações cordiais com o Hamas e atuando como fantoche do eixo autocrático, tem uma intenção: condenar falsamente Israel por genocídio.

Israel tem uma intenção: neutralizar a organização terrorista Hamas, matando ou prendendo seus combatentes e destruir sua infra-estrutura bélica em Gaza para evitar que ataquem novamente o território israelense.

Israel não tem a intenção de dizimar um grupo populacional inteiro (os palestinos). Se tivesse, com seu poder bélico (aéreo), não teria matado cerca de 1% da população de Gaza (segundo os números fornecidos pelo próprio Hamas) e sim muito mais.

Ao divulgar a fake news de que morreram cerca de 80% de mulheres e crianças em Gaza, o Hamas tem uma intenção: condenar falsamente Israel por genocídio. Isso é uma impossibilidade (demográfica) e uma alta improbabilidade (estatística). Se esses dados fossem corretos, só teriam morrido na guerra pouco mais de 5 mil homens (englobando civis combatentes do Hamas e civis não-combatentes). Seria necesssário acreditar que, por algum motivo milagroso, os combatentes do Hamas praticamente não morrem nos confrontos armados de que participam.

Israel diante da bifurcação

A cada bala perdida que mata uma mulher civil não-combatente em Gaza, a cada morte de criança palestina como resultado colateral de uma bomba lançada pelas FDI para destruir um túnel ou outra instalação da infra-estrutura bélica do Hamas, não podemos dizer: “Estão vendo? Se não fossem os tarados supremacistas Smotrich, Ben-Gvir e Katz – abrigados no governo Netanyahu – isso não estaria acontecendo”. Eles são, de fato, militantes autocráticos (e, alguns, teocráticos), mas mesmo que esses e outros extremistas não estivessem no governo, aconteceria, sim, o que está acontecendo – havendo guerra.

Há perdas de civis inocentes em todas as guerras. E há crimes de guerra em todas as guerras. Na Segunda Guerra Mundial morreram 40 milhões de civis. Na guerra da Coréia estima-se que morreram quase 2 milhões de civis. Na guerra do Vietnã, a mesma coisa: cerca de 2 milhões de civis mortos. Na guerra da Síria morreram mais de 300 mil civis. Na guerra civil etíope estima-se que mais de 400 mil pessoas tenham perdido a vida. Em todas essas guerras houve crimes de guerra.

Militares e civis são pessoas. No balanço de mortos para avaliar a letalidade de uma guerra, todas as pessoas devem ser consideradas. No caso do Hamas, porém, essa distinção não se aplica: todos os mortos do lado do Hamas são civis.

Ainda assim, a guerra de Israel contra o Hamas está sendo uma das menos letais do nosso período histórico (até agora, pois tem pouco mais de 100 dias; se durar 8 meses, como avalia o governo Netanyahu, mantendo-se a dinâmica atual, matará cerca de 70 mil pessoas). Ora, a guerra da Rússia contra a Ucrânia já matou mais de 200 mil pessoas. A guerra do Afeganistão matou mais de 170 mil pessoas. A guerra Irã-Iraque deixou 1,5 milhões de mortos.

Israel está agora diante de uma bifurcação que selará o seu destino. Mantendo-se o governo Netanyahu com a composição atual e não havendo um levante da sociedade civil israelense contra esse governo, a democracia de Israel tende a se autocratizar com o esticamento da guerra por motivos políticos internos (aliás, em alguma medida, toda guerra é interna: a decisão de fazê-la, continuá-la ou encerrá-la é tomada sempre por uma força política em disputa por supremacia interna com outras forças políticas). Mas os democratas defendemos Israel enquanto seu regime continuar sendo uma democracia, o que não equivale a dizer que defendemos todas as suas ações.

Democratas defendem o direito de auto-defesa, mas não propriamente a guerra – que, em si, envolve violações dos direitos humanos. Se Hitler invade a França, defendemos a França, mas não todas as ações violentas da Resistência Francesa (algumas bárbaras e até terroristas). Se o eixo autocrático invade a Ucrânia, defendemos a Ucrânia – o que não significa que aprovamos quaisquer ações do exército ucraniano. Se o Hamas ataca Israel, defendemos Israel, o que não significa que aprovamos as ações de guerra de Israel.

Hannah Arendt contra o antissemitismo de Lula, Janja e PT

Após ser detida, por alguns dias, pela Gestapo, por colaborar com envio de documentos para uma organização de resistência ao nazismo, a jovem judia alemã Hannah Arendt se refugiou na França. Entre 1934 e 1940, antes de ir parar em um campo de detenção na própria França, do qual conseguiu fugir, Arendt trabalhou em uma organização que conduzia judeus do leste europeu para a região do futuro Estado de Israel.

Em 1943, quando já morava nos Estados Unidos, Arendt tomou conhecimento da existência dos campos de extermínio nazistas espalhados pela Europa. Aquilo era tão absurdo que não parecia crível. Mas era real. A pavorosa perversidade do assassinato em massa, desprovido de qualquer critério utilitário, com o único objetivo de degenerar a natureza do ser humano e gerar uma pilha de cadáveres parecia-lhe algo sem sentido, sem motivo, sem fundamentação. Com os campos de concentração, o mal parecia atingir uma proporção inédita.

Esse empreendimento macabro, com toda a sua organização racional e técnica, que tinha por objetivo destruir por destruir, exterminar por exterminar, esse mal que se configurava até mesmo para além do interesse pessoal de quem o perpetrava é identificado inicialmente por Hannah Arendt como o mal absoluto: “Se é verdade que, nos estágios finais do totalitarismo, surge um mal absoluto (absoluto, porque já não pode ser atribuído a motivos humanamente compreensíveis), também é verdade que, sem ele, poderíamos nunca ter conhecido a natureza realmente radical do mal”, escreverá Arendt no prefácio da obra As origens do totalitarismo.

Hannah Arendt, como boa pensadora, era rigorosa com os termos. O regime que tornou possível os campos de concentração (nazistas e soviéticos) era diferente das tiranias e das ditaduras. Sendo o regime totalitário uma forma de “domínio total” e “a única forma de governo com a qual não é possível coexistir”, teríamos, segundo ela, “todos os motivos para usar a palavra ‘totalitarismo’ com cautela”.

À especificidade do regime totalitário relaciona-se também, para Arendt, a qualificação técnico-jurídica do genocídio como crime contra a humanidade.

Genocídio 

A base inicial da tipificação deste crime, em texto internacional, encontra-se no ato constitutivo do Tribunal de Nürenberg, de 8 de agosto de 1945. Esse tribunal, criado para julgar e punir os grandes crimes de guerra dos países do Eixo, tinha competência e jurisdição, nos termos do art. 6.° do seu estatuto, em relação aos crimes contra a paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade.

Enquanto crimes contra a paz e crimes de guerra já eram tidos como comportamentos ilícitos na perspectiva do Direito Internacional antes da II Guerra Mundial, “a concepção de crimes contra a humanidade, previstos no art. 6.° “c” do Estatuto do Tribunal de Nürenberg, procurava identificar algo novo, que não tinha precedente específico no passado; representava um primeiro esforço de tipificar, como ilícito penal, o ineditismo da dominação totalitária”, conforme explica Celso Lafer, no livro A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.

Os princípios de Nürenberg foram oficialmente sistematizados pela Comissão de Direito Internacional da ONU, por solicitação da Assembleia Geral, em resolução de 1947. No que concerne ao genocídio, esses princípios converteram-se em norma internacional através da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, entrando em vigor em 12 de janeiro de 1951. Ali, a tipificação do crime de genocídio, no art. 2.°, estabelece nas letras “a”, “b”, “c”, “d” e “e”, os aspectos objetivos do comportamento ilícito, e no seu caput o aspecto subjetivo, que é a “intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

Para Hannah Arendt, explica ainda Celso Laffer, “o genocídio, como crime, só pode ocorrer com base na lei criminosa de um Estado criminoso”. Não se trata de um crime qualquer que pode ser cometido por indivíduos isoladamente, mas um crime “estruturalmente ligado à gestão totalitária”, um crime que depende de uma estrutura de poder posta a serviço da perversidade e na qual o mal se converte em legalidade.

O genocídio “assume o ser humano como supérfluo”; “não é uma discriminação em relação a uma minoria, não é um assassinato em massa, não é um crime de guerra nem um crime contra a paz. O genocídio é algo novo“, é, para usar as palavras da própria Arendt “um crime contra a humanidade perpetrado no corpo do povo judeu“.

O antissemitismo de Lula

Armados dessa compreensão, podemos agora dimensionar a gravidade da crise diplomática iniciada por Luís Inácio Lula da Silva ao discursar fazendo analogia entre o holocausto e a resposta de guerra de Israel contra um grupo terrorista que o atacou e acusando Israel de estar perpetrando um genocídio, o que equivale a considerar Israel como um Estado criminoso, negando-lhe, consequentemente, o direito à existência.

Se a rinha política hodierna nas redes sociais é marcada pela distorção de conceitos importantes, o mesmo uso ligeiro e irresponsável de palavras graves não deveria, de forma alguma, dar o tom do discurso de um presidente em uma coletiva internacional, em momento tão complexo como o atual.

O pior de tudo, porém, é que não foi apenas descuido e desleixo. Não foi uma gafe, um despropósito infeliz ou uma inadequação por simples ausência de bom senso. O Brasil já havia dado apoio à África do Sul na absurda acusação contra Israel (levada ao Tribunal Internacional de Justiça, em Haia), já havia prometido doações à UNRWA no momento mesmo em que outros países paralisaram as doações ao verem comprovadas as suspeitas de relações da agência com o Hamas.

Por fim, o Brasil não fez a menos questão de se retratar a fim de resolver a crise diplomática que Lula criou. Na verdade, a sua fala galvanizou o antissemitismo de esquerda, que, agora, mal sente a necessidade de se disfarçar.

Antissionismo como antissemitismo

Todas as tentativas de emenda do discurso de Lula saíram pior que o soneto. A sua esposa, Janja, defendeu o bom velhinho, que, segundo ela, defende a vida de mulheres e crianças e escreveu o seguinte: “a fala se referiu ao governo genocida e não ao povo judeu. Sejamos honestos nas análises.”

Para alcançar a sutileza necessária para uma análise honesta, recorro, mais uma vez, a Celso Lafer que, em artigo publicado no Estadão, escreveu: “Hoje muitas críticas à atuação de Israel em Gaza vão além do aceso das polêmicas sobre a aplicação das normas do direito humanitário ou da gravíssima situação humanitária em Gaza. Resvalam pela denegação de sua existência. Neste contexto, cabe a pergunta: de que maneira um antissionismo bastante presente na crítica a Israel é uma modalidade contemporânea de antissemitismo?”

O advogado, jurista, professor, ex-ministro das Relações Exteriores e também ex-aluno de Hannah Arendt socorre a ignorância petista lembrando que o sionismo “buscou a construção de um Estado como resposta às perseguições que os judeus padeceram como uma minoria discriminada”, conforme o princípio de autodeterminação dos povos e que essas aspirações se traduziram no reconhecimento de Israel.

A crescente negação do direito à existência de Israel, que se tem verificado desde o início da guerra em Gaza, apresenta, segundo Lafer, um caráter de seletividade, pois inexistem outras manifestações de denegação da existência de qualquer outro Estado reconhecido na vida internacional em consequência de críticas a suas políticas. Assim sendo “esta seletividade negacionista faz do antissionismo uma manifestação de antissemitismo. Comporta analogia com o negacionismo revisionista da denegação da verdade factual do Holocausto.”

O antissemitismo de Janja

O antissemitismo, Janja, tem várias facetas. A hostilidade em relação aos judeus pode vir um pouco disfarçada, como na sua postagem, que fala em um “governo genocida”, desconsiderando que a guerra em curso não é conduzida apenas por Benjamin Netanyahu, mas por uma coalizão que inclui, inclusive, a oposição. 

Referir-se a um “governo genocida” ou afirmar, como Lula o fez, que “na faixa de Gaza não está acontecendo uma guerra, mas um genocídio”, é chamar Israel de Estado criminoso e negar-lhe, por conseguinte, o direito de existir.

Conforme explica Celso Lafer e outros autores, o antissemitismo moderno é distinto do tradicional, “por isso, pode-se falar com mais propriedade de antissemitismos, no plural. Uma das modalidades atuais do antissemitismo é o antissionismo”. 

É nessa modalidade de antissemitismo que a sua declaração e a de seu marido se encaixam.

Método Putin

Ao mesmo tempo que a agressão russa contra a Ucrânia completa dois anos, o Kremlin se prepara para mais uma eleição presidencial, aquela que pode entregar mais um mandato presidencial para Vladimir Putin, no comando desde 1999. Ele já ocupa o poder por 25 anos e em breve deve se tornar o líder com mais tempo na condução do país, ultrapassando a marca de Josef Stalin, que esteve no Kremlin de 1922 até 1953.

O ex-diretor da FSB, Serviço Federal de Segurança, assumiu o cargo de Primeiro-Ministro aos 47 anos, em 1999, sendo eleito em sequência para a presidência da Rússia. Reeleito em 2004, ficou no comando do país até 2008, quando voltou a ser Primeiro-Ministro. Retornou para presidência em 2012 e renovou o mandato em 2018. Em 2021 sancionou emendas constitucionais que permitem uma extensão de sua presidência até 2036, quando terá 84 anos. Um verdadeiro czar.

Sob seu comando, a Rússia iniciou aproximação com o ocidente, especialmente com europeus e americanos, trabalhando para transformar a imagem de seu país ao redor do mundo. Apesar de todos saberem dos métodos e práticas usadas para sua manutenção no poder, os canais que tornavam a Rússia parte da estabilidade do cenário exterior sempre foram mais fortes, atraindo inclusive eventos esportivos de altíssima envergadura, como Jogos Olímpicos de inverno, corridas de Fórmula 1, torneios de tênis e uma Copa do Mundo.

Porém, a Rússia possuía várias faces. O regime levava antigos líderes ocidentais para sua área de influência com altos salários nas empresas de oligarcas, ao mesmo tempo que fortalecia sua tutela em antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central. Ainda exercia influência nos conflitos da África e Oriente Médio, como no caso da Síria. Entretanto, nada que colocasse os interesses do Kremlin em colisão direta com o ocidente.

Porém, tudo indica que ali havia um método calculado e a invasão da Ucrânia jogou luz sobre o tabuleiro. O Kremlin acreditava que a reação seria similar aquela ocorrida diante da invasão da Criméia, ou seja, praticamente nula e que a capital ucraniana cairia em pouco tempo. A guerra, entretanto, se arrasta por dois longos anos, sem sinais de término, que além de destruir a Ucrânia, arrasou com a imagem da Rússia no exterior.

Isto fez com que Putin se aproximasse ainda mais da esfera autocrática e totalitária, cortando os vínculos com o ocidente a passando a cerrar fileiras com países como China, Irã, Coreia do Norte e demais nações do seu âmbito de influência, especialmente no BRICS, que se tornou o novo fórum onde orbitam nações que vivem ou flertam com regimes autoritários. Isolado do ocidente, o Kremlin sentiu-se livre para romper com qualquer traço de democracia ou liberdade que ainda restava em seu território.

O resultado será mais uma eleição vencida por ampla maioria. O método é conhecido, ou seja, manter amplo controle dos meios de comunicação, passando pela restrição de protestos, prisões e chegando à perseguição e morte de críticos ao regime, bem como o impedimento de candidaturas oposicionistas. A Rússia, que flertou com a liberdade e a democracia, vem retrocedendo de forma consistente e preocupante. Tudo indica que para ultrapassar o período de Stalin no Kremlin, Vladimir Putin continuará a recrudescer o regime e seguirá se inspirando nos infelizes métodos do seu mais longevo antecessor.

Israel, Gaza e Ajuda humanitária

Os ataques terroristas do Hamas, em 7 de outubro de 2023, desencadearam uma operação militar israelense em uma das áreas de população mais adensadas do Oriente Médio e o resultado previsível e trágico é uma perda enorme de vidas civis, deslocamentos grandes de população e destruição de infra-estrutura, bem como colapso de serviços de saúde e segurança. Esses fatores criam uma crise humanitária que precisa ser aliviada. E Israel como única democracia da região precisa agir para minimizar o sofrimento da população civil de Gaza.

A parcela da opinião pública que acompanha os eventos internacionais e os eventos da política nacional tem se ocupado nos últimos dias a debater as falas do presidente Lula sobre a situação dos palestinos em Gaza, a controvérsia e guerra de palavras que se seguiu a declaração dão uma mostra de como a chamada diplomacia presidencial trás desafios para os diplomatas brasileiros, ainda mais em tempos de polarização e de redes sociais.

A questão, contudo, é muito mais complicada que o manequeismo da política partidária atual nos permite observar. É preciso antes de qualquer análise sob conflitos internacionais, que quando a primeira arma é disparada se instala o que se costuma chamar de neblina da guerra (ou neblina da guerra), termo cunhado por Clausewitz para descrever a incerteza que acompanha as operações militares e que pode ser expandido para a incerteza sobre as informações que nos chegam sobre a guerra. Em outras palavras, é muito difícil ter certeza sobre os números que recebemos de um conflito, por que todos os lados estão ativamente engajados em desinformar.

Isso posto, é inegável que há uma necessidade crescente de ajuda humanitária para o povo palestino em alguns lugares a situação começa a ficar muito grave como em Rafa, cidade palestina que recebeu mais de 1,2 milhões de refugiados de outras partes de Gaza. Essa quantidade de gente coloca muita pressão nos serviço de água e esgoto e nos serviços médicos, além de pressionar também serviços de segurança e tudo que precisa dos chamados serviços de um estado. Doenças se espalham e há uma grande dificuldade no acesso a comida e aos meios de preparar essa comida nos campos improvisados de refugiados. A ajuda internacional, massivamente proveniente dos países vizinhos precisa chegar a essas pessoas com segurança e previsibilidade.

As operações militares continuam e o governo israelense inspeciona cada caminhão de ajuda que se destina a área isso faz com que os dois pontos de passagem de ajuda em Nitizana, no Egito e Kerem Shalom, em Israel, acabam sendo pontos de gargalo logístico para ajuda, sendo importante que Israel encontre meios mais eficazes e uma escala maior de trabalho para permitir a passagem da ajuda, além de garantir condições de segurança, quando há manifestações e protestos nessa região.

Outra ameaça as operações logísticas é que a ausência de um poder de polícia para proteger os carregamentos os tornam vulneráveis a criminosos buscando lucrar com a venda desses produtos para uma população desesperada por eles. Coibir essas ações exige que o próprio Hamas dê segurança para essa travessia e que haja algum tipo de cooperação mínima entre as partes, não precisa ser o mais atento dos observadores internacionais para perceber o tamanho do desafio que isso abrange.

Comprometer-se com evitar danos colaterais e aliviar o sofrimento das pessoas não enfraquece a campanha militar de Israel e talvez possa contribuir para algo muito difícil de reverter num conflito tão antigo, com tantas mortes sem sentido de inocentes que é combater a desumanização do outro, que não duvidem é condição primária para que os radicais avancem nas correntes de opinião e suas ideologias que justificam extermínios se tornem idéias aceitáveis. Essas idéias sempre se apresentam como lógicas e racionais.

A trilogia original dos filmes Matrix oferece no seu primeiro filme uma cena que ilustra como mecanismo de desumanização se apresentam como algo bom. Em determinado momento da trama o protagonista Neo é ensinado a se precaver dos agentes do sistema e seu mentor informa que seu inimigo é na prática um inimigo sem rosto que pode ser qualquer um ao seu redor dentro da Matrix, portando, deve tratar todos que não forem seus companheiros como inimigos em potencial, a despeito de serem inocentes cativos e, portanto, impotentes quanto à atuação dos agentes. Essa cena consegue fazer o espectador do filme não questionar a moralidade das decisões dos protagonistas e também impende que exista empatia pelos mortos indiscriminadamente pelos protagonistas. Existem forças em todos os lados do conflito apostando na desumanização. E existem forças que em nome de eleições partidárias usam do conflito no Oriente Médio para arregimentar suas bases políticas. Todos agem com a frieza mecânica dos personagens humanos de Matrix, que numa maestria de ironia das criadoras do filme combatem um inimigo mecânico.

Nesse momento de emoções fortes e sentimentos tribais aflorados. Nesse momento em que a humanidade do inimigo é apagada por discursos e ações os radicais, que ameaçam nossa democracia no seu debate eterno em busca de mocinhos e bandidos querem que nos esqueçamos que um dos caminhos para evitar uma tragédia ainda maior é admitir que o sofrimento do outro, do inimigo é na verdade o sofrimento humano. É admitir que o outro, o inimigo é uma pessoa. Não percamos nunca essa dimensão.

Não há ilusões Israel não vai recuar do conflito enquanto não puder declarar que derrotou o Hamas, mas como sempre em política e Relações Internacionais o que exatamente determina o que é derrotar o Hamas é difícil de ser mensurado e a política interna e pressões externas vão pesar nesse calculo, parece claro, contudo, que a derrota do Hamas e da ideologia que o sustenta é parte do caminho para um Oriente Médio mais estável e pacifico, bem como não haverá paz enquanto o povo palestino não tiver um Estado e a oportunidade de prosperar, viver em paz e superar o ciclo de tragédias que no momento parece preso e para isso precisa encontrar internamente objetivos realistas, por que o slogam do “rio ao mar” já causou mortes demais para seu próprio povo.  

O povo palestino está sofrendo agora e correndo o risco de parecer utópico eu admito, mas para a construção da paz de uma maneira pragmática é preciso diminuir o grau do sofrimento humano agora e não quando o inimigo for derrotado e nesse sentido a dimensão humana prevaleça, tanto ao permitir que ajuda chegue a quem precisa, como devolvendo os sequestrados para Israel.

O Brasil do jeito que o Hamas gosta

O Hamas elogiou uma fala do presidente do Brasil, que pretende ser uma democracia. Caso essa pretensão seja mantida, é um momento trágico para o país.

Na Etiópia, o presidente Lula declarou o seguinte: “O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus.” Fazer essa declaração em solo etíope é escalar ainda mais um degrau na provocação.

Lula e qualquer um têm todo o direito de criticar a reação de Israel ao ataque terrorista do Hamas bem como de criticar o governo do país. Não foi isso o que ele fez.

O presidente do Brasil caiu em um discurso indecente e muito comum em grupos neonazistas em ascensão nos últimos anos pela internet. Ao comparar tudo o que ocorre no Oriente Médio ao Holocausto, duas coisas são feitas ao mesmo tempo. A primeira é minimizar o Holocausto. A segunda é colocar os judeus como nazistas, portanto contra eles se pode tudo.

Não é à toa que o caldo começou a desandar entre apoiadores de Lula. Oscilam entre apoiar um discurso aplaudido publicamente pelo Hamas e degenerar para pedidos de morte aos judeus e a todos os que criticaram o presidente. O nível de violência muda, mas o chiqueiro moral é o mesmo.

Falar isso justamente na Etiópia é ainda mais perverso. Pouca gente sabe aqui no Brasil, mas os judeus foram vítimas de uma limpeza étnica no território etíope na década de 1980. O então ditador Mengistu Haile Mariam resolveu perseguir a minoria judia, que começou a fugir para outros países. Nem todos conseguiam.

Muitos tentaram fugir a pé da Etiópia a Israel e acabavam morrendo pelo caminho. Em maio de 1991, Israel utilizou aviões em operações secretas do Exército para resgatar mais de 14 mil judeus etíopes em barcos e aviões.

Foi uma operação secreta da Mossad que parece filme. Os agentes se hospedaram em resorts, utilizaram barcos para resgate clandestino e depois colocaram as pessoas dentro de aviões pousados no deserto para conseguir levar a Israel.

Eu estive no início deste mês dentro dos aviões usados para esse resgate, ainda preservados em bases aéreas e utilizados em outras operações. Contei o que vi na minha viagem no podcast Democracia em Foco, feito pelo Instituto Monitor da Democracia.

Escolher o solo Etíope para sugerir que judeus são os novos nazistas é definitivamente um novo patamar de baixeza. Aliás, nem autoridades do Irã, o maior inimigo de Israel na região, fazem declarações do tipo. Entre os países árabes também não há declarações semelhantes vindas de mandatários.

Por isso o Hamas aplaudiu, porque é algo do nível dele. Pouca gente sabe, mas o Conselho Islâmico da Fatwa, entidade que controla a lei islâmica no Oriente Médio, condenou publicamente o Hamas antes mesmo do ataque terrorista de 7 de outubro.

O colegiado com sede no Iraque foi fundado pelo Ayatollah Shaikh Fadhil al-Budairi e une sunitas e xiitas. Ele emite “fatwas”, que são pronunciamentos de clérigos muçulmanos esclarecendo como agir de acordo com a lei islâmica em determinadas situações.

Esse conselho emitiu uma fatwa condenando o Hamas por corrupção e pelo terror contra a população palestina de Gaza. Vejam bem, não é só contra Israel, é de antes. Um conselho teocrático islâmico disse que o Hamas faz terror contra os palestinos.

A fatwa, que você pode ver nesse vídeo gravado pelo porta-voz do Conselho Islâmico da Fatwa, Sheikh Muhammad Ali al-Maqdisi, proíbe de orar pelo Hamas, se juntar a ele, apoiar, financiar ou brigar pelo Hamas.

Muitos democratas já se preocupavam com o explícito alinhamento do governo Lula ao crescente bloco autocrático do planeta, liderado por Rússia, China e Irã. Ao conseguir ser aplaudido publicamente pelo Hamas, o presidente deu um passo significativo.

A segunda guerra fria: um resumo iconográfico

Antes de qualquer coisa é preciso saber que uma segunda grande guerra fria já está instalada. E que ela não é, como a primeira, uma divisão de blocos Oeste x Leste compostos por países. Não é EUA x China no lugar de EUA x URSS. A segunda guerra fria é uma campanha de exterminação das democracias liberais promovida pelas maiores autocracias do planeta que se instala dentro de todos os países, capturando setores internos não-liberais desses países, sobretudo governos e forças políticas populistas.

Na segunda guerra fria há conflitos quentes convencionais (entre países, como Rússia x Ucrânia) e não-convencionais (entre grupos sub ou não nacionais entre si e contra países, como Hamas x Israel), mas predomina a netwar: a nova forma de guerra do século 21. Países autocráticos estão na ofensiva nessa forma de guerra que tenta interferir na geopolítica regional e mundial e, além disso, na política interna de cada país. A netwar não é menos perigosa do que as guerras frias convencionais. Ela pode ensandecer multidões que, dependendo das circunstâncias, não hesitarão em tomar de assalto as instituições democráticas.

Há um campo autocrático e um campo democrático no mundo atual. Potencialmente estão no campo autocrático, segundo a classificação do V-Dem 2023 (modificada por mim), 33 autocracias fechadas (não-eleitorais), 56 autocracias eleitorais e um número não-determinado (menor do que 58) de regimes eleitorais parasitados por populismos (ainda chamados, benevolamente, de democracias). Potencialmente, ainda segundo o V-Dem 2023 modificado, estão no campo democrático as 32 democracias liberais e um número não-determinado (também menor do que 58) de regimes eleitorais formais não-parasitados por populismos (que poderiam ser chamados, com mais razão, de democracias apenas eleitorais).

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Para além do campo potencial, há um eixo autocrático se formando no mundo em que vivemos, imerso desde o início do século em uma terceira onda de autocratização.

O objetivo do eixo autocrático é exterminar as democracias propriamente ditas (liberais ou plenas).

Há um campo democrático potencial, mas não propriamente um eixo democrático formado por democracias plenas ou liberais. No apoio à Ucrânia contra a invasão do ditador Putin chegou-se a formar uma inédita coalizão de democracias liberais (que poderia ser considerada um embrião desse eixo).

O eixo autocrático está capturando regimes eleitorais parasitados por populismos.

No campo democrático estão as democracias formais, não parasitadas por populismos.

Tudo isso é um briefing. Para explicações mais detalhadas leia o artigo Democracia é democracia liberal.