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As duas caras de Lula e o jornalismo servil

A última semana foi marcada por dois eventos sintomáticos que, a meu ver, ilustram o dom camaleônico de Lula: a recepção um tanto quanto afetada do presidente francês Emmanuel Macron — com direito a foto de mãos dadas na floresta — e a fingida indignação com a proibição, na Venezuela, da candidatura de Corina Yoris, substituta da injustamente inelegível Corina Machado.

Tenho chamado atenção, em alguns de meus artigos, para o aspecto propriamente maquiavélico da ação política de Lula. Como se sabe, Maquiavel, em O Príncipe, reclama para o governante uma adaptabilidade às circunstâncias, sob a forma de esperteza e ardil. O príncipe não pode ter sua conduta balizada por princípios morais, mas pode ocasionalmente fingir levá-los em consideração quando isso se fizer necessário. A política, assim concebida e vivenciada, é o jogo retórico do poder no qual impera a hipocrisia.

O leitor poderá dizer que 90% dos políticos se movem dentro dessa perspectiva amoral e pragmática, no que tendo a concordar. Nem por isso é ocioso o ofício de denunciar as contradições entre o discurso e a ação dos nossos representantes.

Jornalismo

Até ontem eu pensava, inclusive, que essa vigilância crítica era quase sinônimo de jornalismo, mas entendi melhor a crise de credibilidade da imprensa brasileira quando vi o constrangedor vídeo da Globo News no qual a jornalista Daniela Lima se vangloria, de forma patética, por ter passado seu telefone pra Janja, que o passou para Lula e Macron para que vissem alguns memes. O Macron, segundo Lima “se divertiu horrores” e o Lula “ficou meio meu deus do céu”.

A cobertura de uma agenda política entre dois chefes de Estado, feita por tietes risonhas foi devidamente ridicularizada nas redes sociais. Mas apontar o ridículo da vassalagem de parte da imprensa a Lula não é suficiente. É preciso retomar o fio das questões importantes com a seriedade que o momento requer.

O que o Brasil ganhou com a visita de Macron?

Macron desembarcou no Brasil com uma comitiva de 140 empresários franceses, com o propósito bem definido de atrair investidores brasileiros, a maioria ligados à bioeconomia. O marketing em torno da visita trabalhou principalmente para projetar os dois presidentes como líderes ambientais. Macron conseguiu tudo que queria, a começar pela foto com os indígenas, que muito lhe interessava.

Foi anunciada uma coalizão de recursos em projetos de pesquisa sobre bioeconomia e sustentabilidade no valor de 5,4 bilhões de reais, em uma parceria entre bancos públicos brasileiros e franceses. O Brasil não conseguiu, portanto, um investimento unilateral. A expectativa de uma doação direita da França para o fundo da Amazônia foi frustrada.

O outro balde de água fria para o Brasil foi a rejeição categórica, por parte do presidente francês, do acordo UE-Mercosul, que Lula finge querer avançar. Macron disse que os termos do acordo eram péssimos e que seria uma loucura assiná-lo.

Usinas

Outra frustração foi a recusa francesa em assinar o empréstimo bilionário para o desenvolvimento das usinas nucleares de Angra 1 e Angra 3. No lugar do esperado recurso financeiro para desenvolvimento das usinas brasileiras, firmou-se um Memorando de Entendimento entre o Serviço Geológico Brasileiro (SGB) e o Serviço Geológico Francês (BRGM) para a exploração de minerais estratégicos, principalmente o Urânio.

Cerca de 70% da eletricidade francesa é de origem nuclear e um de seus principais fornecedores africanos, o Niger, passa por fortes instabilidades políticas. Poder explorar o Urânio brasileiro é realmente motivo para Macron “se divertir horrores”, tirar fotos saltitantes de mãos dadas com Lula e vender para o mundo a falsa ideia de que Lula “restaurou o equilíbrio institucional”, como escreveu em suas redes sociais.

A visita de Macron não serviu propriamente ao Brasil, mas a Lula, que tenta reverter uma queda de popularidade, provocada principalmente pela sua política externa bizarra, que vai desde a cumplicidade com as ditaduras de Putin e Maduro até as comparações infames de Israel com o nazismo.

Hipocrisia sobre guerra na Ucrânia

É justamente na política internacional que o cinismo de Lula fica mais patente. É lamentável que Emmanuel Macron, que tem engrossado a voz para liderar o esforço europeu em favor da Ucrânia e contra a Rússia, não tenha confrontado com firmeza a postura pró-Putin de Lula.

Em entrevista coletiva, os dois presidentes foram submetidos a uma pertinente questão (feita por um jornalista francês porque, se depender do jornalismo brasileiro, como diria a Daniela Lima “é só love”):

Presidente Lula, o que o senhor pensa do fato de o presidente Macron não descartar o envio de tropas para a Ucrânia? E senhor presidente Macron, o que o senhor pensa de o presidente Lula convidar Vladimir Putin para o G20?”, questionou o jornalista estrangeiro.

O primeiro a responder foi Macron, que disse que Lula era responsável pelo seu convite, mas que deveria submetê-lo a todos os membros do G20, devendo respeito a todos. 

Grosseria

A resposta de Lula, por sua vez, foi grosseira, abusada e cínica. Ele começou criticando a pergunta: “Seria tão bom se a gente tivesse pergunta pra falar da relação Brasil e França”. Depois, ele veio com essa pérola: “Veja, estou a tantos mil quilômetros de distância da Ucrânia que eu não sou obrigado a ter o mesmo nervosismo que o povo francês que está mais próximo, o povo alemão, o povo europeu”.

A hipocrisia foi logo apontada nas redes sociais. Usuários do X reagiram à fala de Lula em tom jocoso “ao contrário da Faixa de Gaza, que está aqui do lado e por isso o presidente se preocupa tanto”, lê-se em um irônico perfil.

Mas a coisa não ficou só aí. Lula mentiu ao afirmar que a postura do Brasil em relação à guerra da Ucrânia sempre foi bastante clara. Não é verdade. Sempre foi uma postura ambígua e cínica que tenta equiparar o país invasor com o país invadido. Ao final da sua resposta à pergunta do jornalista francês, Lula volta a isso afirmando que “os dois bicudos vão ter que se entender em algum momento.” Traduzindo: Lula considera Zelensky um “bicudo” por não se render ao poderio de Putin e negar-se a entregar a Ucrânia e seu povo à mãe Rússia.

Ao dizer, ainda na resposta à mesma pergunta, que conheceu Putin em reuniões de organizações internacionais nas quais há encontros com “muita gente que você não concorda”, Lula faz Macron de besta que, por sua vez, se finge de besta para melhor passar. Afinal, é difícil imaginar que o presidente francês não tenha conhecimento das inúmeras provas de simpatia, amizade e apoio que Lula, seus assessores diretos e seu partido já deram ao ditador russo.

Estamos, portanto, diante de um político maquiavélico, cujo método é a dissimulação. O PT, como já foi noticiado, parabenizou Putin pela vitória em uma eleição de fachada, considerando um “feito histórico” o espetáculo eleitoral marcado pela repressão, prisão e assassinato de opositores.

Uma política externa esquizofrênica

O cientista político Sergio Fausto, no artigo A infame nota do PT sobre a reeleição de Putin, publicado no Estadão, apontou a contradição entre o que o PT prega no Brasil e o que pratica e defende no âmbito internacional, chamando essa contradição de “esquizofrenia.”

O referido artigo alerta ainda que, se o PT fosse irrelevante, essa esquizofrenia seria um problema interno do partido, mas, como se trata do partido que tem a presidência da República, o tema é de interesse nacional.

Uma nação democrática deve defender princípios e valores democráticos internamente e externamente. É inadmissível que continuemos a apoiar ditaduras na América Latina e ao redor do mundo. 

Essa política externa — que Sergio Fausto chama de esquizofrênica e eu chamo de maquiavélica, hipócrita, cínica e infame — está custando a Lula a sua popularidade e só por isso ele condescendeu que o Ministério de Relações Exteriores fizesse recentemente uma nota alegando preocupação com o “processo eleitoral” da Venezuela.

Hipocrisia sobre eleição da Venezuela

A nota do Itamaraty é uma peça retórica de dissimulação e má-fé. Como Duda Teixeira explicou didaticamente em sua nota na Crusoé, o texto, na verdade, chancela Maduro e repete a narrativa oficial do ditador.

A nota afirma que onze candidatos de oposição lograram se candidatar, o que é uma mentira; a nota fala em fortalecer a democracia, onde democracia não há; a nota critica as sanções americanas que visam restabelecer a democracia e, finalmente, a nota normaliza o impedimento de Maria Corina Machado, expressando preocupação apenas com o veto à sua substituta.

A fala de Lula sobre assunto, por ocasião ainda da coletiva de imprensa ao lado de Emmanuel Macron, repete os mesmos subterfúgios da nota do Itamaraty.

O impedimento da candidatura de Maria Corina Machado por um Suprema Corte controlado por Maduro já tinha deixado claro que os Acordos de Barbados não seriam cumpridos. Mesmo assim, Lula disse o seguinte na coletiva: “Eu disse pro Maduro: garanta que as eleições sejam a mais democrática.´”

Sem pronunciar o nome da líder da oposição, Corina Machado, a quem se refere apenas como “aquela que foi proibida de ser candidata pela justiça”, Lula disse considerar grave que a sua substituta não tenha conseguido se registrar, dando por algo de somenos importância o impedimento anterior da principal adversária de Maduro.

Lula quer que Maduro mantenha a sua ditadura, mas que tenha ardil suficiente para fazer isso aparentando ter havido eleições livres. Não nos esqueçamos do conselho do astuto Lula ao companheiro chavista: “Se eu quiser vencer uma batalha, eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo. Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e autoritarismo”, disse Lula, em maio de 2023, dirigindo-se a Maduro, e acrescentou que cabia à Venezuela “mostrar a sua narrativa para que as pessoas possam mudar de opinião”.

Pouco importa a Lula, portanto, se a Venezuela é uma democracia ou não, desde que aparente ser e a sua popularidade deixe de cair por apoiar tal regime. 

Assim como reconheceu a farsa eleitoral russa e parabenizou Putin pela sua expressiva vitória, Lula estava totalmente disposto a fazer o mesmo com uma futura eleição de Maduro na qual a sua maior opositora estaria eliminada do jogo. 

Mas Maduro é aloprado demais. Sem saber como aplicar a lição do companheiro mais astuto e mostrando-se inábil na construção de uma narrativa verossímil de democracia na Venezuela, o ditador vizinho está se tornando um estorvo para Lula.

Duas caras

Lula tem duas caras. Ele quer ser o líder das autocracias do sul global sem deixar de ser bajulado por líderes progressistas e globalistas do Ocidente, a exemplo de Emmanuel Macron. 

Parte da imprensa que ainda respira no Brasil tem apontado essas contradições, dando a conhecer o presidente do Brasil por aquilo que ele realmente é e não por aquilo que ele quer aparentar ser. 

Ao cidadão, cabe, cada vez mais, a responsabilidade de buscar um jornalismo comprometido e vigilante e repudiar um certo tipo de jornalismo servil, feito por mentes infantilizadas, que não conseguem conter o embevecimento juvenil com a proximidade do poder.

Terrorismo tempera salada russa da desinformação de Putin no Ocidente

Esta semana, o governo russo atualizou para 143 o número de mortos no atentado terrorista no Crocus City Hall, casa de espetáculos da periferia de Moscou. Há 182 feridos, mais de 80 deles hospitalizados. Segundo informações do portal russo Baza, 95 pessoas permanecem desaparecidas. Até agora, 11 pessoas foram presas por envolvimento no crime.

As imagens são aterrorizantes. Os terroristas entraram numa casa de espetáculo atirando a esmo contra civis, incluindo crianças. A autoria foi assumida pelo Estado Islâmico, mais precisamente a ramificação Estado Islâmico do Khorasan.

Para muitos pode parecer algo surpreendente ou inusitado. Não é. A Rússia talvez seja a única força eficiente para conter o jihadismo islâmico, com amplo sucesso em ações no continente africano. Por isso, é vista como grande inimiga do ISIS e de diversos outros grupos do tipo. Eles já cometeram diversos atentados contra o país.

Em 2022, o Estado Islâmico explodiu a embaixada da Rússia em Cabul, no Afeganistão, matando 4 funcionários. Antes, tinha feito um ataque ainda mais sangrento. No ano de 2015, 224 pessoas morreram quando o Estado Islâmico explodiu um avião russo que decolava do Egito. O grupo também considera a Rússia responsável  por sua derrota em guerras como a do Afeganistão e da Chechênia.

Aí existe uma outra nuance ainda mais complicada: o Estado Islâmico tem como seu pior inimigo o Talebã – acredite se quiser – e considera a Rússia como próxima desse grupo, considerado herege. O ISIS tem como objetivo estabelecer um califado, ou seja, uma nação governada de acordo com suas regras religiosas extremistas. O ideal é que essa seja a pátria mundial, mas ela começa aos poucos.

O início da ocupação foi na Síria e no Iraque, mas a derrota do ISIS ali é total, principalmente por causa da ação da Rússia em apoio ao governo sírio. Os terroristas decidiram buscar outros locais, como o Afeganistão e o leste do continente africano. Mais uma vez, a Rússia é um obstáculo.

O que ocorre no continente africano é bastante curioso. Caso tenha interesse em se aprofundar, fiz um artigo meses atrás para o Instituto Monitor da Democracia sobre este tema específico. O Grupo Wagner, braço de guerra privada de Putin, foi eficiente para varrer do continente africano diversas células do Estado Islâmico. O ditador matou seu aliado, que era o dono do Grupo Wagner, Yevgeny Viktorovich Prigozhin. A eficiência de suas forças indiretas no continente africano continua mesmo assim.

O Estado Islâmico já assumiu publicamente a autoria do atentado e é provável que venha a promover outros. Quando uma organização jihadista está perdendo territórios, é natural provocar terror para demonstrar poder e atrair mais adeptos.

Os Estados Unidos alegam que já haviam previsto a atividade terrorista naquela região e avisado o governo russo, que nada teria feito. Putin nega e agora usa o atentado para desinformação e demonstrações de brutalidade.

As imagens dos presos pelos atentados correram o mundo. Estão passando por audiências nos tribunais completamente arrebentados, espancados pelas forças de segurança russas.

Os suspeitos identificados seriam do Tadjiquistão: Dalerdzhon Mirzoyev, Saidakrami Murodali Rachabalizoda, Shamsidin Fariduni e Muhammadsobir Fayzov.

Fariduni tinha o rosto completamente inchado. Mirzoyev apareceu no tribunal com hematomas nos olhos. Rachabalizoda a mesma coisa, mas com a adição de uma faixa na orelha. Segundo as autoridades, um pedaço foi cortado na prisão. Fayzov chegou numa cadeira de rodas e parecia estar sem um olho. O governo Putin não disse claramente qual a ligação deles com o Estado Islâmico. Aliás, fez justamente o contrário.

Em pronunciamentos públicos, o ditador russo disse que havia indícios de participação da Ucrânia no atentado. Seria um veículo com placas ucranianas que foi utilizado pelos terroristas. Parece uma afirmação possível de ser verdadeira e circunstancial. Não é, é parte do sofisticado esquema russo de desinformação focado na guerra da Ucrânia.

A ditadura considera crime “fake news” sobre a guerra. Ou seja, contrariar o que Putin diz e condenar a invasão rende uma pena de cadeia. Mais recentemente, é também possível o confisco de bens de quem criticar a invasão da Ucrânia. Isso não cessa, mas diminui consideravelmente a produção interna de conteúdo sobre isso.

No Ocidente, Putin consegue a estranha façanha de ter apoio em todos os extremos políticos, seja de direita ou de esquerda. Esse mecanismo de jogar do nada uma informação sobre a Ucrânia é feito sob medida para radicais, que vivem divorciados da verdade. Eles não precisam ser convencidos, só precisam ser instigados à dúvida sobre uma realidade que rejeitam.

Como querem acreditar que a Ucrânia invadida é o bandido e a Rússia invasora é o mocinho, os radicais se agarram a qualquer fio de narrativa que os afaste da realidade. Esta semana, a Rússia fez bombardeios de mísseis contra alvos civis na Ucrânia, incluindo uma faculdade. O radical vai desprezar essa informação e focar na história de que a Ucrânia é terrorista e faz atentados na Rússia. No Brasil, isso pegou principalmente na esquerda mais abastada. Perguntados sobre o atentado, vários têm impressão de que a Ucrânia está envolvida.

Ao mesmo tempo, Putin lança um agrado para a extrema-direita na pauta de costumes. O ditador acaba de equiparar a militância LGBT ao terrorismo no país. É um passo extremo, jamais tomado nem pelas ditaduras teocráticas mais duras.

A criminalização da homossexualidade, que é deplorável, existe em vários países do mundo, principalmente nas ditaduras teocráticas. Putin entrou num outro patamar agora, endurecendo ainda mais sua escalada de década contra homossexuais. Não é mais só crime, é terrorismo.

Veja o que ocorreu com os terroristas no caso do teatro, é o mesmo que pode acontecer com militantes LGBT. Por incrível que pareça, tem gente aqui no Brasil e em outros países ocidentais apoiando isso. Argumentam que a militância está tão agressiva e tão eficiente ao impor suas crendices à sociedade que alguém precisa parar com isso. As pessoas não ligam que a solução seja um ditador equiparar militância política a terrorismo.

Vladimir Putin acaba de vencer novamente eleições fraudadas. Observadores internacionais dizem que foi a mais fraudada que presenciaram por ali. A diplomacia brasileira, também presente, atesta que houve normalidade. Ele vai agora bater o record de Joseph Stálin como governante mais longevo da Rússia. Stálin permaneceu 26 anos no poder, Putin chegou em 1999. Ambos trabalharam fortemente para moldar o pensamento das elites ocidentais. Os ditadores russos aprenderam muito bem como a desinformação é poderosa, os ocidentais não aprenderam nada.

Aliança Franco-Brasileira

A visita de Emmanuel Macron ao Brasil é importante em termos econômicos e simbólica em termos políticos, uma vez que a França possui laços estratégicos e profundas ligações econômicas com nosso país. Isto explica por que as agendas estão além das diferenças, focando em parcerias essenciais para fortalecer os laços entre nações democráticas e economias complementares como na área ambiental, política industrial, energia verde, transição energética, além das relações econômicas e financeiras tradicionais.

Pelo critério de controlador final, a França ocupa a posição de 3º maior investidor no Brasil, com cerca de US$ 38 bilhões investidos. Em 2023, a corrente de comércio bilateral alcançou US$ 8,4 bilhões. Estamos falando de um parceiro essencial para os fluxos de comércio exterior brasileiro, além de uma nação com peso econômico fundamental nas cadeias globais de valor.

Dentro do contexto da União Europeia esta importância se multiplica, uma vez que o bloco é o investidor estrangeiro mais importante do país, aportando mais de dez vezes aquilo que os chineses vêm trazendo de capital externo ao Brasil. Enquanto a China é hábil em divulgar seus aportes, os europeus, até pelo caráter difuso multinacional, têm menos reconhecimento quando o assunto é o seu investimento direto estrangeiro.

O acordo entre Mercosul e União Europeia, emperrado nos últimos tempos, exatamente diante da dificuldade de avançar em temas protecionistas em ambos os lados, por certo está longe de atingir um denominador comum. Porém, os europeus, seja como bloco e até mesmo por iniciativa de seus próprios países, tem buscado forma de se proteger dos investimentos estrangeiros predatórios. Um tema que poderia servir de inspiração aos países do Mercosul, algo que deixaria os países do bloco menos expostos em sua soberania diante do brutal avanço de aquisição estrangeira de ativos estratégicos por países que estão fora da união aduaneira.

Alianças comerciais e políticas com países como a França são essenciais para fortalecer nossa economia e democracia, uma vez que estamos lidando com um país democrático, com instituições e moeda estáveis, judiciário independente, regras definidas e contas públicas equilibradas. Um conjunto de fatores virtuosos para fluxos comerciais perenes e saudáveis que estimulam investimentos, dinamizam a economia e geram empregos.

Isto fica muito claro no fluxo atual que precisa ser ampliado. No Brasil já estão presentes mais de 850 empresas francesas, o que torna o país europeu o maior empregador estrangeiro em território nacional, com a geração de 500 mil empregos. A trilha é simples. Com um potencial gigantesco, uma parceria desenhada com habilidade pode impulsionar as economias de ambos os países. Há muito espaço para crescer.

O Brasil deveria privilegiar relações saudáveis com países com confiável histórico de relacionamento como possuímos com a França ao invés de se submeter aos interesses e recursos predatórios de autocracias como vem acontecendo em tempos recentes. Esta visita serve como lançamento destas iniciativas e uma reaproximação profícua de parceiros tradicionais capazes de trabalhar sistemas de parceria, investimento e integração econômica. Afinal, como sempre digo, democracias gostam democracias.

As ilusões do Ocidente sobre a força de Putin na Rússia

O número de russos assassinados no Crocus City Hall, uma das principais casas de show em Moscou, ainda não tinha sido devidamente contabilizado quando Vladimir Putin tentou associar o atentado terrorista ao governo ucraniano. Em pronunciamento, o ditador apontou que os responsáveis pelo ataque foram identificados fugindo para a fronteira com o país vizinho. “Tentaram se esconder e se mudaram para a Ucrânia, onde, de acordo com dados preliminares, uma brecha foi preparada para eles do lado ucraniano que pudessem atravessar a fronteira”, disse sem apresentar qualquer prova.

A reação foi imediata. Em resposta, Volodymyr Zelensky chamou Putin de “desprezível”. “Putin e o resto da escória estão apenas tentando jogar a culpa para alguém’, respondeu. Já o assessor presidencial Mikhailo Podoliak classificou as acusações russas como “absolutamente insustentáveis e absurdas”.

Surpreenderia é se o ataque terrorista não fosse instrumentalizado pelo Kremlin para fins de propaganda interna. Ainda que o regime russo tenha sido desmentido pelas autoridades ucranianas e pela imprensa ocidental, isso não faz qualquer diferença dentro do país, onde a liberdade de expressão é comprimida e os meios de comunicação apenas reverberam as posições oficiais do governo. Pouco importa a autoria, que já foi admitida pelo Estado Islâmico. Para Putin o que importa é usar o episódio pra reforçar seu próprio regime contra aqueles que considera os inimigos do país.

Há quem considere que o atentado possa ter algum efeito negativo na imagem de força que Putin ostenta. Líderes russos, afinal, sempre se validaram e impuseram pela demonstração de força, como fica evidente na conduta da família Romanov e dos próprios dirigentes soviéticos. Um atentado dessa magnitude poderia representar um revés ou até levantar dúvidas razoáveis sobre a capacidade de Putin em garantir a segurança interna. Mas parece um cenário pouco provável, ainda mais considerando fatos ainda mais graves ocorridos recentemente.

Nem mesmo a insurgência de Yevgeny Prigozhin e do Grupo Wagner, talvez a maior contestação aberta ao atual regime russo, foi capaz de mudar algo. No primeiro momento Putin até pareceu vacilante, mas logo um acordo foi feito, e depois Prigozhin morreu no que foi classificado como um “acidente aéreo”, em mais uma da série de “fatalidades” envolvendo críticos, opositores ou inimigos do regime.

Com a máquina de guerra financiada com recursos chineses, a oposição encurralada entre as tropas de choque e as prisões na Sibéria, e a expectativa de ficar no poder por mais tempo até do que Josef Stalin, Putin manipula os acontecimentos para reforçar a validade moral de seus objetivos geopolíticos, principalmente a invasão da Ucrânia e a expansão de seu território.

É ingenuidade do Ocidente conjecturar cenários em que Putin é destituído do poder por uma revolução ou vencido em eleições livres. Quanto antes se admitir que o ditador russo será presença inevitável no cenário internacional de médio e longo prazo, melhor será a forma de coexistência, mesmo que num cenário de permanente guerra fria.

PCO celebra com Hamas “operação heroica de esfaqueamento”

PCO, partido nanico de extrema esquerda do Brasil que – sob o silêncio conivente das nossas autoridades, tornou-se o porta-voz do grupo terrorista islâmico Hamas – fez uma postagem em sua conta no X com nada menos do que a reprodução de uma nota oficial do conhecido grupo que estuprou mulheres e meninas, matou crianças, incinerou famílias, metralhou jovens e sequestrou bebês.

É um acinte que um partido político, abrigado sob o guarda-chuva democrático brasileiro, não seja cancelado nem receba sequer alguma retaliação ao fazer apologia e incitar o terrorismo dessa forma.

Convém lembrar que, de junho de 2022 a fevereiro de 2023, o PCO teve seu perfil bloqueado por decisão no ministro do STF, após o partido referir-se a Moraes como “skinhead de toga” e acusá-lo de ter “sanha de ditadura”.

Será que uma ofensa ao excelentíssimo ministro Alexandre de Moraes é mais grave do que a defesa do terrorismo como método de luta e o enaltecimento público dos crimes mais bestiais?

Na nota oficial do Hamas, reproduzida nessa quarta, 13 de março, pelo PCO, lê-se, dentre outras barbaridades:

“Ao parabenizarmos a operação heroica de esfaqueamento no Posto de Controle do Túnel em Belém, e lamentarmos o mártir…”

“Mobilizemos nossos combatentes heroicos e nosso povo na Cisjordânia, para sustentar o confronto com a ocupação, detonar as bombas da fúria em seus rostos…”

O Partido da Causa Operária, felizmente, é um partido nanico, insignificante. Mas está tentando crescer dando palanque a um grupo terrorista, o que não pode ser tolerado.

Em mundo cada vez mais complexo, confuso, fanatizado, radical e beligerante, é uma enorme irresponsabilidade das nossas autoridades fazerem vista grossa para essa situação. Isso deixa patente a parcialidade da Justiça brasileira, que mira o que considera extremismo de direita enquanto deixa grassar o escancarado extremismo de esquerda.

Taiwan: depois da eleição, sinais de alerta

Todo ano, em março, o regime chinês encena as chamadas “Duas Sessões”: paralelamente à plenária do Congresso Nacional do Povo-CNP (poder legislativo nominal exibindo um pluralismo de fachada: oito partidos-satélites permitidos e representantes de numerosas entidades, todos instrumentalizados pela estratégia política de  “Frente Única”, sob supervisão do Departamento do Trabalho de Frente Única do Comitê Central do Partido Comunista da China) reúne-se o Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. O CN-CCPPC, outro instrumento dessa estratégia, reforça a legitimação da supremacia do Partido Comunista, tendo como missão oficial debater, vocalizar e encaminhar propostas apresentadas pelos representantes dos numerosos segmentos da sociedade. Na sequência, o CNP e o governo chancelam essas propostas transformando-as em projetos de lei e diretrizes de política pública. Tudo isso é um cerimonial meramente ‘carimbador’, pois nada é aprovado que não tenha sido previamente proposto e permitido pelos altos dirigentes do PC.

Vértice de uma pirâmide edificada, na base, por “comitês locais” (em níveis de províncias, condados, municipios etc), o Comitê Nacional compõe-se de 2.169 membros, com mandatos de cinco anos. Desse total, 544 representam o PC e os partidos satélites — a exemplo do Comitê Revolucionário do Kuomintang (Partido Nacional do Povo) Chinês e do Partido Democrático dos Camponeses e Operários Chineses, entre outros; 313 são delegados de organizações populares (e.g., Liga da Juventude Comunista, Federação Chinesa dos Sindicatos, Federação das Mulheres da China etc); 1.076 representam grupos de interesse relevantes (agricultura, ciência & tecnologia, educação, artes e literatura, entre outros); e mais de duas centenas pertencem às categorias de personalidades nominalmente “independentes” e “convidados especiais”, entre os quais o ator hollywoodiano chinês Jackie Chan.

Como não poderia deixar de ser, a anexação de Taiwan, meta obsessiva do comunismo chinês, figurou com destaque na pauta do CN. Numa reunião a que estiveram presentes militantes do ‘satélite partidário’ Comitê Revolucionário do Kuomintang Chinês, Xi Jinping, presidente da República Popular da China e secretário-geral do Partido Comunista, exortou os presentes a “contribuir [. . .] ativamente para a união de todos os patriotas — dentro e fora da China; dentro e fora de Taiwan — e o fortalecimento da oposição à independência” da ilha, “expandir o apoio à reunificação e impulsionar conjuntamente a reunificação [. . .]”. Prosseguindo, o orador ressaltou: “Devemos promover ativamente o intercâmbio e a cooperação entre os dois lados do Estreito em ciência & tecnologia, agricultura, desenvolvimento da juventude e outros campos e aprofundar o desenvolvimento integrado de ambos os lados do Estreito”.

Estratégia multifacetada – Na prática, a China vai continuar explorando as fissuras político-sociais na opinião pública taiwanesa, agora mirando o governo do recém-eleito presidente William Lai, que tomará posse em maio.

Lai, que é o vice da atual presidente Tsai Ing-wen obteve uma terceira vitória consecutiva para o seu Partido Democrático-Popular (DPP) no pleito de janeiro último à chefia do Poder Executivo.

Contudo, como alerta o ex-diplomata americano, atualmente pesquisador do think tank Fundação para o Desenvolvimento das Democracias, sediado em Washington, D. C., Craig Singleton, por trás do triunfo de Lai e do DPP, subsistem fragilidades que não escapam ao olhar vigilante e hostil de Pequim.

Para começar, Singleton observa em recente artigo para o portal da revista Foreign Policy, essa vitória foi por maioria relativa (40%), com os restantes 60% divididos entre os candidatos dos dois partidos de oposição: Hou You-yi (Kuomintang-KMT) e Ko Wen-je (Partido do Povo de Taiwan, fundado em 2019). Ambos defendem uma linha acomodacionista em relação à China continental. Já o DPP, muito embora não chegue ao extremo de desafiar Pequim com uma ‘bandeira’ oficial pró-independência, pretende manter indefinidamente a  atual autonomia de facto da República da China, nome oficial de Taiwan.

Comparativamente, tanto em 2016 quanto em 2020, Tsai venceu por maioria absoluta, respectivamente com 16 e 17 pontos percentuais acima da votação obtida agora pelo seu vice.

Ao mesmo tempo, o DPP acaba de perder a maioria no Yuan Legislativo (parlamento), que passará a ser presidido por Hou, do KMT. Enquanto o KMT conquistou 14 novas cadeiras e o TPP, três, o DPP perdeu 10 deputados.    Isso lança uma sombra de incerteza sobre o prosseguimento de projetos importantes da atual administração, como a ampliação do período de serviço militar obrigatório (dos atuais quatro meses para um ano) e o desenvolvimento de um submarino taiwanês.

Consultorias especializadas na análise de redes digitais, como o Doublethink Lab, entre outras, descobriram que, durante a campanha eleitoral, o aplicativo TikTok, controlado pelo grupo chinês ByteDance, divulgou propaganda favorável aos dois presidenciáveis oposicionistas e veiculou desinformação contra o partido do governo, incluindo fake news sobre um suposto apoio do governo Tsai a programas de armas biológicas dos Estados Unidos, o que, aliás, repete propaganda do regime Putin contra a Ucrânia….

A milícia digital da China também criou perfis falsos de portais noticiosos tradicionais, a fim de espalhar notícias inverídicas favoráveis à reunificação.

Outro fator que pode ter contribuído para enfraquecer o desempenho da candidatura Lai foi a ‘guerra de nervos’ representada por longos meses de manobras e ‘exercícios’ militares intimidatórios do Exército de Libertação Popular, imiscuindo-se no espaço aeronaval de Taiwan.

Por último, mas não em último, Singleton nota que, curiosamente, depois das eleições taiwanesas, a revista teórica do PC da China, Qiushi, reproduziu o texto de um discurso proferido por Xi Jinping 18 meses antes, condenando supostas atitudes separatistas de Taiwan à época da visita à ilha de delegação de congressistas dos Estados Unidos encabeçada pela então presidente da Câmara dos Representantes, a deputada Democrata Nancy Pelosi.

Para concluir, tudo indica que o regime de Pequim prosseguirá com suas campanhas de desinformação, manobras militares de intimidação e pressões econômicas sobre os parceiros comerciais de Taiwan, uma estratégia multifacetada visando predispor o povo da ilha favoravelmente à anexação, o que traduziria uma séria derrota para a causa da democracia liberal em todo o mundo.

Legado de Mandela

Aqueles que estudam ou já visitaram a África do Sul entendem o papel central de Nelson Mandela na reconstrução do país. Recém-saído do terrível modelo do apartheid, que vigorou durante décadas, o território poderia passar por um terrível conflito, algo como uma guerra civil, porém, a habilidade política de seus líderes e a ponderação, equilíbrio e sensibilidade de Mandela fizeram com que o país trilhasse um caminho virtuoso de entendimento e reconciliação.

Nações partidas por quaisquer motivos precisam lembrar dos valores que os unem e partir para duas palavras essenciais que fizeram de Mandela um estadista, alguém que não pensava na próxima eleição, mas nas próximas gerações: perdão e reconciliação. O caminho escolhido para liderar o país jamais passou pela raiva ou vingança, mas pelo sentimento de união capaz fazer com que as diferenças fossem vencidas.

O Brasil passa há tempos por outro caminho, algo que transita pela raiva e pelo ressentimento, com claras pitadas de vingança em ambos os lados do espectro político. Uma posição infantil que apenas apequena nossa nação e torna a adoção de soluções comuns um objetivo praticamente intransponível. Parece que depois de um elogiado processo de redemocratização que teve como ponto central a adoção do instituto da anistia, nosso país retrocedeu no caminho do amadurecimento democrático.

Atualmente valem mais as diferenças do que o diálogo, e a política se tornou um jogo no qual busca-se a qualquer custo a retribuição pessoal dos dissabores do passado. Neste tabuleiro, está em desvantagem aquele grupo fora do poder e a alternância destes no espectro político faz com que vivamos um duelo que serve apenas aqueles que bebem na fonte do ódio e da polarização.

Em 1990, Mandela deixava a prisão depois de 27 anos e ao invés de se vingar da injustiça sofrida, fez a opção de perdoar seus algozes como forma de criar um sentimento de reconciliação na África do Sul. Ele dizia que “se você quer fazer as pazes com seu inimigo, você tem que trabalhar com ele. Em seguida, ele irá tornar-se seu parceiro”. É possível fazer política por meio do ódio ou da reconciliação. Depende apenas de quem exerce o poder.

O Brasil está passando pela polarização, mas também pela opção do entendimento na última década e a escolha de ambos os lados têm sido um caminho oposto daquele percorrido por Mandela. Como vimos, quando o esforço passa pela reconciliação, o tecido social se reconstrói, a nação avança e progride. Quando o caminho fica preso nas diferenças e no discurso de ódio, apenas os políticos ganham. Turbinam seus votos, porém entregam o país ao caos.

Há tempos escrevo que a polarização é o grande mal que assola nosso país, que nos impede de avançar e construir as bases de uma grande nação. Mais do que isso, vem empurrando o Brasil para uma deterioração de sua democracia, nos fazendo flertar com os extremos e o risco de quebra institucional, estabelecendo parcerias com países que violam diretos e garantias fundamentais. A liderança que precisamos passa por alguém capaz de unir o país apesar das diferenças. O legado de Mandela é a maior prova que o perdão e a reconciliação são a única forma de unir um país, liderar e construir uma verdadeira nação.

Segurança Alimentar: A estratégia multidimensional de Putin

A invasão russa na Ucrânia é conseqüência da cosmovisão que alimenta a ideologia eurasiana prevalente nas cúpulas militares, políticas e religiosas da Rússia atual e um dos pilares dessa visão de mundo é que a Rússia sofre um cercamento de uma frente organizada ocidental que visa destruir o jeito russo de viver. Assim, para escapar do cercamento e ocupar o lugar que essa ideologia considera natural da Rússia no mundo é preciso desarmar a frente unida que enfrenta a Rússia e criar um espaço controlado direta ou indiretamente que sirva de tampão entre as fronteiras russas e a Europa ocidental.

Nesse contexto, resta claro que Putin precisa criar divisões entre seus aliados, subverter seus valores democráticos assim influenciar a opinião pública e aproveitar divisões internas nos adversários. E uma arma poderosa para isso é a pressão econômica e de segurança alimentar e o que o mundo assiste hoje na Ucrânia é aplicação dessa estratégia multidimensional.

Todos os observadores internacionais, do casual ao profissional, conseguiram antever que uma guerra em uma região conhecida pela produção agrícola afetaria o mercado global de alimentos. Era esperado que a própria movimentação de tropas e os combates nas regiões produtoras e os bloqueios a navios e danos secundários as estradas e infraestrutura gerariam quedas nas colheitas e na exportação dos grãos ucranianos.

O que muitos não anteciparam era a campanha deliberada de ataque a produção agrícola ucraniana, batizada em russo como “operação agricultura”, que consiste entre outras medidas de infestar os campos ucranianos de minas terrestres, ataques tendo como alvo principal a infraestrutura agrícola como silos, unidades de processamento, estrada, ferrovias, portos, galpões, campos e fazendas além das perdas humanas da mão de obra desse setor. As perdas desse setor são contabilizadas em torno de 80 bilhões de dólares no período do conflito.

Entre os principais clientes das exportações de grãos ucranianos estão países africanos, do Oriente Médio e a China, o que gerou uma pressão considerável para que a Rússia permitisse o escoamento da produção agrícola ucraniana pelo Mar Negro. A China, ciente da pressão que a Segurança Alimentar tem na manutenção de seu regime, encontrou no Brasil fornecedores alternativos do milho que precisava e com certeza esse fato contribuiu para que a Rússia pudesse romper em julho de 2023 esse sistema de escoamento voltando a atacar a infraestrutura de exportação ucraniana.

Essa estratégia nega aos ucranianos acesso a renda da exportação o que contribui ainda mais para queda do PIB e dificulta seu esforço de guerra. A Rússia substituiu a Ucrânia em muitos desses mercados afetados, garantindo ainda que seja vista positivamente por várias correntes de opinião nessas regiões e como parceiro a não ser irritado de diversos governos dependentes de importação de alimentos.

A Ucrânia tem sido capaz de escoar parte da sua produção para a União Européia, mas o fluxo repentino de grãos para esses mercados tem causado queda nos preços, o que tem instado muitos fazendeiros a protestarem. Esse descontentamento é aproveitado pela máquina russa de propaganda e usada para manipular eleições e discussão publica criando um sentimento “anti-ucraniano”. Caso seja bem-sucedida essa estratégia pode gerar paralisia nos mecanismos regionais como OTAN ou mesmo condenar a Ucrânia a ser anexada pela Rússia.

A tudo isso se soma que os países de menor desenvolvimento e os países em desenvolvimento foram, desde a pandemia de Covid-19, duramente afetados pela inflação dos preços de alimentos e muitos governos não tem espaço para acomodar ou subsidiar preços de alimentos para suas populações, o que expõe uma parcela dessas pessoas ao terrível espectro da insegurança alimentar, ou seja, de não ser capaz de conseguir comprar alimentos e seus governos e entidades civis não terem capacidade para suprir essa carência.

A estratégia via agricultura está conseguindo contribuir para gerar e ampliar insegurança alimentar no mundo, sentimento anti-ucraniano, divisão entre os membros da OTAN e grandes lucros com ampliação de exportações russas, bem como acesso a novos mercados, além dos ganhar em soft power da propaganda pró-russa e, sobretudo, causar danos econômicos e grande sofrimento humano na Ucrânia.

Verdadeiro Embate

O debate político polarizado tornou-se parte do cotidiano dos brasileiros. Embates entre aqueles que se identificam com a esquerda e outros com a direita, potencializados pela disputa entre Bolsonaro e Lula, passaram a definir amizades, convivência em família e até posições de emprego. Perturbados pela obediência cega aos líderes que pautam o debate nacional, a maioria se esquece que a disputa entre esquerda e direita passa longe daquilo que realmente pauta o real desafio político do mundo na atualidade.

Estamos falando de duas frentes. De um lado estão as autocracias, regimes autoritários e totalitários e de outro situam-se as democracias. Em ambos existem vértices da direita e da esquerda, sendo ineficaz nos dias de hoje classificar-se desta forma simplista, uma vez que a direita autocrática dialoga sem rodeios com a esquerda autoritária e ambos estão muito longe da direita e da esquerda liberais. Em resumo, estar na direita ou na esquerda não faz com que alguém seja necessariamente um partidário da democracia.

Esta lógica já foi explicada por David Nolan em 1969. Seu diagrama é traçado com base em dois eixos centrais: liberdade econômica e liberdade individual. O gráfico também é dividido em cinco tendências políticas: direita, esquerda, centro, liberal e totalitário. Ali conseguimos perceber, por exemplo, que regimes autocráticos de direita estão muito mais próximos dos autoritários de esquerda do que da direita liberal. Ao mesmo tempo, vemos que estes estão muito mais próximos da esquerda liberal do que se imagina. A concepção do diagrama é didática, simples e objetiva.

Diante disso podemos enxergar com mais clareza o jogo geopolítico que se impôs no tabuleiro atual. Estamos diante de um alinhamento entre autocracias e autoritários de um lado, sejam de esquerda ou direita, da mesma forma que do outro lado há um grupo coeso de democracias que incluem governos de esquerda e direita. Isso explica por que reduzir a divisão entre dois polos tradicionais pode gerar confusão e erros de avaliação que turvam a leitura política de muitos brasileiros.

Esta lógica explica a aproximação do Brasil com a Rússia de Putin, seja em um governo com viés de direita, assim como de esquerda, ou seja, com Bolsonaro e Lula. O mesmo raciocínio explica o fascínio da nova direita brasileira com Viktor Orbán na Hungria e Nayib Bukele em El Salvador, assim como nossa esquerda se encanta com a China de Xi Jinping e alivia a pressão sobre Cuba, Nicarágua e Venezuela, dirigidas pelos ditadores Miguel Díaz-Canel, Daniel Ortega e Nicolás Maduro.

Fato é que falta de alinhamento do Brasil com países democráticos é a principal perda de nossa nação em tempos recentes. Seja pelo caminho da esquerda ou da direita, o resultado tem sido o mesmo, ou seja, aproximação com autocracias, teocracias, regimes autoritários e até mesmo totalitários. Algo que se traduz em uma lástima para um país que se enxerga como uma democracia.

O verdadeiro embate atual está posto com base em nações que possuem compromissos democráticos e aquelas que decidiram seguir o caminho das autocracias. Em ambos, veremos nomes da esquerda e da direita. Deveríamos parar de nos preocupar com o acessório e passar a avaliar aquilo que é essencial.

O novo antissemitismo, resenha do texto de Noah Feldman

A revista americana Time publicou, em 27 de fevereiro, um importante ensaio intitulado O novo antissemitismo, assinada por Noah Feldman, professor da Harvard Law School e o autor do livro To Be a Jew Today: A New Guide to God, Israel, and the Jewish People (Ser Judeu Hoje: Um Novo Guia para Deus, Israel e o Povo Judeu).

O alarmante aumento de casos de antissemitismo em todo o mundo tem dado ensejo a inflamados debates e renovadas reflexões. Um dos pontos para o qual as análises atuais têm chamado mais atenção é a emergência de novas formas de antissemitismo. Já abordamos essa questão em artigos anteriores e, mais detalhadamente, no artigo intitulado “islamo-esquerdismo: a nova face do ódio ao judeu.”

No referido artigo, citamos a constatação do filósofo francês Luc Ferry de que o antissemitismo católico, baseado na antiga acusação de deicídio e o antissemitismo nazista, baseado na teoria dos judeus como raça inferior estavam em vias de extinção, mas que, pelo contrário, o antissemitismo islâmico da Irmandade Muçulmana que, na década de 1930, reforçou o antissemitismo nazista, encontra hoje ressonância nas ideologias contemporâneas de esquerda, especialmente no chamado wokismo, que reduz tudo ao simplismo da lógica opressor-oprimido e em cuja perspectiva ideológica “o sionismo é o mais recente avatar do colonialismo ocidental e racista apoiado pelo neoliberalismo americano.”

A análise de Noah Feldman, publicada na Times, corrobora essa abordagem, reconhecendo também que o antissemitismo hoje não é impulsionado primariamente nem pela religião cristã nem pela teoria nazista da raça superior. O antissemitismo, pra ele, não é “um conjunto imutável de ideias derivadas de crenças antigas”, mas “uma força criativa, mutável e multiforme” que “reflete as preocupações ideológicas do momento” e que “conseguiu reinventar-se múltiplas vezes ao longo da história, mantendo sempre alguns dos antigos tropos, ao mesmo tempo que criava novos, adaptados às circunstâncias atuais”.

O ponto fundamental do discurso antissemita é que, nele, “os judeus são sempre levados a exemplificar o que um determinado grupo de pessoas considera ser a pior característica da ordem social em que vivem”. Assim sendo, “o seu conteúdo pode ser alterado e mudado à medida que as preocupações e os julgamentos morais de uma sociedade mudam.

O antissemitismo do século XIX já marca uma reinvenção do antissemitismo clássico. O aspecto do preconceito religioso vai cedendo lugar a teorias da conspiração como a de que os judeus controlavam secretamente o mundo. 

No século XX, sob ângulos diferentes, tanto o nazismo como o marxismo identificaram os judeus como um inimigo que mereciam ser expurgados.

Hoje, constata Feldman, “a pseudociência racial é uma vergonha e a luta entre o capitalismo e o comunismo tornou-se ultrapassada. O populismo antielitista ainda pode basear-se em velhas mentiras sobre o poder judaico, e essas ainda repercutem em certos públicos, especialmente na extrema direita. Mas é mais provável que a corrente mais perniciosamente criativa no pensamento antissemita contemporâneo venha da esquerda”.

Assim como Luc Ferry, no artigo intitulado “Judeofobia: compreendendo a nova situação”, tenta nos alertar da urgência de se reconhecer as diferentes faces do ódio ao judeu, sob risco de não nos darmos conta do que realmente nos ameaça hoje, também o artigo de Noah Feldman faz soar o alarme de que “o antissemitismo está se transformando novamente, neste momento, diante dos nossos olhos”.

A nova situação, alertada por Ferry, é que, aos olhos do wokismo e do islamo-esquerdismo, o muçulmano substituiu o proletário no papel dos oprimidos e a retórica do “Ocidente colonizador” como o lado opressor uniu ao wokismo e ao islamismo o tal “Sul global”, fazendo com que aproximadamente dois terços do planeta esteja sendo movida pelo ódio galvanizado por essa narrativa ideológica.

Noah Feldman, por sua vez, acrescenta a esse diagnóstico a análise de que “o cerne do novo antissemitismo reside na ideia de que os judeus não são um povo historicamente oprimido que procura a autopreservação, mas sim opressores: imperialistas, colonialistas e até supremacistas brancos. Esta visão preserva vestígios do tropo de que os judeus exercem um vasto poder. Atualiza criativamente essa narrativa às circunstâncias contemporâneas e às preocupações culturais atuais com a natureza do poder e da injustiça”.

Embora as preocupações com o abuso do poder e com as injustiças sejam perfeitamente legítimas, explica Feldman, é importante distinguir as críticas idôneas das formas antissemitas como elas podem ser utilizadas. Essa cautela é importante porque “Israel, o primeiro Estado judeu a existir em dois milênios, desempenha um papel central na narrativa do novo antissemitismo.”

Israel e o novo antissemitismo

Não é inerentemente antissemita criticar Israel. O seu poder, como qualquer poder nacional, pode estar sujeito a críticas legítimas e justas”, pondera Feldman. Porém, na crítica a Israel, categorias como o imperialismosupremacia branca colonialismo têm sido manipuladas sem nenhum rigor para fazer julgamentos morais e tentar deslegitimar a sua existência.

Segundo o professor, essas categorias não se enquadram muito bem na especificidade de Israel.

O conceito de imperialismo, por exemplo, foi desenvolvido para descrever potências europeias que conquistaram, controlaram e exploraram vastos territórios no Sul e no Leste globais, enquanto “Israel é uma potência regional do Oriente Médio com uma presença minúscula, e não um império global ou continental concebido para extrair recursos e mão-de-obra” e foi criado para abrigar judeus deslocados depois de 6 milhões deles terem sido mortos no Holocausto.

O paradigma da supremacia branca tampouco corresponde facilmente aos judeus. Conforme explica o professor da Harvard Law School, aproximadamente metade dos judeus de Israel “não são etnicamente europeus em nenhum sentido, muito menos racialmente brancos, um número significativo de judeus israelenses é de origem etíope e a pequena comunidade de israelenses hebreus negros em Israel é etnicamente afro-americana”.

Sobre a consideração dos primeiros colonos sionistas como colonialistas, pode-se apontar que boa parte deles eram pessoas apátridas e oprimidas que procuravam refúgio na antiga terra prometida onde alguns judeus sempre viveram.

A conclusão de Noah Feldman é que, “a narrativa de Israel como um opressor colonizador igual ou pior do que os EUA, o Canadá e a Austrália é fundamentalmente enganadora. Aqueles que a promovem correm o risco de perpetuar o antissemitismo ao condenarem o Estado Judeu […] a única pátria de um povo historicamente oprimido que não tem outro lugar a que chamar de seu”.

Negação do holocausto à direita e à esquerda

O uso arbitrário das referidas categorias faz parte, portanto, da estratégica retórica do novo antissemitismo, que não para, porém, por aí: “para enfatizar a narrativa dos judeus como opressores, o novo antissemitismo deve também, de alguma forma, contornar não apenas dois milênios de opressão judaica, mas também o Holocausto, o maior assassinato organizado e institucionalizado de qualquer grupo étnico na história da humanidade.

Nesse aspecto os dois extremos ideológicos se tocam: “à direita, os antissemitas ou negam que o Holocausto tenha acontecido ou afirmam que o seu alcance foi exagerado. À esquerda, uma linha é que os judeus estão usando o Holocausto como arma para legitimar a opressão dos palestinos”.

Nesse ponto, gostaria de pedir ao leitor que refletisse sobre a argumentação que se segue tendo em mente as recentes palavras do presidente Luís Inácio Lula da Silva quando comparou a ação de Israel com o holocausto e acusou Israel de cometer genocídio, promovendo assim uma crise diplomática de grande dimensão.

Levando em conta a força e a clareza do restante do ensaio que me propus a comentar, despeço-me aqui deixando o próprio autor finalizar. 

Com a palavra, Noah Feldman

Transcrevo, a seguir, as longas, mas importantes citações do texto em pauta O novo antissemitismo, de Noah Feldman:

“Durante a Guerra de Gaza, alguns argumentaram que Israel, tendo sofrido o trauma do Holocausto, está agora perpetrando um genocídio contra o povo palestino. Tal como outras críticas a Israel, a acusação de genocídio não é inerentemente antissemita. No entanto, a acusação de genocídio é especialmente propensa a desviar-se para o antissemitismo porque o Holocausto é o exemplo arquetípico do crime de genocídio.

O genocídio foi reconhecido como crime pela comunidade internacional após o Holocausto. Acusar Israel de genocídio pode funcionar, intencionalmente ou não, como uma forma de apagar a memória do Holocausto e de transformar os judeus de vítimas em opressores. […]

Os esforços de Israel para se defender contra o Hamas, mesmo que envolvam a morte de um número desproporcional de civis, não transformam Israel num ator genocida comparável aos nazis ou ao genocídio em Ruanda. A acusação de genocídio depende da intenção. E Israel, como Estado, não está travando a Guerra de Gaza com a intenção de destruir o povo palestino.

Os objetivos de guerra declarados de Israel são responsabilizar o Hamas pelo ataque de 7 de Outubro a Israel e recuperar os seus cidadãos que ainda estão mantidos em cativeiro. Esses objetivos são legais em si mesmos.

Os meios que Israel utilizou estão sujeitos a críticas legítimas por terem matado demasiados civis como danos colaterais. Mas a campanha militar de Israel foi conduzida de acordo com a interpretação de Israel das leis internacionais da guerra. Não existe uma resposta única e definitiva de direito internacional à questão de saber até que ponto os danos colaterais tornam um ataque desproporcional ao seu objetivo militar concreto. A abordagem de Israel assemelha-se às campanhas travadas pelos EUA e pelos seus parceiros de coligação no Iraque, no Afeganistão, e pela coligação internacional na batalha contra o ISIS pelo controlo de Mossul. Mesmo que o número de mortes de civis provocadas pelo ar pareça ser mais elevado, é importante reconhecer que Israel também enfrenta quilômetros de túneis intencionalmente ligados a instalações civis pelo Hamas.

Para ser claro: por uma questão de valor humano, uma criança que morre às mãos de um assassino genocida não é diferente daquela que morre como dano colateral num ataque legal. A criança é igualmente inocente e a tristeza dos pais é igualmente profunda. No entanto, do ponto de vista do direito internacional, a diferença é decisiva. Durante o ataque do Hamas, os terroristas assassinaram intencionalmente crianças e violaram mulheres. A sua carta apela à destruição do Estado judeu. No entanto, a acusação de genocídio está senta feita contra Israel.

Estes fatos relevantes são importantes para colocar a acusação de genocídio no contexto de potencial antissemitismo. Nem a África do Sul nem outros estados apresentaram um caso de genocídio contra a China pela sua conduta no Tibete ou em Xinjiang, ou contra a Rússia pela sua invasão da Ucrânia. Há algo especificamente digno de nota em lançar a acusação contra o Estado Judeu – algo entrelaçado com a nova narrativa dos Judeus como opressores arquetípicos em vez de vítimas arquetípicas. Chame-o de prestidigitação do genocídio: se os Judeus forem retratados como genocidas – se Israel se tornar o próprio arquétipo de um Estado genocida – então os Judeus serão muito menos propensos a serem concebidos como um povo historicamente oprimido e empenhado em autodefesa.

A nova narrativa dos judeus como opressores está, no final, demasiado próxima da tradição antissemita de apontar os judeus como merecedores únicos de condenação e punição. Tal como aquelas formas anteriores de antissemitismo, o novo tipo não tem a ver, em última análise, com os judeus, mas com o impulso humano de apontar o dedo a alguém que pode ser obrigado a carregar o peso dos nossos males sociais.

A opressão é real. O poder pode ser exercido sem justiça. Israel não deveria estar imune a críticas quando age de forma errada. No entanto, a história horrível e a resiliência invicta do antissemitismo significam que os modos de ataque retórico a Israel e aos judeus devem ser sujeitos a um escrutínio cuidadoso”.