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Trump e o nó ucraniano

Os eleitores dos Estados Unidos deram uma vitória incontestável ao candidato republicano Donald Trump e ao movimento político que o cerca, conhecido pela sigla MAGA do slogan Make America Great Again usado pela primeira campanha de Trump. Em sua campanha Trump prometeu pacificar a Ucrânia no dia primeiro de sua gestão, descartando as hipérboles naturais de uma campanha eleitoral como se desenha, até o momento, a política do futuro governo para a Ucrânia.

É preciso ter em mente que a solução para a guerra na Ucrânia, ainda que negociada, não será uma reedição das conferências de Yalta e Potsdam nas quais os nascentes superpoderes decidiram os destinos de muitas nações ao findar da Segunda Guerra Mundial. E, qualquer construção negociada terá que balancear uma miríade de interesses alimentados por inúmeras correntes de opinião em cada um dos atores envolvidos. Em outras palavras, Trump e sua equipe terão que lidar com interesses internos de vários grupos nos EUA, com outros atores, incluindo aí, os aliados europeus e a China, além dos cálculos de Putin. E isso tudo sob forte escrutínio da imprensa, da opinião pública e das casas legislativas dos Estados Unidos.

Além de complexa, a situação ucraniana é dinâmica, ou seja, os interesses vão se adaptando aos movimentos dos atores e outras fontes de tensão extra-regional que influenciam e limitam a capacidade de ação dos envolvidos. A gestão Biden, por exemplo, teve dificuldade de implementar uma política de rápida ajuda militar para Ucrânia, uma vez que isso envolve o envio de equipamentos militares, em uso, ou da reserva das Forças Armadas Americanas, o que gera uma série de embaraços e reações no Congresso e na própria máquina burocrática.

A escassez de material bélico, por sua vez, propiciou a manutenção do lento e custoso, em termos de vidas humanas, avanço da Rússia e deu tempo para que o gigante eurasiático encontrasse maneiras de enfraquecer e subverter o isolamento internacional e as sanções. Construindo, por exemplo, seu acordo com a Coreia do Norte, para importação de armas e o envio de soldados.

Há relatos de múltiplas fontes sobre a concentração de forças russas na Ucrânia mostra que pode haver uma ofensiva russa de inverno, se as condições climáticas forem brandas, que deixa claro que para os russos a percepção é que um momento positivo nos esforços de guerra. No front interno a sociedade russa não dá sinais de inquietação e protestos massivos, mesmo com as elevadas perdas humanas e seu sistema econômico tem conseguido se manter funcionando. No contexto regional, a Europa não mostra sinais de compromisso em aumentar sua capacidade industrial bélica e todos esses fatores juntos apontam para uma Rússia, muito pouco disposta a negociar alguma resolução pacífica para a guerra.

O tema paz na Ucrânia tende a ocupar muito da agenda internacional do início de mandato de Trump e pode ser afetado por sua política comercial que tenciona aumentar tarifas dificultando as relações com aliados europeus e com a China, que muitos em seu movimento veem como o verdadeiro adversário estratégico dos EUA no mundo atual.

Diante desse cenário, não obstante uma eventual participação russa em fóruns, conferências e negociações bilaterais, esses esforços só obterão um acordo de paz, que preserve a independência ucraniana, se as circunstâncias pressionarem Putin a escolher a paz revertendo o cenário descrito acima, e esse é o nó que Trump precisa desatar.

Lula é Kamala. Bolsonaro é Trump. E daí?

Se há algo que parece passar despercebido no calor das discussões políticas no Brasil, é a irrelevância absoluta das opiniões de Lula e Bolsonaro sobre as eleições dos Estados Unidos. Sim, isso mesmo: o que eles acham de Kamala Harris ou Donald Trump não tem impacto algum em Washington. Nenhum.

Vejamos o cenário atual. Lula, o presidente da República, declara seu apoio a Kamala como se isso fosse mover algum ponteiro na eleição norte-americana. Bolsonaro, fiel ao seu estilo, expressa abertamente seu apreço por Trump, como se os eleitores americanos estivessem ansiosos para saber o que ele pensa. Mas, honestamente, e daí? Não importa se o presidente do Brasil é fã de Kamala, Trump, ou até do Pato Donald. Lá nos Estados Unidos, isso é só ruído.

A questão é que o público brasileiro, ou pelo menos parte dele, parece incapaz de entender essa desconexão. Importamos o embate Lula versus Bolsonaro para dentro de temas internacionais como se isso fosse relevante para o eleitor norte-americano. A ilusão é de que, se um dos nossos líderes manifesta apoio a um candidato estrangeiro, ele realmente acredita estar influenciando alguma coisa. Não está. Essa dinâmica seria diferente se estivéssemos falando de um país vizinho, na América Latina. Um comentário do Brasil sobre a eleição argentina, ou mesmo paraguaia, poderia ter ressonância. Mas sobre uma potência como os Estados Unidos? É um jogo de aparências. E quem se ilude com ele é só o brasileiro.

Para ilustrar a inutilidade desse jogo, imagine se estivéssemos falando das eleições no Brasil, mas o apoio viesse de Angola. Digamos que o presidente angolano, João Lourenço, publicasse um vídeo apoiando Lula em nossa eleição presidencial. Isso mudaria o seu voto? É óbvio que não. E é óbvio que a opinião de Lula ou Bolsonaro sobre Trump ou Kamala não muda um único voto americano.

Ainda assim, seguimos nessa. Como se o mundo fosse acabar dependendo de quem ocupa a Casa Branca. “Kamala vai confiscar direitos, Trump vai erguer o muro”. Mas, vamos ser francos, o que realmente mudou quando Trump foi presidente? Ele tentou muita coisa, mas os guardrails da democracia americana, construídos e mantidos ao longo de duzentos anos, seguram qualquer um – até mesmo quem queira ou finja querer explodir o sistema. Nos EUA, o sistema é maior que o presidente. O Congresso, a Suprema Corte e as leis se mantêm intactos, segurando as rédeas da democracia. Algo que, convenhamos, não temos por aqui.

Aqui, no Brasil, a nossa democracia é frágil. Mudamos de Constituição como quem troca de roupa, o que coloca em perspectiva o quanto somos inconstantes em nossas “aventuras democráticas”. Nos EUA, há segurança estrutural. Lá, quem passa da linha, seja presidente ou peão, paga. O caso do Capitólio mostrou isso. Quem ousou desrespeitar o sistema foi punido e não foi um teatro para mostrar ao mundo “ficha limpa”. A punição foi para valer, sem essa história de salvar peixe grande e fazer show com os pequenos.

Mas, ainda assim, muitos aqui insistem em romantizar a eleição americana, como se tivéssemos que escolher lados e como se qualquer um dos lados fosse, de fato, nos representar. Sinto muito desapontá-los, mas o próximo presidente americano será irrelevante para nós. E não porque a política externa dos Estados Unidos é uma fantasia, mas porque, para eles, o que importa é o próprio sistema. Seja Trump, Kamala ou quem for, a democracia americana segue firme. Ela não precisa de salvadores; ela precisa de respeito ao que foi construído.

Então, meu conselho? Acompanhemos o show de camarote, mas sem apego emocional. No Brasil, há quem se emocione com tudo isso, com cada palavra de Lula ou Bolsonaro sobre política americana .Mas emoção, em política, nunca deu certo. E, para ser sincera, essa importação de brigas estrangeiras só serve para distrair do que realmente importa aqui.

A China vai a Wall Street e ameaça a segurança dos Estados Unidos

Recentemente, a Shein, gigante chinesa do e-commerce de roupas, anunciou a sua primeira IPO (oferta pública de ações) na NYSE, bolsa de valores de Nova York, tendo como principais subscritores colossos financeiros como o J. P. Morgan/Chase, a Goldman Sachs e o Morgan Stanley. Várias agências governamentais dos Estados Unidos documentam numerosos casos envolvendo a Shein em casos que vão da violação de direitos de propriedade intelectual e práticas trabalhistas ‘tóxicas’ até sonegação fiscal e sistemáticas operacionais danosas ao meio ambiente. O episódio transborda das páginas do noticiário econômico para sinalizar mais um conflito entre os interesses da alta finança e a segurança nacional da América.

A preocupação com a ofensiva do Partido Comunista da China contra a ordem internacional liberal (livre-comércio, liberdade de navegação, direitos civis e liberdades democráticas etc) garantida pelo poderio norte-americano desde o fim da Segunda Guerra pode ser considerada o derradeiro e único bastião do consenso bipartidário sobre política externa em Washington, D. C.

Durante a administração Republicana de Donald Trump, a Casa Branca publicou um documento de Estratégia de Defesa Nacional (2018) rotulando a China como principal rival da América entre as grandes potências mundiais. Dois anos depois, ainda naquele governo, uma “ordem executiva” (decreto presidencial) proibiu investimentos de companhias dos Estados Unidos em empresas ligadas ao complexo industrial-militar chinês.

Mais recentemente (agosto do corrente ano), a administração Democrata de Joe Biden baixou outro decreto com maiores restrições a esses investimentos,  na China e em outros países adversários (countries of concern).

Na contramão dessas regras, conforme observam os pesquisadores da Foundation for the Defense of Democracies Emily de LaBruyère e Nathan Picarsic em artigo de opinião para o prestigioso portal político The Hill (9 de dezembro último), outras grandes empresas, como o conglomerado Hesai Group, fabricante de sensores – laser de uso dual (militar e civil), acaba de protagonizar o maior lançamento de ações de uma firma chinesa NYSE desde 2021.

Depois de um breve período de incertezas ante as manobras do PC e do governo da República Popular da China destinadas a restringir a influência política dos seus ‘campeões nacionais’, sua presença em bolsa agora cresce como nunca. Em junho deste ano, 65 companhias chinesas aguardavam na fila para ser listadas na NYSE, número que pulou para 116 em outubro.

Por lei, as empresas da China são obrigadas, sempre que requisitadas pelo Estado-partido único, a submeter quaisquer dados e informações relativos aos seus clientes, parceiros e investidores estrangeiros. A holding Lidar, que controla o já referido grupo Hesai, desenvolve e produz tanques, drones e toda uma ampla variedade de sistemas de armamentos. Outras firmas, como a própria Shein, há muito tempo são denunciadas por explorar a mão de obra de prisioneiros da etnia islâmica uigur em Xinjiang, violando compromissos internacionalmente assumidos pelos Estados Unidos em prol dos diretos humanos e práticas trabalhistas justas.

Ora, não é preciso ser um grande historiador ou exímio analista político para saber que os ditadores comunistas, na China e alhures — ontem, hoje e sempre —, não permitem jamais que a iniciativa privada possa ameaçar o monopólio de poder político do partido único. Essa interferência desabrida perturba o funcionamento dos mercados e acarreta  prejuízos às vezes bilionários aos investidores. Foi esse o caso do Didi (concorrente chinês do Uber e outros aplicativos de transporte individual), quando, em meados do ano passado, foi obrigado pelo governo de Pequim  a cancelar seu registro na NYSE e transferir suas ações para a bolsa de Hong Kong. O que estava em jogo era a ampliação do controle estatal sobre os dados pessoais dos passageiros….

LaBruyère e Picarsic concluem  seu artigo frisando  o aquilo que não é segredo para ninguém: as medidas de segurança do governo dos Estados Unidos  em relação ao rival chinês simplesmente não vão funcionar — e este continuará financiando a modernização dos seus arsenais com os dólares dos investidores americanos — enquanto os interesses de Wall Street (habituais e generosos financiadores de campanhas eleitorais dos dois partidos) falarem mais alto que o imperativo da defesa….

Agora imaginem o prezado leitor e a estimada leitora quão mais perigosa é a situação de países como o Brasil e os nossos vizinhos latino-americanos, com suas óbvias fragilidades institucionais e deficiente formação de capital ante a crescente investida econômica e política da China neste continente!