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Foto: Sebastian Kahnert/AP.

Islamização e Putinização

As eleições federais antecipadas na Alemanha, realizadas em 23 de fevereiro de 2025, comprovaram a percepção de uma significativa mudança de rumo na política do país.

Apesar de ter sido o partido mais votado, a coligação conservadora União Democrata-Cristã (CDU/CSU), de Friedrich Merz, passou longe do seu melhor desempenho histórico ao ficar com 28% dos votos (208 cadeiras).

O Partido Social-Democrata (SPD), do chanceler Olaf Scholz, caiu para a terceira posição, obtendo apenas 16,41 % dos votos (120 cadeiras).

Por outro lado, o partido de direita, Alternativa para a Alemanha (AfD), alcançou um resultado inédito, posicionando-se como a segunda maior força política no Bundestag, com 20,8% dos votos (152 cadeiras).

Para analisar o contexto de crescimento desse partido convém responder a duas perguntas. 

Para além dos rótulos que lhe são comumente atribuídos, o que realmente a AfD tem de problemático? 

Qual é o problema social que a AfD confronta seriamente? Ou, dito numa linguagem cafona de marketing, qual é a dor dos alemães que a AfD propõe curar?

Uma reflexão equilibrada sobre esses dois pontos lançará luz não apenas sobre o contexto político alemão, mas também sobre o atual drama político da Europa e sobre a atual tensão política mundial.

A história da AfD 

O partido Alternativa para a Alemanha (AfD) defende posições nacionalistas e revisionistas em relação à história alemã. 

Fundado em 2013 como um partido crítico à União Europeia, a AfD adota discursos que frequentemente se aproximam de ideias da extrema-direita histórica.

Apesar de não trazerem mensagens claramente nazistas — o que é proibido pela legislação alemã — seus integrantes costumam caminhar em uma zona perigosa.

É comum, por exemplo, que eles digam que os alemães não devem ficar se culpando pelos crimes do passado.

Foi seguindo nessa linha que Alexander Gauland, em 2017, afirmou que tinha orgulho pelo desempenho dos soldados alemãs nas duas guerras mundiais. 

Não é mais necessário nos repreender por esses doze anos (de regime nazista)“, disse Gauland. “Se os franceses, e com razão, têm orgulho de seus imperadores, e os britânicos, de Nelson e Churchill, então nós temos o direito de ter orgulho do desempenho de nossos soldados nas duas guerras mundiais.”

No mesmo ano, Bjorn Hocke criticou a existência do Memorial do Holocausto em Berlim.

Somos as únicas pessoas no mundo que colocaram um memorial da vergonha no coração de sua capital“, afirmou. 

A sigla rejeita políticas de inclusão e diversidade, argumentando contra direitos LGBTQ+ e políticas de igualdade racial. 

Discursos depreciativos contra minorias são comuns entre seus membros.

Todos esses pontos são relevantes e problemáticos, embora muitas vezes exagerados pela mídia.

Tendo em vista, porém, a complexa conjuntura geopolítica atual, o ponto mais problemático do partido parece-me ser a aberta simpatia que seus membros nutrem por Vladimir Putin.

AfD e Rússia

O programa da AfD traz como objetivo explícito estabelecer melhores relações com a Rússia.

A Guerra Fria acabou. Os EUA continuam sendo nossos parceiros. Deveria ser a Rússia. A AfD está, portanto, comprometida com o fim das sanções e com a melhoria das relações com a Rússia”, diz o documento.

A recente eleição alemã sofreu forte interferência externa, tanto americana — por intermédio de Elon Musk, que escreveu o polêmico artigo “Apenas a AfD pode salvar a Alemanha” e participou de uma live com Alice Weidel — quanto russa.

O filósofo, geopolítico e estrategista político russo conhecido por suas ideias ultranacionalistas e eurasianistas, Alexander Dugin, escreveu um panfleto em tom apocalíptico e delirante em apoio ao partido, que dizia:

O voto na AfD é a resposta ao ser ou não ser para a Alemanha. Sem a AfD, não haverá mais Alemanha. Se você, sendo alemão, vota em Merz, você vota na destruição nuclear acelerada da Alemanha, da Europa e talvez do mundo inteiro. Assuma a responsabilidade e esteja atento.

Se você gosta de Trump, Musk e Bannon, vote na AfD. Se você gosta de Putin (por que não?), vote na AfD. Se você gosta da Alemanha, vote na AfD. Se você gosta da Europa, vote na AfD. Se admira Meister Eckhart, Leibniz, Kant, Hegel, Husserl, Nietzsche, Heidegger, vote na AfD. Se você não gosta de nenhum deles, vote na AfD.

Vote na AfD se você é niilista, socialista, nacionalista, cristão, muçulmano, pagão, budista, agnóstico, ateu.

Vote na AfD e verá como a realidade pode ser maravilhosa. Alguns dizem que o Kali-Yuga acabou. Isso depende de nós. Vamos terminar. Agora. Ragnarök está marcado para amanhã.

Vote na AfD. Obrigado pelo lembrete: se você aprecia Bach, Mozart, Wagner, Mendelssohn e Tchaikovsky, ou Emerson, Lake e Palmer, vote na AfD.

Se você tem algum problema psicológico ou fisiológico, vote na AfD e encontrará alívio, mais do que isso, uma cura!

Pare de fingir, saia – AfD é você mesmo, seu inconsciente. Seja você mesmo; vote AfD!”

Sabemos o quão importante para o fim da Segunda Guerra Mundial foi o rompimento do pacto entre Hitler e Stálin. 

Agora, imaginem o cenário catastrófico se, daqui a quatro anos, uma Rússia fortalecida contar com o apoio de uma chanceler alemã para anexar a Ucrânia e seguir adiante, sob o olhar cúmplice dos Estados Unidos…

Tragicamente, esse é um cenário bastante provável.

Mas, uma vez elencados os pontos mais problemáticos da AfD e enfatizando a proximidade com a Rússia como o aspecto mais preocupante, devido ao contexto bélico atual, tentemos agora entender por que esse partido tornou-se a segunda maior força política na Alemanha, com grande potencial de crescimento para se tornar a força maior em 2029.

Imigrantes e refugiados

No livro The Strange Death of Europe: Immigration, Identity, Islam, David Murray, tenta explicar o processo que levou a Europa à beira do suicídio. 

Para tanto, o autor nos remete ao pós-guerra, quando o continente procurava restabelecer-se economicamente preenchendo a lacuna do mercado de trabalho.

Países como Alemanha, Holanda, Inglaterra e França promoveram a Europa enquanto destino de trabalho, recebendo milhares de migrantes. 

Mas o poder de atração da Europa, com o seu estado de bem-estar social, era muito grande e o que deveria ser uma política provisória de trabalho transformou-se numa crise migratória, um problema que foi negligenciado por décadas.

Em 2015, um incidente comovente teve o condão de abrir ainda mais as portas da Europa, dessa vez para um enorme contingente de refugiados: a morte de Aylan Kurdi.

A imagem do corpo do garotinho sírio de 3 anos, estendido em uma praia turca, percorreu o mundo, provavelmente sensibilizando também a chanceler alemã Angela Merkel que fez, então, um apelo à Europa para abrir as fronteiras.

Merkel é bastante criticada por pessoas do espectro político mais à direita por essa atitude, mas convenhamos que a líder de um partido norteado por princípios cristãos não poderia simplesmente fechar as fronteiras para os refugiados.

Uma coisa são os migrantes, outra coisa são os refugiados. 

Todo refugiado é um migrante, mas nem todo migrante é um refugiado. 

Enquanto o imigrante se desloca por vontade própria, o refugiado foge para salvar sua vida ou assegurar sua liberdade.

Convém lembrar que o deslocamento de milhares de refugiados em 2015 foi causado principalmente pela guerra civil na Síria, que começou em 2011. 

O conflito envolveu o governo do ditador Bashar Assad (apoiado pela Rússia), grupos rebeldes e organizações terroristas como o Estado Islâmico (EI).

O direito internacional prevê, especialmente pela Convenção de 1951 sobre Refugiados, o acolhimento, a garantia de proteção e o impedimento de deportação para as pessoas em tal condição.

Como a Europa poderia fazer jus aos seus melhores valores cristãos negando-se a executar algo tão básico quanto a proteção à vida humana já respaldada pelo direito internacional?

Mas o fato é que a coisa desandou, saiu dos trilhos. 

Ao abrir as portas para mais de 1 milhão de “refugiados”, a Alemanha deixou entrar não apenas aqueles que careciam efetivamente de acolhimento humanitário, mas também aqueles que, disfarçados de refugiados, vieram com a intenção de perpetrar o terror no seio da Europa, em nome da jihad islâmica.

A chegada em massa de muçulmanos na Europa, aliada à permissividade com que os governos europeus os receberam, em nome de uma falácia chamada multiculturalismo, elevou o problema migratório a um ápice de tensão, que hoje já não é apenas uma crise política localizada, mas algo muito mais abrangente.

Multiculturalismo e islamismo

Embora tenha permitido o relaxamento das fronteiras, em 2015, devido à crise de refugiados na Síria, Angela Merkel também deveria ser lembrada pelo discurso feito em 16 de outubro de 2010, durante um encontro da União Democrata-Cristã (CDU) com jovens da ala conservadora do partido, em Potsdam.

Na ocasião, Merkel declarou: “O multiculturalismo falhou completamente” (“Der Ansatz für Multikulti ist absolut gescheitert“).

Ela se referia à falência da ideia de que diferentes culturas poderiam viver lado a lado sem a necessidade de integração

Merkel argumentou que os imigrantes na Alemanha deveriam se esforçar mais para se integrar, aprender o idioma e compartilhar os valores do país.

Esse não foi, porém, o rumo que as coisas tomaram. 

Estupidificados por doutrinas antiocidentais como o decolonialismo, jovens ocidentais de esquerda passaram a odiar cada vez mais seus próprios valores e sua própria cultura.

Interessados em capitalizar politicamente os votos dessa juventude meio perdida, políticos de esquerda cederam ao politicamente correto, ao progressismo, tornando intocáveis aqueles que eram acolhidos em suas próprias terras.

O principal contingente acolhido, sabemos, foram os muçulmanos. E todo o aparato do Estado de bem-estar social europeu passou a beneficiá-los e protegê-los sem exigir nada em troca, sem esperar a integração.

Muito à vontade, os muçulmanos passaram a construir mesquitas, radicalizar pessoas, dominar bairros, impor regras e, vez ou outra, esfaquear, aos gritos de Allahu Akbar, transeuntes distraídos, padres em celebração, meninas em festas, crianças em passeios escolares ou judeus visitando o Museu do Holocausto.

Ultimamente, passaram a achar mais prático acelerar veículos contra pessoas que se aglomeram nas ruas, em feiras de Natal ou Carnaval.

Os cidadãos alemães temem, e têm motivos de sobra para isso, que um cidadão recém-naturalizado irá esfaqueá-lo e matá-lo após ser radicalizado. 

Mas os políticos juram que o Islã é uma religião de paz e que encontrar um exemplar do Alcorão na mochila junto à faca que cortou uma garganta é só mera coincidência.

Aqueles que dizem o óbvio e que tentam alertar para a incompatibilidade do islamismo com as democracias ocidentais são rotulados de extremistas, de preconceituosos, de xenófobos e dessa palavra mágica tirada da cartola para criminalizá-los: islamofóbicos.

Alternativa para a Alemanha

É aí que entra a AfD. Qual é o seu ponto forte? 

O partido se opõe à imigração, especialmente de países muçulmanos, promovendo a ideia de que a cultura alemã está sob ameaça frente à cultura islâmica.

Os líderes do partido defendem medidas como o fechamento de fronteiras, de mesquitas e deportações em massa e, com isso, respondem a um premente anseio da população.

É verdade que populistas de direita têm lucrado com o tema da imigração. Mas isso ocorre porque, principalmente na Europa, a imigração muçulmana é efetivamente um grande problema.

Dificilmente passa-se uma semana sem relatos de ataques islâmicos. O jihadismo não pode mais ser ignorado na Alemanha, nem em lugar nenhum da Europa.

No fim de janeiro, em Aschaffenburg, Baviera, um afegão que foi obrigado a deixar o país atacou um menino de 2 anos com uma faca de cozinha. 

Morreu o menino e o transeunte que tentou salvá-lo.

Pouco tempo depois, em Munique, um requerente de asilo afegão acelerou seu carro contra uma manifestação organizada pelo sindicato Verdi, matando uma jovem mãe e sua filha de dois anos e ferindo gravemente pelo menos outras 37 pessoas.

A Europa está diante de duas ameças sérias: Vladimir Putin e o jihadismo islâmico. 

A direita reacionária fala grosso com os muçulmanos, mas fala muito fino com Putin.

Se os alemães de modo específico, e os europeus, de modo geral, quiserem continuar altivos na defesa da Ucrânia e de seus próprios valores de democracia e liberdade precisam reconhecer o perigo representado pelo islamismo e expressar isso claramente, a fim de que a direita populista nacionalista e identitária não seja a única voz a ecoar essa realidade.

Um olhar “realista”sobre o conflito Rússia x Ucrânia: Entrevista com Marcos Degaut

A mais casual conversa com Marcos DEGAUT equivale a uma aula sobre Geopolítica e Relações Internacionais, sob uma perspectiva realista, gostemos ou não do que ele tem a nos dizer. Degaut, que é mestre pela UnB, Ph D em Segurança Internacional pela University of Central Florida e doutor em Direito Internacional pela UDF, tem mais de 30 anos de experiência no serviço público e já trabalhou como secretário-adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, secretário de Produtos do Ministério da Defesa e secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior do Brasil-Camex. Por isso, estava ansioso por ouvi-lo a respeito da situação atual e das perspectivas futuras da crise envolvendo Rússia, Ucrânia, Estados Unidos e Europa. Gentilmente, Degaut respondeu às perguntas abaixo. Mas a responsabilidade pela edição final de suas respostas é toda minha. Vamos lá?

1) PK – O acordo Estados Unidos/Ucrânia sobre minerais estratégicos, recentemente anunciado, garantiria a segurança ucraniana contra futuras invasões russas?

MD – O acordo que está sendo desenhado é de natureza comercial e financeira. Não inclui nenhum componente militar, de defesa. O que ele prevê é a exploração, pelos americanos, de terras raras/minerais estratégicos da Ucrânia. Prevê, também, a constituição de um fundo destinado a financiar a reconstrução ucraniana. O presidente da Ucrânia, Volodomyr Zelensky, desejava incluir essa componente militar, mas o presidente Donald Trump a vetou, pelo menos até o momento. Então, o futuro pacto NÃO oferece à Ucrânia nenhuma garantia contra possíveis novas invasões. Em tempo: considero que o objetivo maior da Rússia é impedir a presença militar ocidental (Otan) em território ucraniano, que o Kremlin encara como seu ‘entorno imediato’ — e não expandir o domínio russo.

2) PK – Ao quebrar o gelo das negociações com a Rússia de Vladimir Putin, estaria Trump enfraquecer a aliança Pequim/Moscou?

MD – Sim. A orientação atual da política externa é de segurança nacional do governo dos Estados Unidos baseia-se na percepção de que o seu principal adversário geopolítico, geoestratégico, é a China. Trump deseja a reinserção da Rússia no sistema financeiro internacional de modo a afastá-la da China, o que envolve a garantia de que a Otan não posicionará suas tropas na fronteira com a Rússia. Essa manobra pode dar certo, até porque a maioria dos generais russos hoje está descontente com a situação de seu país como ‘sócio menor’ dos chineses. Um benefício adicional da reintegração da Rússia ao sistema financeiro internacional é o seu impacto anti-inflacionário: com a revogação das atuais sanções econômicas, o reingresso do gás e do petróleo russos no mercado energético mundial contribuiria para manter a estabilidade geral dos preços. Ao mesmo tempo, isso normalizaria o acesso da Rússia às commodities agrícolas de que ela tanto necessita. Por tudo isso, creio que essa manobra teria, sim, boas chances de sucesso.

3) PK – Como avaliar a solidez do compromisso da Europa Ocidental — especialmente França e Alemanha — para com a segurança ucraniana em face de uma nova ameaça militar russa?

MD – Uma coisa é a legitimidade desse compromisso; outra, muito diferente, é a sua credibilidade na prática, dentro de um prazo viável. Hoje, a Rússia, ao lado dos Estados Unidos e da China, é um dos países que mais gastam com armamentos. A quantidade dos estoques militares russos é muito superior à europeia. Isso para não falar da enorme superioridade dos arsenais nucleares da Rússia em comparação com os da França e do Reino Unido. Mesmo que a Europa comece a investir hoje tudo aquilo que líderes como o presidente francês Emmanuel Macron prometem, sobretudo no atual contexto de déficits públicos na maioria desses países — e na hipótese irrealista de a Rússia nada fazer para incrementar suas capacidades militares —, seriam necessários de 10 a 1 anos e cerca de 800 bilhões de dólares para equiparar esses arsenais…. Onde arranjar tanto dinheiro em meio a uma apertada situação fiscal? Uma coisa é certa: a Rússia não vai ficar esperando de braços cruzados.

4) PK – Podem os ucranianos confiar numa paz duradoura com os russos? Estaria a Ucrânia fadada a se conformar com perda de 20% do seu território para a Rússia como preço da paz?

MD – Volto àquele ponto anterior: a Rússia atual de Putin não é a antiga União Soviética, que estava interessada em exportar a revolução comunista para o resto do planeta. O que a Rússia de hoje quer são fronteiras seguras, o mais longe possível das forças da Otan. Para tanto, o Kremlin considera vital manter sua influência no ‘entorno imediato’: Ucrânia, Belarus etc. Não se trata de invadir, tomar conta desses territórios, mas, sim, impedir a influência das grandes potências ocidentais naquele entorno.

5) PK – Quer dizer que o destino da Ucrânia é jamais vir a se tornar membro da Aliança Atlântica? E da União Europeia?

MD – Da Otan, seguramente, jamais; os russos nunca aceitarão. Para eles, trata-se de uma questão existencial. Já quanto à UE, que é um bloco econômico sem componente militar, não vejo nenhum obstáculo intransponível a uma futura adesão ucraniana.

6) PK – Na sua opinião, Taiwan será a ‘próxima Ucrânia’?

*MD – Vejo aí uma diferença qualitativa muito importante: a Ucrânia sempre foi entendida como uma entidade à parte do território russo, o que contrasta vivamente com o caso de Taiwan, ilha que há séculos foi incorporada ao território da China imperial. Pertenceu ao Japão por 50 anos (1895/1945) e, em 1949, serviu de refúgio ao Kuomintang de Chiang Kai-shek, derrotado pela revolução comunista daquele ano. A República Popular da China exige como condição para o estabelecimento de relações oficiais com qualquer país que este rompa laços diplomáticos com a República da China (Taiwan). Os taiwaneses mantêm escritórios de representação comercial e intercâmbio cultural na maioria das nações, mas embaixadas em um número cada vez menor de países. Na minha opinião, a China de Xi Jinping está se preparando para anexar Taiwan (à força, se necessário); resta saber como o Ocidente reagirá….

7) PK – Lembrando o colapso final da presença norte-americana no Afeganistão (2021), como uma mediação de Trump para pôr fim à guerra Rússia X Ucrânia pode afetar sua popularidade perante a opinião pública dos Estados Unidos?

MD – Mais uma diferença marcante aqui…. Por 20 anos, os Estados Unidos mantiveram forte presença militar no Afeganistão (boots on the ground); vidas norte-americanas foram perdidas. E, no final, material bélico dos Estados Unidos foi abandonado e tomado pelo Taliban. No caso Rússia X Ucrânia, Trump se recusa a enviar soldados para lutar na Europa Oriental. Também já deixou claro que quer desescalar as tensões militares entre russos e ucranianos como prelúdio a um novo contexto que faça sentido comercial, econômico, para as partes envolvidas. Se isso der certo, a popularidade doméstica de Trump será alavancada.

PK – Muito obrigado!

Desafios da Geopolítica

Estamos diante de um inédito movimento de abalo das placas tectônicas da estabilidade internacional construídas no pós-guerra. Os níveis de democracia nunca foram tão baixos e governos antidemocráticos nunca foram tão robustos. O risco de mudança real no equilíbrio de forças mundial nunca foi tão presente, em grande parte pelo perfil das lideranças que comandam importantes nações, e a reorganização gerada pelos recentes conflitos. Todo este contexto se tornou peça central para entender o mundo e seu desenho geopolítico em tempos recentes.

No Oriente Médio, uma reação em cadeia desencadeada pelo ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023 impulsionou um ano de mudanças impressionantes. Israel enterrou o Hamas sob escombros, degradou a rede regional de representantes não estatais dos aiatolás, demoliu as próprias defesas de Teerã, e, inadvertidamente, preparou o cenário para que rebeldes islâmicos derrubassem a ditadura de meio século da família Assad na Síria.

Na Ásia, onde a China compete com os Estados Unidos e seus aliados pela primazia, os pontos críticos no Mar da China Meridional, as águas e os céus ao redor de Taiwan e a Península Coreana parecem cada vez mais desafiadores. O ataque da Rússia à Ucrânia é, a julgar pelas ameaças do presidente Vladimir Putin, parte de uma luta para revisar os arranjos pós-Guerra Fria, e ameaça levar a um confronto mais amplo na Europa.

Em outros lugares, uma onda de conflitos — incluindo a guerra civil de Mianmar, uma rebelião apoiada por Ruanda no leste da República Democrática do Congo, uma tomada de poder por gangues que deixou milhões de haitianos em condições de guerra, além da devastação no Sudão — está aumentando a contagem global de pessoas mortas, deslocadas e famintas devido aos combates, que é maior do que em qualquer outro momento em décadas.

Estamos também diante de blocos antidemocráticos mais unidos. Falar de um eixo formal entre China, Rússia, Coreia do Norte e Irã pode soar exagerado. Porém, é preciso pontuar que estamos falando de governos que cada vez atuam em cooperação estreita. Armas iranianas e norte-coreanas, componentes de uso duplo da China, e agora tropas norte-coreanas ajudam a sustentar a ofensiva do Kremlin na Ucrânia. O pacto de defesa que Putin assinou com o líder norte-coreano Kim Jong Un em novembro, vincula Pyongyang, e potencialmente a segurança peninsular, à guerra na Europa.

Aconteça o que acontecer, a queda para a ilegalidade parece destinada a continuar. Os beligerantes darão ainda menos atenção ao sofrimento civil. Outros líderes podem testar se podem tomar pedaços do território de um vizinho. A maioria das guerras de hoje parece destinada a continuar, talvez em alguns casos pontuadas por cessar-fogo que duram até que os ventos geopolíticos mudem ou surjam outras oportunidades para acabar com os rivais.

À medida que o ritmo da mudança acelera, o mundo parece se movimentar para uma nova mudança de paradigma. A questão é se isso acontecerá na mesa de negociações ou no campo de batalha.

Imagem: murathakanart/Shutterstock

Ameaça nuclear de Putin e o sentido da política para o Ocidente

Há quem defenda que a terceira guerra mundial já começou. Há quem julgue que falar em terceira guerra mundial é exagero. O fato é que se desdobram diante dos nossos olhos sonolentos e incrédulos uma série de alianças e movimentações militares muito preocupantes. A sequência de lances da última semana não pode ser menosprezada:

Em resposta ao envio de tropas norte-coreanas para lutar pela Rússia na guerra de invasão contra a Ucrânia, o presidente cessante dos Estados Unidos, Joe Biden, liberou o uso de mísseis de longo alcance contra as regiões russas de fronteira. Ato contínuo, o tirano da Rússia, Vladimir Putin, revisou a doutrina nacional de defesa a fim de alargar as condições de uso do arsenal nuclear.

Na nova doutrina, o lançamento de mísseis de longo alcance contra a Rússia passou a ser motivo para uso de armas nucleares. Mísseis esses que logo foram disparados pela Ucrânia. Sergei Lavrov, o ministro das relações exteriores da Rússia declarou então – em solo brasileiro, pois aqui estava por ocasião da cúpula do G20 – que o ato era visto “como uma nova fase da guerra ocidental contra a Rússia” e que a Rússia responderia de maneira “apropriada”.

É verdade que Putin já levantou o espantalho nuclear dezenas de vezes, mas até para quem está acostumado com a retórica das trocas de ameaças bélicas, o momento é preocupante.

Poder de destruição e poder político

Recordo-me de um trabalho escolar de História que precisei fazer, em 1995, a fim de marcar os cinquenta anos do lançamento da bomba atômica sobre as cidades japoneses Hiroshima e Nagazaki. Aluna aplicada que eu era, fiz boa pesquisa; o que li e as imagens que vi foram impressionantes para os meus doze anos de idade. Quase consigo reviver a sensação de choque e angústia com que colei os recortes de uma edição especial sobre o tema em uma cartolina para a apresentação escolar.

Um clarão apocalíptico e milhares de vidas aniquiladas instantaneamente. A liberação de uma enorme concentração de energia e seus efeitos devastadores. A radioatividade como terrível subproduto da já pavorosa explosão. Se há um inconsciente coletivo, essa imagem provavelmente está lá, nas profundezas do nosso psiquismo, e os acontecimentos atuais são de modo a favorecer a sua eclosão em estranhos pesadelos.

Putin está, mais uma vez, blefando? Tal questão nos desperta para a enorme responsabilidade ética que pesa sobre a política atual.

Em fragmentos de textos nos quais disserta sobre a definição de Política, a pensadora Hannah Arendt explica que a pergunta sobre se a política ainda tem algum sentido é “forçosamente formulada em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas possibilidades de destruição cujo monopólio os Estados detêm.” É no mínimo instável uma situação na qual “a continuidade da existência da humanidade e talvez de toda a vida orgânica da terra” depende da política; e de políticos que costumam blefar.

Questionada, em entrevista ao jornal alemão Tagesspiegel, sobre a probabilidade real de uma guerra nuclear, além de toda a retórica, Sharon K. Weiner, uma professora de Relações Internacionais da Universidade de Princeton e especialista em estratégia de armas nucleares respondeu: “O que me incomoda é que, a despeito do fato de que morreríamos numa guerra nuclear, ambos não temos voz na questão de saber se as armas nucleares serão ou não utilizadas.”

Alguns trechos dessa interessante entrevista, publicada em abril deste ano, me chamaram atenção. Segundo a professora, “não existe nenhum acordo secreto para impedir o uso de armas nucleares antes que o mundo seja destruído”. Ninguém sabe bem o que acontecerá se a Rússia realmente usar armas nucleares contra a Ucrânia porque não há diretrizes de como evitar uma escalada. A única estratégica com a qual se trabalha é a lógica de que “a outra parte poderá, em algum momento, sentir-se compelida a desescalar – simplesmente para salvar o mundo.”

A hipótese de que não haverá uma guerra nuclear sustenta-se, portanto, em uma crença na racionalidade dos políticos que têm poder de decisão sobre o uso de tais armas. Ninguém usaria armas nucleares porque o mundo poderia acabar. “Ninguém é doido de começar uma coisa dessas”, ouço por aí. Não me parece que este seja um argumento decisivo e tranquilizador. Há, pois, alguma probabilidade de que o atual conflito se desenvolva da pior forma possível.

Reunião dos Brics virou cena de filme de James Bond

De certa forma, é irônico que a cúpula dos Brics, no momento em que tem o maior número de integrantes, represente o fracasso definitivo de seu propósito original. O surgimento do grupo remete ao acrônimo constante no notório estudo do economista Jim O’Neill, que propunha a reforma da governança global e a necessidade de incluir Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, países emergentes e com características econômicas semelhantes. Mas, de plataforma de desenvolvimento a coisa foi enveredando por outro caminho, numa tentativa de antagonizar o G7, formado pelas democracias ocidentais.

Em sua última coluna no Instituto Monitor da Democracia, Márcio Coimbra descreveu o Brics como um “covescote autocrático”. Tendo o ditador russo Vladimir Putin como anfitrião e novos sócios como o Irã, a imagem do encontro parecia saída daqueles filmes do James Bond em que os vilões caricatos se reúnem para discutir seus planos de dominação do mundo. Até mesmo Nicolás Maduro apareceu, trajando o clássico modelito mafioso com sobretudo e chapéu preto.

Não surpreende a descrença de analistas econômicos e políticos com o futuro do grupo. Um dos principais críticos é o próprio O’Neill. “Terei Sr. Brics estampado em minha testa para sempre”, disse para a agência Reuters sem disfarçar a decepção e a melancolia. “A ideia de que o Brics possa ser um clube econômico global genuíno é, obviamente, um pouco equivalente às fadas”, desdenhou.

“Parece-me ser basicamente um encontro anual simbólico em que países emergentes importantes, especialmente os barulhentos, como a Rússia, mas também a China, possam se reunir e destacar como é bom fazer parte de algo que não envolva os Estados Unidos e que a governança global não é adequada o suficiente”, disse O’Neill sobre a reunião dos Brics. Uma reunião, diga-se, em que o barulho é desproporcional ao resultado efetivo. Excetuando-se, obviamente, a reciclagem que fazem da velhas taras anti-americanas e anti-ocidentais

As reclamações do Brics não são infundadas. As instituições geopolíticas criadas após a Segunda Guerra Mundial estão de fato em seu momento de maior desgaste. A inoperância do Conselho de Segurança da ONU é evidência de tal condição. Mas o que os membros do grupo propõe como alternativa?

A ideia de “multipolaridade” é bonita no discurso, mas o que se tem na prática é pressão chinesa para ampliação de seu próprio espaço de influencia. A tal diversidade decisória proposta é um falsete diversionista que não passa de uma agenda internacional deliberada em Pequim.

Foto: picture alliance / ASSOCIATED PRESS | Vyacheslav Prokofyev

Convescote Autocrático

Kazan foi o palco escolhido por Vladimir Putin para reafirmar sua presença internacional, mesmo que em meio a um grupo de países autocráticos. Ao hospedar a atual reunião de cúpula dos Brics às margens do rio Volga, Putin consegue driblar o mandado emitido pelo Tribunal Penal Internacional que ordena sua prisão e posa de líder ao lado de outros presidentes também polêmicos, como Xi Jinping da China e Masoud Pezeshkian do Irã.

O Brics substitui aquilo que era chamado no passado de países não alinhados, uma vez que o bloco não é uma instituição, mas apenas um grupo político que atualmente gira em torno da China, defendendo sua agenda e interesses, contrapondo-se ao G7.  Moscou e Pequim, os reais líderes, usam a oportunidade de palco informal para apoio ao chamado “Sul Global”, designação que na cartilha de seus membros substitui a antiga expressão “Terceiro Mundo” ou “países em desenvolvimento”.

O bloco recentemente passou por uma ampliação, recebendo Egito, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Etiópia e Irã como membros plenos. Este será o 1º encontro com os chefes de governo dos novos participantes, que se integram aos fundadores, Brasil, Rússia, Índia, China e (depois) África do Sul, que se reúnem desde 2009.

Vladimir Putin usa o evento como forma de demonstrar alguma liderança internacional desde que sua imagem foi atingida com a invasão da Ucrânia. Atualmente ele está banido de reuniões nos Estados Unidos e em países europeus e busca mostrar liderança entre o chamado Sul Global, mas também na Ásia Central, onde estão localizadas as antigas repúblicas soviéticas e em regiões da África, onde divide seu imperialismo político com o domínio econômico chinês.  

Com o objetivo de diminuir o impacto das sanções internacionais contra o Kremlin, Putin aposta na redução das transações em dólares. Para isso pretende usar o Brics e seu banco, o NDB, atualmente sob comando formal do Brasil. O objetivo é forçar com que a moeda dos EUA, o dólar, deixe de ser referência no comércio e finanças globais e, assim, perca a relevância como reserva de valor. Tudo, claro, combinado com os chineses.

Liderado pela China, o palco de Putin foi montado também para mostrar a musculatura e potencial de influência das autocracias que comandam o grupo. Como forma de ampliar seu poder, porém sem perder controle decisório, o bloco procura implementar uma nova modalidade de membros associados. Participariam de reuniões, mas sem votar. Assim, a reunião decidiu receber líderes de 24 nações, como Bahrein, Belarus, Bolívia, Nicarágua, Síria, Cuba, Argélia, Venezuela, entre outros, ou seja, nenhuma que navegue de forma calma pelas águas de um regime democrático. Um movimento que deixa claro o caminho trilhado pelo Brics: um clube autocrático em ampliação.

Ao fim da celebração russa, a presidência rotativa do bloco será transferida para o Brasil, que sediará a 17ª reunião de cúpula. Seria uma oportunidade para nosso país falar de temas importantes que passam ao largo da agenda do bloco, ignorados solenemente pelos países que lideram as discussões. Ao optar pelo silêncio, democracias como o Brasil apenas chancelam a cruzada autoritária de seus membros. Na verdade, o Brics se tornou um convescote autocrático financiado por ditaduras que oprimem suas populações. Já passou da hora de repensarmos nossa presença neste clube.

Putin amplia as hipóteses de guerra nuclear

“Quão séria é a ameaça da nova doutrina nuclear russa?” Com esse título, Alexander Gabuev,  analista do Fundo Carnegie para a Paz (Carnegie Endowment for Peace), sediado em Washington, D. C., publicou recente artigo em que busca alertar o mundo para as possíveis/prováveis consequências da decisão da autocracia putinista na Rússia de baixar o chamado limiar de nuclearização, ou seja, o patamar a partir do qual os comandantes militares daquele país estarão autorizados a utilizar armas nucleares contra seus inimigos.

Até agora, a doutrina oficialmente adotada pelo Conselho de Segurança russo em 2020, antes,  portanto, da desastrosa aventura ucraniana do presidente Vladimir Putin, previa essa utilização em resposta a um ataque convencional que viesse a colocar em perigo a própria existência do Estado.

A nova versão da doutrina, que Putin deverá sancionar brevemente em forma de decreto, contempla três hipóteses: agressão perpetrada por um Estado inimigo não nuclear, porém apoiado por aliados nucleares; obtenção de informações sobre um ataque maciço de armas aéreas e especiais, combinado com a violação das fronteiras russas; e ataque de armas convencionais às repúblicas da Rússia e de Belarus que implique uma ameaça crítica à soberania de ambas.

Essa significativa  alteração doutrinária é uma resposta direta  às gestões do presidente ucraniano Volodymir Zelensky junto ao governo Joe Biden para que os Estados Unidos transfiram a Kyiv mísseis capazes de penetrar profundamente o território inimigo.

Os comandantes da Otan tem ciência da gravidade desse cenário: muito embora seja quase certo que os ataques ucranianos a Sevastopol com mísseis britânicos “Storm Shadow”, há um ano, só poderiam ter sido desferidos com o sinal verde da Aliança Atlântica, as altas patentes militares da Alemanha relutam em ceder à Ucrânia mísseis “Taurus” de longo alcance.

Moscou, de sua parte, indica que sua inferioridade em equipamento militar e as perdas humanas gigantescas causadas por uma invasão inicialmente prevista, há dois anos e meio, como um ‘passeio’ de tão fácil e rápida agora obrigam a Rússia a apelar para ameaça nuclear.

O governo americano sabe que precisa atender às suas duas maiores prioridades de defesa — em primeiro lugar, a segurança do próprio território dos Estados Unidos; em segundo lugar, a dos seus aliados da Otan — antes de satisfazer os interesses ucranianos. Daí, o cuidado com que Washington conduz discretíssimas gestões com o Kremlin, abaixo do radar da imprensa, de modo a evitar uma escalada até que o armagedom nuclear se torne inevitável, um desfecho que felizmente não se materializou em quase meio século de Guerra Fria.

Em face de tudo isso, Gabuev, do Carnegie, prevê, como desenvolvimentos imediatamente mais prováveis, a intensificação dos ataques por mísseis e drones ucranianos — já que Kyiv expande rapidamente sua capacidade de produzir esses equipamentos  aéreos — e, do lado russo, a multiplicação de represálias, como sabotagem e assassinatos ‘seletivos’ contra países da Otan. A hipótese da transferência de armas sofisticadas da Rússia para inimigos do Ocidente, como a milícia dos Houthis, aliada iemenita dos aiatolás iranianos, também não está descartada (um jeito de obrigar os Estados Unidos e seus aliados a dispersar seu foco e seus recursos militares), mas também implicaria um desafio adicional para Putin: incorrer na má vontade de uma peça vital no tabuleiro diplomático de Moscou — a Arábia Saudita, potência sunita que compete com o Irã pela supremacia  no Oriente Médio.

Lula não quer paz; quer a rendição da Ucrânia e do Ocidente

Vladimir Putin assinou, em agosto desse ano, um decreto que facilita a entrada na Rússia de estrangeiros que buscam fugir dos ideais liberais ocidentais. No texto do referido decreto, a Rússia é apresentada como um país onde “os valores tradicionais reinam supremos.” 

Quem quiser, portanto, renegar os valores do Ocidente em nome dos valores espirituais e morais tradicionais russos poderá solicitar ao Kremlin sua residência temporária fora da cota aprovada pelo governo russo e sem fornecer documentos que confirmem seu conhecimento da língua russa, história russa e leis básicas.

Parece uma proposta tentadora para quem tem uma inclinação conservadora, uma tendência reacionária e está incomodado com a depravação moral do “Ocidente satânico”? Não se esqueça, porém, que, para Putin, liberdades individuais e direitos humanos são apenas idiossincrasias ocidentais desprezíveis.

Os valores espirituais e morais tradicionais que Putin quer representar são o pan-eslavismo, o nacionalismo, a ortodoxia religiosa e a autocracia. Trata-se, obviamente, de ideologia avessa à democracia, construção ocidental por excelência. 

Não surpreende, portanto, que, tal como ocorreu na Segunda Guerra Mundial, o chamado mundo livre esteja se unindo, mais uma vez, para conter o delírio expansionista de um psicopata que resolveu invadir e anexar uma nação livre, democrática e soberana.

O fascismo de Putin

A analogia da Rússia sob Putin com a Alemanha sob Hitler não é totalmente despropositada. Uma analogia só é possível porque há diferenças; guardadas as devidas diferenças, salta aos olhos as semelhanças. Uma delas é que, assim como o líder alemão, o líder russo também usa uma justificativa étnica para seu objetivo de anexação da Ucrânia. 

Além disso, há a expectativa de estabelecer uma nova ordem antidemocrática, antiliberal com a clara proposta de substituir o que se considera a “decadência ocidental” por um regime baseado na força de um líder. A Rússia putinista é o regime atual que mais se aproxima dos regimes fascistas do século XX.

Dizer que a invasão da Ucrânia foi uma atitude defensiva de Putin face um suposto expansionismo da Otan é narrativa de professor de história de ensino médio para doutrinar adolescentes com seu ranço antiocidental. A guerra da Rússia é uma guerra expansionista e não vai parar na Ucrânia se a Ucrânia cair. A Ucrânia, portanto, precisa parar a Rússia e o Ocidente precisa apoiá-la na sua justa guerra de defesa.

Lula apoia Putin

O Brasil não tem nada a ver com isso. Não deveria se meter a não ser para fazer o que todo governo decente do mundo está fazendo: declarando apoio explícito à Ucrânia quando não tem poderes para apoiá-la efetivamente. Para infelicidade e vergonha dos brasileiros, porém, Lula insiste em fazer o contrário. 

A Secom nos informa que ele conversou com Putin por telefone, nessa quarta-feira, 18 de setembro. 

Sem força moral para confrontar a ditadura que oprime nossos irmãos na Venezuela, incapaz de exercer uma boa influência na circunscrição territorial em que essa influência é esperada, a América Latina, Lula se arroga arauto da paz mundial, apresentando-se, junto com a China, como mediador para um acordo de paz entre Rússia e Ucrânia.

Uma importante jornalista brasileira refere-se, na sua coluna, a essa movimentação como se fosse uma iniciativa séria e promissora: “o governo agora trabalha com a China, em silêncio e comedidamente, na busca de algum acordo de cessar-fogo entre Rússia e Ucrânia”, escreve ela, acrescentando as seguintes informações: “na semana passada, o chanceler russo Sergei Lavrov conversou com o brasileiro Mauro Vieira em Riad, na Arábia Saudita, e depois com o assessor internacional Celso Amorim, em Moscou. E Amorim já engatou contatos com seu correspondente chinês.”

O que a colunista não cita é o que o próprio presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, já escancarou a desfaçatez de Lula e da sua diplomacia do mal, rejeitando a proposta sino-brasileira como “destrutiva” e acusando-o de fazer “teatro”. 

Em declaração recente para o brasileiro Metrópole, Zelensky denunciou a astúcia do governo brasileiro ao se mancomunar com a Rússia e a China para uma “proposta de paz”:

“É apenas uma declaração política. Eu disse a Lula e ao lado chinês: ´vamos sentar juntos, vamos conversar´. […] Por que você de repente decidiu que deveria ficar do lado da Rússia? ´Ah, nós vamos fazer nossa proposta (de paz)´. Não nos perguntaram nada. E a Rússia aparece e diz que apoia a proposta do Brasil e China. Nós não somos tolos. Para que serve esse teatro?

Ou seja, falaram com a Rússia sobre uma iniciativa, apresentaram essa iniciativa e disseram: ´essa é nossa proposta´. Bem, definitivamente não se trata de justiça, não se trata de valores. É uma falta de respeito com a Ucrânia. Não somos tolos.”

Zelensky não é tolo. Nós também não somos tolos. Estamos vendo, todos os dias, que a diplomacia brasileira sob o governo Lula não tem sido neutra coisa nenhuma. Ela está tomando partido, ela está descambando descaradamente para um lado: o lado de Putin, de Xi Jinping, de Maduro, dos aiatolás do Irã, dos terroristas do Hamas e do Hezbollah. 

Em um momento geopolítico delicadíssimo, Lula está colocando o Brasil ao lado das autocracias antiocidentais. Ele não quer paz; quer subjugar o mundo livre e liderar, ao lado dos déspotas, uma nova ordem ditada pelo Sul global.

O contraditório apoio da esquerda a Putin, um plutocrata fascista

Uma das narrativas mais usadas – e abusadas – pela esquerda é a denúncia do “imperialismo” como culpado por todas as injustiças e horrores do mundo. Todavia, aí mora uma flagrante contradição: desde a edificação na Rússia da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1922, a política marxista-leninista (bolchevismo), passou a ser, fundamentalmente, de caráter imperialista.

A pregação originária do marxismo é internacionalista: para a completa vitória, a revolução proletária terá de ser realizada sem fronteiras, sem predomínio de qualquer país; reza a doutrina. Todavia, a partir de 1922 a URSS desenvolveu um política expansionista com total predominância e no interesse do poder centralizado pelo Partido Comunista (marxista-leninista) em Moscou.

A fantasia internacionalista, na prática já esfarrapada, teve grande abalo teórico quando Stalin elaborou a nova doutrina do “socialismo em um só país”. A partir de então, o internacionalismo proletário marxista foi reduzido à afirmação chauvinista da primazia da URSS e do seu Partido Comunista, concomitantemente à total subserviência dos Partidos Comunistas de todos os outros países.

O corolário dessa nova práxis doutrinária foi o culto à personalidade de Stalin, o mais arraigado e repugnante exercício de submissão a um tirano de que se tem notícia na história contemporânea.

Pode-se considerar que tudo isso é coisa velha e o stalinismo um regime/doutrina já desmascarado em sua perversidade e, em geral, rejeitado até no âmbito da própria esquerda. Nada obstante, nos dias atuais, uma franja desatinada da esquerda descortina uma nova narrativa pela qual busca reviver o passado de expansionismo soviético projetando suas fantasias no atual ditador da Rússia, o belicoso Vladimir Putin.

Aqui no Brasil, intelectuais marxistas, jornalistas lulopetistas e até partidos políticos declaram sua simpatia por Putin e apoiam atos de expansão imperialista como a invasão da Ucrânia, incidindo em nova contradição, uma vez que Putin não é marxista, não é comunista e não é socialista.

A plutocracia de Putin

Putin é um plutocrata que governa apoiado por uma rede de bilionários enriquecidos por esquemas de corrupção facilitados ou promovidos pelo governo.

A riqueza dos plutocratas amigos de Putin não é escondida, mas pelo contrário ostentada não só na própria Rússia como em vários países do exterior, por cujos mares tais nababos costumam navegar em seus luxuosíssimos iates.

Para sustentar tal poder, o governo Putin – principalmente após o início da guerra de invasão da Ucrânia, – enveredou pela prática de controle social tipicamente fascista, com censura e repressão extremas aliadas a um nacionalismo expansionista.

Já em setembro de 2022, a então relatora da ONU sobre a Rússia, Mariana Katzarova, alertou em relatório que os métodos repressivos russos recrudesciam e se sofisticavam com a edição em série de leis que visavam abafar qualquer crítica ou oposição.

Embora reconhecendo que a repressão de Putin não era comparável à repressão de Stalin, o relatório exortava a comunidade internacional a barrar o tirano enquanto fosse tempo.

Com efeito, não é fácil atingir o horror da repressão stalinista, mas o regime de Putin tem feito esforço.

Rússia e Coréia do Norte: Muito mais que uma limousine

A recente visita do presidente russo Vladimir Putin à Coréia do Norte foi marcada entre outras coisas pelo presente dado por Putin ao ditador norte-coreano, uma limousine de luxo baseada no Aurus Senat, uma alternativa russa aos modelos fabricados pela britânica Rolls Royce.

O automóvel que os socialistas mais dedicados chamariam de símbolo de decadência burguesa chama atenção pelo luxo e pelo elevado preço que acompanha, mas simboliza muito mais que isso.  O poderoso motor tipo V8, com consumo elevado de combustível, nos lembra da ineficácia das sanções econômicas em vigor contra Rússia e Coréia Norte que não impedem o comércio de combustível entre essas nações.

O modelo presenteado por Putin é um veículo com modernas tecnologias embarcadas, no momento essas tecnologias têm sido usadas como forma de pagamento pelas munições e armas que a Coréia de Norte tem fornecido a Rússia. A indústria bélica russa não tem conseguido sustentar o volume de munição sendo usado diariamente na Ucrânia pelas forças russas.

A guerra na Ucrânia se tornou uma oportunidade para o governo da Coréia do Norte conseguir uma parceria mais robusta com a Rússia, que por seu isolamento não pode recusar. Além de servir para a ditadura norte-coreana ter um pouco mais de liberdade de ação e menos controle chinês de suas ambições.

A visita de Putin marcou a assinatura de um acordo de defesa mútua entre os dois países. Os detalhes desse acordo, ainda não são totalmente conhecidos e com certeza é um elemento complicador da política na Ásia, sobretudo, na península coreana. E internamente mostra ao politburo norte-coreano que o Kim Jong Un é um líder capaz de aumentar a segurança e o prestígio do país, solidificando ainda mais sua posição nas opacas disputas de poder internas.

Esse acordo tem como benefício secundário para a Rússia que é dar mais credibilidade às ameaças diante do fornecimento de armas para a Ucrânia, por parte da Coréia do Sul, o que pode minar planos europeus de incluir a tecnologia do país asiático no teatro de operações da Ucrânia.

Para os norte-coreanos o carro é uma demonstração clara que as relações entre Putin e Kim Jong Un são especiais e fortes. E uma demonstração que a Coréia do Norte é agora o parceiro que tem que ser seduzido pelo aliado, revertendo os velhos padrões de relacionamentos estabelecidos desde os tempos soviéticos.

Segundo especialistas no mercado de automóveis de luxo estará em breve disponível para os compradores russos, claro que é preciso ser um dos oligarcas para acessar um veículo como esse os números apontam para apenas 31 desses veículos tendo sido comercializados desde 2022. Os planos de expansão da marca no mercado europeu foram inviabilizados pela guerra na Ucrânia.

Não é difícil de imaginar que no fundo das mentes dos executivos da fabricante de carros que eles preferiam que a tecnologia russa enviada em massa para europa fosse mais pacífica e incluísse seus belos carros de luxo. Não é difícil de imaginar, também que não veja a Coreia do Norte como um mercado capaz de substituir as potenciais vendas na Europa. Não imagino, contudo, esses executivos vocalizando essas frustrações, afinal a sede da Aurus deve ter muitas janelas.