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Foto: Ricardo Stuckert/PR

Relação do Brasil com a China de Xi Jinping alcança um novo patamar

O Brasil, sob o governo Lula, já escolheu de qual lado ficará na disputa geopolítica mundial entre democracias e autocracias. E a resposta é clara: estamos alinhados ao eixo autocrático. A decisão foi consolidada com uma série de acordos que colocam o país em sinergia com o projeto global da China, mesmo que isso seja convenientemente disfarçado por discursos sobre interesses meramente comerciais.

A nova dinâmica foi celebrada pela embaixada chinesa, que não perdeu tempo em anunciar que as relações entre Brasil e China atingiram “um novo patamar”. Isso inclui a formação de um grupo de trabalho para alinhar as políticas de desenvolvimento brasileiras à Nova Rota da Seda, o plano de expansão econômica e política do governo chinês. A adesão oficial não foi anunciada, mas os mais de 40 acordos assinados, incluindo áreas sensíveis como inteligência e satélites, já indicam o caminho.

O discurso público do governo brasileiro, no entanto, joga com a ambiguidade. A narrativa oficial tenta afastar preocupações, enfatizando a natureza “comercial” da parceria. É a típica estratégia de soft power usada pelo governo chinês: sugerir um afastamento para não alarmar, enquanto os fatos mostram o contrário. Quem questiona esse alinhamento é rapidamente taxado de exagerado ou bolsonarista, como se fosse impossível criticar a aproximação com uma ditadura sem cair em extremos ideológicos.

O que muda?

Mas o que realmente muda com esse novo alinhamento? Não é apenas uma questão de acordos econômicos. É sobre os valores que o Brasil está disposto a endossar.

A China é uma autocracia que reprime dissidentes, proíbe religiões, mantém campos de concentração para a minoria Uigur e censura qualquer oposição. Essa postura ficou evidente durante o G20, realizado em território brasileiro, quando seguranças chineses foram rápidos ao intervir com manifestantes e jornalistas. E o governo brasileiro? Permaneceu calado.

Essa omissão não é apenas simbólica, ela reflete o novo posicionamento estratégico do Brasil. Ao ignorar ações antidemocráticas em seu próprio território, o país dá um recado claro sobre suas prioridades. Não se trata apenas de pragmatismo econômico, mas de uma escolha ideológica: sacrificar a transparência e os valores democráticos em nome de benefícios comerciais e alianças políticas convenientes.

“Anti-patriotismo”?

E quem critica essa aproximação com autocracias? Os apoiadores do governo rapidamente transformam qualquer crítica em uma afronta ao Brasil. A estratégia é conhecida: alinhar discordâncias a um discurso de “anti-patriotismo”, como se questionar relações com ditaduras fosse um ataque ao país e não uma defesa de seus princípios.

Paralelamente, a oposição política parece incapaz de formular uma resposta eficiente. Em vez de um discurso claro e fundamentado, opta por uma retórica do “eu avisei”, que mais parece birra de quinta série do que uma defesa séria da democracia.

O alinhamento do Brasil com a China de Xi Jinping não é um fato isolado, mas parte de um movimento maior que redefine o papel do país no cenário global. A questão não é apenas econômica, mas moral e estratégica. O governo Lula deve ser transparente sobre o custo dessa escolha porque os impactos não se limitam a balanças comerciais ou parcerias de infraestrutura. Eles dizem respeito ao tipo de nação que o Brasil deseja ser.

Democracia não se defende com boas intenções ou discursos genéricos. Ela exige ação consistente, clareza e coragem para enfrentar as consequências de escolhas difíceis. O tempo dirá se o Brasil optará por isso ou se contentará com a conveniência de alianças que comprometem os valores que uma democracia deveria sustentar.

Galerias da Democracia

Começando pelo princípio: os “pais fundadores” atenienses, se a democracia tivesse propriamente fundadores. Não tem. E se tivesse haveria uma mãe, que adquiriu reputação de puta (diz-se que pela maledicência dos oligarcas): Aspásia de Mileto. O que temos aqui? Clístenes (em virtude da reforma distrital que propôs e implantou a partir de 508 a.C.), Efialtes (em razão da reforma que retirou o poder político do Areópago, por volta de 461 a.C – uma espécie de suprema corte até então coalhada de oligarcas), Péricles (o principal expoente da primeira democracia), Aspásia (sua amante, entre outras coisas, mas que não podia participar da democracia por duas razões: ser mulher e ser estrangeira) e Protágoras (aqui representando os sofistas, esses seres vulneráveis à democracia que foram vítimas de terríveis e injustos ataques de Platão e, claro, dos oligarcas).

De nenhum desses chegou a nós qualquer escrito. Aliás, não há nenhum texto teórico dos século 5 e 4 defendendo a democracia que tenha sobrevivido (se é que algum foi escrito). Só sabemos que houve democracia, por testemunhos indiretos da época do auge democrático (século 5 a.C.), por Ésquilo (em 472 a.C., Os Persas) e Eurípedes (em 425-16 a.C., As Suplicantes). E também por dois historiadores: Heródoto e Tucídides, que provavelmente nunca se converteram à democracia.

Então a primeira galeria é singela (e nela a imagem de Efialtes é totalmente inconfiável). Não aparece aqui o introdutor (ou os introdutores) do sorteio, sem o qual jamais teríamos ouvido a palavra democracia, pois se fosse para continuar disputando tudo no voto, os remanescentes da aristocracia fundiária, contrários à democracia, que tinham mais recursos para arrebanhar e subornar pessoas, venceriam todas ou quase todas as disputas (como de fato aconteceu, frequentemente, nos primeiros cinquenta anos depois da reforma de Clístenes).

A collage of statues of men

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 Pulando mais de dois milênios, passemos agora aos modernos que criaram as bases conceituais para a reinvenção da democracia, começando com Spinoza (vinte anos antes de Locke) (1670), seguido por Locke (1689), Montesquieu (1749), Rousseau (1762), Jefferson (representando os redatores da Declaração de Independências dos EUA) (1776), Madison (representando os federalistas Hamilton e Jay) (1787-88), Paine (1791), Constant (1819), Tocqueville (1835), Mill (1859), Dewey (1937-39), Popper (1945) e Arendt (c. 1950).

A collage of portraits of men

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 Bem, agora vêm os pensadores que fizeram a ponte entre os modernos e os contemporâneos: Berlin (1969), Dahl (1972-98), Havel (1978), Lefort (1981), Bobbio (1981-84), Castoriadis (1986), Dahrendorf (1990), Rawls (1993), Maturana (1993), Sen (1999), Przeworski (1985), Fukuyama (1995) e Rancière (2005).

 Em seguida, mais duas galerias de contemporâneos, cujos nomes os leitores não vão ter muita dificuldade de associar às imagens abaixo; embora aqui estejam em ordem alfabética: Applelbaum, Carothers, Castells, Coppedge, Diamond, Foa, Galston, Horowitz, Huntington, Inglehart, Krauze, Kyle, Levitsky, Lindberg, Linz, Lipset, Lührmann, Mounk, Naim, O’Donnell, Plattner, Putnam, Runciman, Snyder, Tannenberg, Teorell, Welzel, Ziblatt. Nem todos, porém, estão retratados.

A collage of men wearing suits

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A collage of several people

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 Claro que nas duas galerias acima não estão todos os pensadores (ou autores) contemporâneos da democracia. São apenas alguns exemplos destacados.

No entanto, estudar esses autores não é o único caminho – nem talvez o mais curto – para que as pessoas despertem para a democracia. Como a democracia é um processo de desconstituição de autocracia, ela se aprende melhor pelo avesso. Em outras palavras, aprender democracia é desaprender autocracia. Um dos caminhos, portanto, é explorar as distopias, nas quais os padrões autocráticos aparecem em estado puro (ou quase) e podem ser mais facilmente identificados. O reconhecimento desses padrões na vida cotidiana é o melhor indicador de aprendizagem da democracia.

Então, a próxima galeria reúne os principais distopistas: Jerome K. Jerome (1981 em A nova utopia); Yevgeny Zamyatin (1921 em Nós); Aldous Huxley (1932 em Admirável mundo novo); Arthur Koestler (1940 em O zero e o infinito, ou melhor, Escuridão ao meio dia); George Orwell (1945, em A revolução dos bichos, ou melhor, Fazenda dos animais; e também 1949, em 1984); Ray Bradbury (1953 em Fahrenheit 451); William Golding (1954 em O senhor das moscas); e Daniel Wallace (2015 em Star Wars: manual do império). Aqui, novamente, não estão todos; por exemplo, falta, entre outros, Margaret Atwood (1985 em O contro da aia).

 Por último, há os grandes ficcionistas (ditos às vezes “científicos”), fundadores de mundos imaginários que, ainda mais que os distopistas considerados acima, revelam uma camada interpretativa das configurações sociais que permitem a ereção de sistemas autocráticos. Vale a pena destacar pelo menos três: Isaac Asimov (1951-53, pela trilogia Fundação, e 1982-93 pela extensão da série); Frank Herbert (1965-85 pela série Duna) e Philip Dick (1962 pelo O homem do castelo alto).

A collage of men with beards

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 Algumas obras fundamentais dos construtores da “tradição” democrática moderna, de Baruch de Spinoza a Amartya Sen, estão disponíveis na nota Tratamento para o analfabetismo democrático. É possível que, futuramente, sejam disponibilizadas também as obras principais dos demais presentes nas galerias acima.

Arquivo/Estadão Conteúdo - 20/10/2020

Crônica do fracasso anunciado da esquerda

A esquerda brasileira foi vastamente derrotada nas eleições municipais de 6 de outubro de 2024. Essa derrota já era esperada, pois vinha sendo construída abertamente pelo presidente da República e seu partido. Lula, autocrata do PT, domina de cabo a rabo a esquerda brasileira; podendo-se dizer que o rabo é constituído por minúsculos partidos de extrema-esquerda que acham ainda insuficiente o apoio de Lula ao ditador da Venezuela, muito discreta sua afeição ao tirano russo invasor da Ucrânia e tímida sua agressividade contra Israel.

O referido fracasso político-eleitoral no âmbito municipal indica para breve um novo e mais grave fracasso: Lula provavelmente não será reeleito e a tendência é que uma aliança democrática mais à direita eleja um novo presidente da República em 2026.

Não que a esquerda vá morrer – o que não seria nada saudável para uma democracia – mas a torcida da esquerda democrática deve ser para que a esquerda lulopetista se afogue no charco da sua própria irrelevância.

Antes de seguir na exposição da construção do fracasso anunciado da esquerda brasileira, convém uma rápida exposição – como que um gancho – da história da esquerda e do fracasso histórico do marxismo.

A promessa do paraíso e o inferno do poder

A Revolução Francesa de 1789 inaugurou duas amplas correntes políticas que, em recorrentes enfrentamentos mais ou menos agudos, passaram a dominar o cenário político internacional: “la gauche” (esquerda) e “la droite” (direita).

A esquerda é, portanto, anterior e bem mais ampla que o marxismo. Todavia, vendendo-se como ciência em uma época galvanizada pelo cientificismo, o marxismo avassalou a esquerda mundial desde o início do século 20 e, com a Revolução de 1917, na Rússia, avançou internacionalmente por meio de expansão imperialista da sua feição leninista-stalinista lá implantada ou por replicadas revoluções.

Em todo esse avanço, que chegou a dominar metade do mundo, o marxismo se sustentou na promessa de construção do paraíso na terra; tendo embora o cuidado de afirmar a necessidade de uma fase transitória infernal chamada de ditadura do proletariado. Tal ditadura – que nunca foi do proletariado, mas do partido marxista ocasionalmente no poder –, não conseguindo construir o prometido paraíso proletário, tratou de garantir o paraíso de poder dos dirigentes.

Autoritário desde sua elaboração teórica e desde suas primeiras ações na Liga Comunista e na Primeira Internacional Comunista – como denunciado pelo anarquista Bakunin, colega de Marx na Primeira Internacional –, o marxismo, quando vitorioso, quando colocado em prática, degenerou até a perversidade tirânica do leninismo-stalinismo.

A social democracia

Deve-se, no entanto, registrar que marxistas destacados repudiaram tais práticas autoritárias; como foi o caso do alemão Eduard Bernstein, que fez a primeira revisão do marxismo, e de Rosa Luxemburgo, que desde o início da implantação do regime leninista na Rússia o denunciou como sendo não uma ditadura do proletariado, mas uma ditadura sobre o proletariado.

Cabe também registrar que a Segunda Internacional (Internacional Socialista) – de origem marxista, que teve Engels entre seus fundadores – abandonou, a partir da revisão de Bernstein tanto o autoritarismo da fase de transição quanto a promessa do fim paradisíaco, deixando de lado o fanatismo revolucionário para defender os interesses dos trabalhadores no âmbito da democracia e do reformismo.

O fim é nada, o caminho é tudo”; essa frase, encontrada na obra de Monteiro Lobato, resume bem o ideário da esquerda reformista social-democrata. Creio que deva ser sempre relembrada, especialmente pelos inescrupulosos maquiavélicos que dizem que o fim justifica os meios.

A segunda guerra fria: um resumo iconográfico

Antes de qualquer coisa é preciso saber que uma segunda grande guerra fria já está instalada. E que ela não é, como a primeira, uma divisão de blocos Oeste x Leste compostos por países. Não é EUA x China no lugar de EUA x URSS. A segunda guerra fria é uma campanha de exterminação das democracias liberais promovida pelas maiores autocracias do planeta que se instala dentro de todos os países, capturando setores internos não-liberais desses países, sobretudo governos e forças políticas populistas.

Na segunda guerra fria há conflitos quentes convencionais (entre países, como Rússia x Ucrânia) e não-convencionais (entre grupos sub ou não nacionais entre si e contra países, como Hamas x Israel), mas predomina a netwar: a nova forma de guerra do século 21. Países autocráticos estão na ofensiva nessa forma de guerra que tenta interferir na geopolítica regional e mundial e, além disso, na política interna de cada país. A netwar não é menos perigosa do que as guerras frias convencionais. Ela pode ensandecer multidões que, dependendo das circunstâncias, não hesitarão em tomar de assalto as instituições democráticas.

Há um campo autocrático e um campo democrático no mundo atual. Potencialmente estão no campo autocrático, segundo a classificação do V-Dem 2023 (modificada por mim), 33 autocracias fechadas (não-eleitorais), 56 autocracias eleitorais e um número não-determinado (menor do que 58) de regimes eleitorais parasitados por populismos (ainda chamados, benevolamente, de democracias). Potencialmente, ainda segundo o V-Dem 2023 modificado, estão no campo democrático as 32 democracias liberais e um número não-determinado (também menor do que 58) de regimes eleitorais formais não-parasitados por populismos (que poderiam ser chamados, com mais razão, de democracias apenas eleitorais).

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Para além do campo potencial, há um eixo autocrático se formando no mundo em que vivemos, imerso desde o início do século em uma terceira onda de autocratização.

O objetivo do eixo autocrático é exterminar as democracias propriamente ditas (liberais ou plenas).

Há um campo democrático potencial, mas não propriamente um eixo democrático formado por democracias plenas ou liberais. No apoio à Ucrânia contra a invasão do ditador Putin chegou-se a formar uma inédita coalizão de democracias liberais (que poderia ser considerada um embrião desse eixo).

O eixo autocrático está capturando regimes eleitorais parasitados por populismos.

No campo democrático estão as democracias formais, não parasitadas por populismos.

Tudo isso é um briefing. Para explicações mais detalhadas leia o artigo Democracia é democracia liberal.

Clube Autocrático

O ano inicia com um novo formato do BRICS. Entram no clube fundado por China, Brasil, África do Sul, Rússia e Índia, os seguintes novos sócios: Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. O bloco passa a ser formado por dez países depois desta que é considerada a mais importante ampliação do grupo que opta por uma guinada autocrática, tornando-se definitivamente um fórum hostil ao movimento democrático.

O novo BRICS ou BRICS 10, como tem sido chamado em alguns fóruns internacionais, é composto em sua vasta maioria, ou seja, 80%, por países que não possuem qualquer traço democrático em suas estruturas, sendo considerados ditaduras ou autocracias.  As exceções são Brasil e África do Sul. Nenhum membro, entretanto, pode ser classificado como uma democracia liberal plena.

A avaliação é a mesma daquela realizada pelos principais órgãos que medem os níveis de democracia em escala global, como a Freedom House sediada nos Estados Unidos, Universidade de Gotemburgo na Suécia e Economist Intelligence Unit com base no Reino Unido. O cálculo geral mostra que hoje existe uma ampla maioria de ditaduras e autocracias no mundo e o número de democracias vem regredindo constantemente.

O movimento de expansão do BRICS, portanto, é a expressão clara deste movimento pelo qual passa o mundo em tempos recentes, porém, as consequências deste caminho ainda não foram medidas. Entretanto, causa ansiedade notar que nações classificadas como democracias eleitorais ou imperfeitas como o Brasil se deixem seduzir pela aliança com países que violam garantias e liberdades conquistadas ao longo da História. Nosso país deveria rumar em sentido oposto, consolidando alianças com democracias.

Dentro do BRICS 10, o Brasil agora estará ao lado de autocracias eleitorais, ou seja, aquelas que realizam eleições simplesmente protocolares como Rússia, Egito, Índia e Etiópia, onde sabemos antecipadamente os vencedores. Além destas, agora somos sócios de autocracias fechadas, países já sem qualquer pudor em aplicar uma política despótica, como Arábia Saudita, Emirados Árabes, Irã e China, considerados também regimes autoritários consolidados.

Em Buenos Aires houve uma correção de rumo. O novo governo fez a opção por declinar do convite do BRICS, uma vez que não acredita nos propósitos de um grupo que possui a autocracia como fator balizador e a liderança da China como farol. Os argentinos foram além e falam em diminuir a dependência do investimento chinês que tem tornado aos poucos muitos países reféns dos desejos de Pequim.

Este é o principal ponto deste clube autocrático. O BRICS está longe de ser uma iniciativa que eleva países periféricos a serem partícipes do concerto internacional. O grupo se tornou a principal base de lançamento de iniciativas, financiamento e apoio mútuo de uma política baseada em interesses que estão em confronto direto com os valores ocidentais de liberdade e democracia. Um clube que mina os esforços em prol da democracia, liberdade e soberania daqueles que rejeitam sua cartilha. Uma forma de imperialismo e dominação que de forma silenciosa vem impondo sua agenda e seus interesses em escala global.  

Márcio Coimbra é Presidente do Instituto Monitor da Democracia e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig). Cientista Político, mestre em Ação Política pela Universidad Rey Juan Carlos (2007). Ex-Diretor da Apex-Brasil e do Senado Federal

Por que somos oposição democrática ao governo Lula

(Esboço de uma declaração de democratas não-populistas)

Antes de qualquer coisa, porque não concordamos com os populismos do século 21, seja com o populismo dito de esquerda (o neopopulismo de Chávez-Maduro, de Ortega, de Lourenço, de Evo, de Correa, de Lugo, de Funes, de Kirchner, de Petro, de Obrador e de Lula), seja com o populismo dito de direita ou de extrema-direita (o populismo-autoritário de Bannon, de Trump, de Orbán, de Erdogan, de Wilders, de Le Pen, de Farage, de Gauland, de Salvini, de Abascal, de Modi e de Bolsonaro).

Avaliamos que os populismos, ditos de esquerda ou de direita, são hoje os principais adversários da democracia liberal. A evidência mais flagrante disso é o alinhamento dos governos populistas (ditos de esquerda ou de direita) ao eixo autocrático (Rússia, Irã, Síria e outras ditaduras islâmicas – incluindo Hamas, Hezbollah, Jihad Islâmica e demais organizações terroristas – com o apoio dissimulado da China e, às vezes, da Índia).

Somos oposição democrática ao governo lulopetista porque é um governo neopopulista, não-liberal. Discordamos da oposição bolsonarista porque é uma oposição antidemocrática, iliberal.

Nos opomos ao governo Lula por razões políticas (democráticas), não por motivos extra-políticos que tenham a ver com tradições, costumes e valores ditos conservadores (mas muitas vezes reacionários, no caso dos bolsonaristas).

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com sua posição de se alinhar às maiores autocracias do planeta contra as democracias liberais.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com o seu relacionamento preferencial com ditaduras de esquerda (como Cuba, Venezuela, Nicarágua) e de não privilegiar as democracias liberais da América Latina (como Costa Rica, Chile e Uruguai).

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com o fato dele não apoiar a resistência ucraniana à invasão do ditador Putin.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com o fato dele ser um articulador de um bloco composto majoritariamente por ditaduras (o BRICS), onde não figura nem uma democracia liberal.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com a sua visão geopolítica de um Sul Global em guerra fria contra o mundo livre (supostamente composto por países ricos, imperialistas e colonialistas).

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com o seu posicionamento objetivamente contrário à auto-defesa de Israel aos ataques da organização terrorista Hamas.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com sua desvalorização do papel de uma oposição democrática para o bom funcionamento do regime democrático e rejeitamos a prática de seus esbirros de chamar quem não é governista de fascista ou golpista e de fazer acusações sórdidas a quem critica ou não apoia o governo de querer a volta de Bolsonaro.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com sua prática de tomar a política como uma continuação da guerra por outros meios, dividindo a sociedade com uma única clivagem (povo x elites) e adotando a dinâmica do “nós” (o povo, quer dizer, os que seguem o líder) contra “eles” (as elites, ou seja, os que não aceitam se subordinar à hegemonia petista).

Nos opomos ao governo Lula porque rejeitamos o seu estatismo e defendemos as reformas de modernização do Estado promovidas na última década (incluindo a continuidade das privatizações) e o compromisso com as reformas futuras, com destaque para a administrativa e a política (com o fim da reeleição e a reforma partidária – visando a democratização interna dos partidos e o fim da partidocracia).

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com a sua velha proposta petista de controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação, nem com a tentativa de incorporar grandes veículos de imprensa (escrita e televisiva) ao seu sistema de governança, criando um jornalismo chapa-branca, ameaçando e cancelando os profissionais independentes que não se conformam com essa interferência.

Nos opomos ao governo Lula porque não concordamos com sua estratégia de conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido com o objetivo de se delongar do governo (falsificando o critério da rotatividade democrática).

Verdades relativas sobre o conflito Israel x Hamas

Examinemos quatro verdades relativas, tidas e divulgadas falsamente como absolutas, sobre o conflito Israel x Hamas.

1 – A solução para a crise são dois Estados: um de Israel e outro Palestino. Não necessariamente. Só se forem dois Estados democráticos de direito. Mais uma tirania no Oriente Médio (onde já existem dezesseis ditaduras) não resolverá o problema.

2 – A solução para a crise humanitária é um cessar-fogo imediato. Não necessariamente. Se Israel paralisar sua resposta aos ataques terroristas (que continuam) o Hamas ganhará uma trégua para se reorganizar e continuar aterrorizando a população civil israelense (e gerando mais crise humanitária).

3 – Todos os bombardeios de prédios civis com mortes de civis em Gaza violam as leis da guerra. Não necessariamente. Os combatentes do Hamas são civis, não usam uniformes, não ocupam instalações militares e não podem ser distinguidos de civis não combatentes se estiverem no mesmo território.

4 – É necessário fazer uma reforma no Conselho de Segurança, acabando com o poder de veto de algumas potências, para que o ONU recupere seu papel pacificador e tenha capacidade de evitar guerras sangrentas, massacres terroristas e genocídios. Não necessariamente. Como as democracias liberais ou plenas são minoritárias no conjunto de 193 países, as autocracias arriscam ganhar todas as votações em desfavor das democracias.

Passemos agora aos comentários gerais que afetam, direta ou indiretamente, os três primeiros pontos.

Israel tem o direito de autodefesa e o dever de proteger sua população dos ataques terroristas do Hamas. Mas se um cessar-fogo é inaceitável, parece óbvio que, agora, Israel não poderá destruir completamente o Hamas. Não tem condições políticas, nem militares, para fazer isso no curto prazo. Logo, o objetivo da incursão em Gaza deve ser mais realista; por exemplo, o resgate dos reféns feitos pelo Hamas e a destruição de parte do seu arsenal operacional armazenado numa rede imensa de túneis, que ainda ameaça Israel, não a exterminação completa da organização.

O Hamas não pode ser completamente destruído de imediato, em primeiro lugar porque sua ideologia – a do jihadismo ofensivo islâmico que toma como objetivo religioso uma “solução final”: a aniquilação de Israel – não vai desaparecer (e parte significativa da população de Gaza está impregnada dessa ideologia necrófila). Além disso, porque há de fato uma organização (o Hamas) e seus chefes não estão em Gaza e sim protegidos no Catar, no Líbano, na Síria, na Turquia, talvez no Iraque e provavelmente no Irã.

E enquanto isso Israel vai perdendo a guerra da propaganda, uma vez que, ocupando o mesmo território, não há como distinguir os combatentes do Hamas, que são para todos os efeitos civis, dos civis palestinos não combatentes. Todo o ataque de Israel será divulgado como ataque contra civis: não há instalações militares identificáveis em Gaza, os jihadistas não usam uniformes, seus bunkers são prédios civis, em geral escondidos em hospitais, escolas, mesquitas e, inclusive, sedes de organizações humanitárias internacionais.

Mesmo com todo apoio das grandes nações democráticas, Israel não pode aguentar semanas ou meses desse tipo de exposição midiática, que apresenta Israel ao mundo como genocida. O show da vítima, repetido diariamente, com a contabilidade macabra das crianças mortas, das gestantes e dos doentes, dos idosos e das pessoas com necessidades especiais cruelmente assassinados, será devastador.

Os chefes militares israelenses e a extrema-direita nacionalista no governo Bibi podem não gostar disso, mas deverão ser obrigados a engolir a realidade. Claro que, passada a fase mais crítica do conflito, o atual governo de Israel deve ser deposto pelas forças democráticas da própria sociedade israelense, sua política de ocupação da Cisjordânia deve ser radicalmente modificada e deve ser anunciado um plano, ainda que de longo prazo, para a criação do embrião de um Estado democrático de direito na Palestina.

Será muito difícil derrotar o Hamas militarmente se essa organização terrorista não for derrotada politicamente.

Ocorre que o Hamas, além de ter sua direção estratégica mais alta fora de Gaza, como já foi dito, não apenas se esconde na população palestina (usando-a como escudo). Depois de quase duas décadas, o Hamas está relativamente enraizado na sociedade palestina. Sob esse aspecto a comparação do Hamas com o Estado Islâmico é imperfeita.

Seus militantes mais jovens já nasceram sob a ditadura do Hamas. Uma família palestina normal pode não ter nada a ver com o Hamas, mas algum ou alguns dos seus filhos, pode, sim.

São jovens normais, gostam de futebol, têm seus herois imaginários, seus artistas admirados, suas músicas preferidas. Só que neles foi inoculada pelos sacerdotes sunitas do jihadismo ofensivo islâmico uma semente de ódio difícil de ser removida. A explicação padrão que seus professores inocularam para que eles repetissem para si mesmos é que tudo que detestam nas suas vidas, todos os seus carecimentos, sua impossibilidade de viajar e conhecer outros lugares e se relacionar com outras pessoas, de serem quem sonham, enfim, tem uma causa e um conjunto de culpados. A causa é a ocupação de sua terra por Israel e os culpados são os judeus.

Além disso, na medida em que se comprometem com a hierarquia do Hamas, esses jovens passam a ter privilégios, algum dinheiro, passe livre em instituições (inclusive de ensino médio e superior), sobras da ajuda humanitária estrangeira que foi desviada pelos terroristas. Mal-comparando, é como ser recrutado pelo narcotráfico: você vai poder usar aquele tênis bacana, você vai poder desfilar de moto, você vai ganhar por mês o que seus pais não conseguem ganhar em um ano. E vai ser respeitado; ou, pelo menos, temido.

Para quebrar isso sem matar ou prender milhares de pessoas e sem destroçar as famílias só com uma experiência relativamente longa de viver sob outro regime de mais liberdade e igualdade de oportunidades. Para tanto, o Hamas tem que ser derrotado politicamente, sua ditadura tem que ser deposta pela própria população (ainda que sob arbitragem e proteção internacional, inclusive de outros países da região) e um novo governo deve assumir o seu lugar.

Sem isso não há solução, pelo menos uma solução humanamente aceitável – já que o extermínio da sua população, a sua evacuação (para onde?), a sua conversão forçada à democracia (em campos de reeducação) não são saídas admissíveis pelo mundo democrático. Erigir um novo Estado palestino que não seja um Estado democrático de direito – mais uma tirania entre as dezesseis que já povoam o Oriente Médio – não vai resolver o problema. Um proto-Estado autocrático assim já existe em Gaza, onde há governo e esse governo está nas mãos dos terroristas do Hamas.

Nada disso significa, porém, que Israel não deva reagir ao bárbaro ataque terrorista que sofreu no dia 08/10, deixando sua população vulnerável a novas investidas mortíferas do Hamas. Isso seria inexplicável e desumano. Israel tem que eliminar a hierarquia militar jihadista que se esconde em Gaza. Tem que destruir as armas do Hamas (sobretudo seus mísseis e fábricas de mísseis – estejam onde estiverem) e tem que destruir também a imensa infra-estrutura subterrânea que foi construída nos últimos anos (quase um Metrô de Londres): os túneis devem ser lacrados. Como vai fazer isso sem entrar no território de Gaza, gerando vítimas civis, é o problema (e os militantes do Hamas são civis). Mas mesmo que Israel encontrasse uma solução militar para esse problema que não fosse desumana, nada disso bastaria se não encontrasse também uma solução política.

Passemos agora aos comentários sobre o quarto ponto: a ONU.

Como as democracias liberais e plenas são minoria no mundo (no máximo 35 em 193 países), o eixo autocrático (ao qual o governo Lula se alinhou) vai querer propor uma reforma majoritarista na ONU, abolindo o poder de veto no Conselho de Segurança. Se alguma democracia liberal ou plena não tiver poder de veto, as quase 90 autocracias e seus aliados (uma parte do conjunto dos cerca de 60 regimes eleitorais, aquela parte parasitada por populismos, como o Brasil) arriscam ganhar todas as votações por maioria. Por exemplo, poderiam aprovar uma condenação de Israel por genocídio. Ou poderiam decidir que a Ucrânia deveria cessar-fogo em vez de resistir à invasão da Rússia. Obviamente, isso não poderá ser aceito pelo mundo democrático. Se acontecer, será o fim da ONU.

Usar a ONU para validar propaganda é um truque antigo. O sistema das Nações Unidos abriga dezenas de comissões, comitês, agências, programas, fundos, fóruns, institutos de estudo e pesquisa e até uma universidade que não falam pela ONU. Só falam pela ONU a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança (o único com poder decisório) e o Secretariado (que é órgão administrativo, dirigido pelo Secretário-Geral). Além desses, as instâncias orgânicas da ONU são a Corte Internacional de Justiça, o Conselho Econômico e Social e o Conselho de Tutela.

Em abril do ano passado Lula chegou a dizer que foi absolvido pelo “tribunal da ONU”. Não há tribunal da ONU. Foi um parecer do Comitê de Direitos Humanos segundo o qual a investigação e o julgamento de Lula não foram imparciais.

Lula agora declara que Israel matou milhares (arriscou até prever milhões) de crianças em Gaza sem dizer a fonte. Os petistas dizem que foi a ONU. É falso. Provavelmente a informação veio do “Ministério da Saúde” de Gaza, que é um departamento da organização terrorista Hamas. O mesmo lugar de onde saiu a informação fraudulenta – já desmentida – de que Israel havia bombardeado o hospital Ahli Arab deixando cerca de 500 mortos.

Independentemente do viés parcial de muitos analistas há um problema de analfabetismo democrático. Aí a pessoa vai na TV e reclama que tem que reformar o Conselho de Segurança da ONU abolindo o poder de veto de alguns países. Fazer o quê? A pessoa não sabe que as democracias são minoritárias no mundo, que se as decisões forem por voto de maioria as autocracias ganharão todas as disputas.

A pessoa não sabe que na composição atual do Conselho de Segurança existem 6 ditaduras (autocracias eleitorais e fechadas) e apenas 5 democracias liberais (ou plenas).

A pessoa não sabe que se as três democracias liberais que são membros permanentes do Conselho não tivessem poder de veto, as democracias ficariam vulneráveis ao avanço das ditaduras. Por exemplo, a pessoa não sabe que dos 47 países que formam o Conselho de Direitos Humanos da ONU, 70% não são democracias – incluindo autocracias como China, Cuba, Eritreia, Paquistão, Somália, Sudão, Argélia e Emirados Árabes Unidos.

E a pessoa não sabe nada disso não é por maldade. É por ignorância mesmo. Não sabe diferenciar (seguindo a classificação do V-Dem) uma democracia liberal de uma democracia apenas eleitoral, de uma autocracia eleitoral e de uma autocracia fechada. Ou, em outros termos (da The Economist Intelligence Unit), não sabe a diferença entre uma full democracy, uma flawed democracy, um hybrid regime e um authoritarian regime. Ou, ainda (da Freedom House), um regime freepartly free ou not free. Um meio de comunicação profissional deveria fornecer programas de educação política para seus colaboradores.