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Um olhar “realista”sobre o conflito Rússia x Ucrânia: Entrevista com Marcos Degaut

A mais casual conversa com Marcos DEGAUT equivale a uma aula sobre Geopolítica e Relações Internacionais, sob uma perspectiva realista, gostemos ou não do que ele tem a nos dizer. Degaut, que é mestre pela UnB, Ph D em Segurança Internacional pela University of Central Florida e doutor em Direito Internacional pela UDF, tem mais de 30 anos de experiência no serviço público e já trabalhou como secretário-adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, secretário de Produtos do Ministério da Defesa e secretário-executivo da Câmara de Comércio Exterior do Brasil-Camex. Por isso, estava ansioso por ouvi-lo a respeito da situação atual e das perspectivas futuras da crise envolvendo Rússia, Ucrânia, Estados Unidos e Europa. Gentilmente, Degaut respondeu às perguntas abaixo. Mas a responsabilidade pela edição final de suas respostas é toda minha. Vamos lá?

1) PK – O acordo Estados Unidos/Ucrânia sobre minerais estratégicos, recentemente anunciado, garantiria a segurança ucraniana contra futuras invasões russas?

MD – O acordo que está sendo desenhado é de natureza comercial e financeira. Não inclui nenhum componente militar, de defesa. O que ele prevê é a exploração, pelos americanos, de terras raras/minerais estratégicos da Ucrânia. Prevê, também, a constituição de um fundo destinado a financiar a reconstrução ucraniana. O presidente da Ucrânia, Volodomyr Zelensky, desejava incluir essa componente militar, mas o presidente Donald Trump a vetou, pelo menos até o momento. Então, o futuro pacto NÃO oferece à Ucrânia nenhuma garantia contra possíveis novas invasões. Em tempo: considero que o objetivo maior da Rússia é impedir a presença militar ocidental (Otan) em território ucraniano, que o Kremlin encara como seu ‘entorno imediato’ — e não expandir o domínio russo.

2) PK – Ao quebrar o gelo das negociações com a Rússia de Vladimir Putin, estaria Trump enfraquecer a aliança Pequim/Moscou?

MD – Sim. A orientação atual da política externa é de segurança nacional do governo dos Estados Unidos baseia-se na percepção de que o seu principal adversário geopolítico, geoestratégico, é a China. Trump deseja a reinserção da Rússia no sistema financeiro internacional de modo a afastá-la da China, o que envolve a garantia de que a Otan não posicionará suas tropas na fronteira com a Rússia. Essa manobra pode dar certo, até porque a maioria dos generais russos hoje está descontente com a situação de seu país como ‘sócio menor’ dos chineses. Um benefício adicional da reintegração da Rússia ao sistema financeiro internacional é o seu impacto anti-inflacionário: com a revogação das atuais sanções econômicas, o reingresso do gás e do petróleo russos no mercado energético mundial contribuiria para manter a estabilidade geral dos preços. Ao mesmo tempo, isso normalizaria o acesso da Rússia às commodities agrícolas de que ela tanto necessita. Por tudo isso, creio que essa manobra teria, sim, boas chances de sucesso.

3) PK – Como avaliar a solidez do compromisso da Europa Ocidental — especialmente França e Alemanha — para com a segurança ucraniana em face de uma nova ameaça militar russa?

MD – Uma coisa é a legitimidade desse compromisso; outra, muito diferente, é a sua credibilidade na prática, dentro de um prazo viável. Hoje, a Rússia, ao lado dos Estados Unidos e da China, é um dos países que mais gastam com armamentos. A quantidade dos estoques militares russos é muito superior à europeia. Isso para não falar da enorme superioridade dos arsenais nucleares da Rússia em comparação com os da França e do Reino Unido. Mesmo que a Europa comece a investir hoje tudo aquilo que líderes como o presidente francês Emmanuel Macron prometem, sobretudo no atual contexto de déficits públicos na maioria desses países — e na hipótese irrealista de a Rússia nada fazer para incrementar suas capacidades militares —, seriam necessários de 10 a 1 anos e cerca de 800 bilhões de dólares para equiparar esses arsenais…. Onde arranjar tanto dinheiro em meio a uma apertada situação fiscal? Uma coisa é certa: a Rússia não vai ficar esperando de braços cruzados.

4) PK – Podem os ucranianos confiar numa paz duradoura com os russos? Estaria a Ucrânia fadada a se conformar com perda de 20% do seu território para a Rússia como preço da paz?

MD – Volto àquele ponto anterior: a Rússia atual de Putin não é a antiga União Soviética, que estava interessada em exportar a revolução comunista para o resto do planeta. O que a Rússia de hoje quer são fronteiras seguras, o mais longe possível das forças da Otan. Para tanto, o Kremlin considera vital manter sua influência no ‘entorno imediato’: Ucrânia, Belarus etc. Não se trata de invadir, tomar conta desses territórios, mas, sim, impedir a influência das grandes potências ocidentais naquele entorno.

5) PK – Quer dizer que o destino da Ucrânia é jamais vir a se tornar membro da Aliança Atlântica? E da União Europeia?

MD – Da Otan, seguramente, jamais; os russos nunca aceitarão. Para eles, trata-se de uma questão existencial. Já quanto à UE, que é um bloco econômico sem componente militar, não vejo nenhum obstáculo intransponível a uma futura adesão ucraniana.

6) PK – Na sua opinião, Taiwan será a ‘próxima Ucrânia’?

*MD – Vejo aí uma diferença qualitativa muito importante: a Ucrânia sempre foi entendida como uma entidade à parte do território russo, o que contrasta vivamente com o caso de Taiwan, ilha que há séculos foi incorporada ao território da China imperial. Pertenceu ao Japão por 50 anos (1895/1945) e, em 1949, serviu de refúgio ao Kuomintang de Chiang Kai-shek, derrotado pela revolução comunista daquele ano. A República Popular da China exige como condição para o estabelecimento de relações oficiais com qualquer país que este rompa laços diplomáticos com a República da China (Taiwan). Os taiwaneses mantêm escritórios de representação comercial e intercâmbio cultural na maioria das nações, mas embaixadas em um número cada vez menor de países. Na minha opinião, a China de Xi Jinping está se preparando para anexar Taiwan (à força, se necessário); resta saber como o Ocidente reagirá….

7) PK – Lembrando o colapso final da presença norte-americana no Afeganistão (2021), como uma mediação de Trump para pôr fim à guerra Rússia X Ucrânia pode afetar sua popularidade perante a opinião pública dos Estados Unidos?

MD – Mais uma diferença marcante aqui…. Por 20 anos, os Estados Unidos mantiveram forte presença militar no Afeganistão (boots on the ground); vidas norte-americanas foram perdidas. E, no final, material bélico dos Estados Unidos foi abandonado e tomado pelo Taliban. No caso Rússia X Ucrânia, Trump se recusa a enviar soldados para lutar na Europa Oriental. Também já deixou claro que quer desescalar as tensões militares entre russos e ucranianos como prelúdio a um novo contexto que faça sentido comercial, econômico, para as partes envolvidas. Se isso der certo, a popularidade doméstica de Trump será alavancada.

PK – Muito obrigado!

Trump, a revolução do senso comum e o fim da cultura woke

O wokismo como cultura dominante progressista chegou ao fim com a contrarrevolução de Trump, é o que escreve Benedict Neff, analista político suíço, em seu artigo no Neue Zürcher Zeitung (NZZ).

Ao analisar a chamada “revolução do senso comum”, proclamada pelo presidente americano em seu discurso inaugural, o jornalista explica: “o que ele quer dizer com isso é que existem apenas dois gêneros e que as pessoas devem falar como quiserem — “liberdade de expressão“. Parece simples. E é. O senso comum não é muito exigente.

Por uma feliz coincidência, acabo de ler um divertido e interessante texto “entrevista com o senso comum”, escrito por Luiz Felipe Pondé.

Ao ser questionado por Pondé sobre o que considerava mais importante na sua vida, o senso comum respondeu: “minha família, que meus filhos não usem drogas e Deus”. Eis a chave do imbróglio político da atualidade e o motor que impulsiona a tal polarização.

Se a esquerda raiz já atacava a família – Marx e Engels a veem apenas como uma instituição burguesa voltada para a manutenção da propriedade privada – e Deus – A religião é ópio do povo – a nova esquerda pós-moderna e pós-marxista, conceitualmente nutrida por Marcuse, Foucault, Judith Butler, etc escancara essa guerra contra os valores morais de maneira chocante para o senso comum.

Um ponto importante, abordado também por Pondé em artigo anterior ao supracitado, é que essa esquerda nutella woke pretende “criar um novo senso comum”, o que é obviamente absurdo uma vez que “o senso comum não é algo que a engenharia social, paradigma da esquerda, consegue fazer acontecer”.

Esse anseio paradoxal e impossível de criar um novo senso comum explica parcialmente o alto grau de autoritarismo da militância woke.

Aceitar que um indivíduo adulto opte por tomar hormônios e fazer uma cirurgia para mudar de sexo sem se intrometer na sua vida nem condená-lo por viver assim não é mais suficiente. Você deve acreditar que esse indivíduo realmente mudou de sexo; pensar o contrário seria indicativo de intolerância e transfobia; expressar o que você pensa e acredita acerca disso pode lhe render processo e até cadeia.

Educar as crianças para esse novo mundo onde há mais gêneros do que cores do arco-íris é fundamental nesse processo de engenharia social; se você não acha que seus filhos devem ser educados nesse fantástico mundo de Bobby, prepare-se, seu reacionário homofóbico transfóbico de extrema direita, para ter problemas com o Estado e com seus amigos mais despertos (wokes).

Foi por se contrapor duramente a essa situação distópica que Trump assegurou, mais uma vez, a sua vitória, o que é um forte indicativo, segundo o jornalista suíço do NZZ, de que o Woke como cultura ocidental dominante chegou ao fim.

Benedict Neff lembra que “o antecessor de Trump, Joe Biden, assumiu o cargo em 2021 para formar o gabinete mais diverso da história americana e seu primeiro decreto foi sobre justiça social e equidade em relação às minorias. A ideia de que a sociedade deveria se tornar mais inclusiva, diversa e sensível parecia imparável no Ocidente. Isto foi considerado um progresso por excelência”.

Pesquisas mostravam, porém, que a maioria da população (o tal senso comum) ficava cada vez mais desconfortável com as proibições de pensar e falar que inevitavelmente acompanhavam o avanço das políticas afirmativas. Mesmo assim, os democratas continuaram enfiando goela abaixo da sociedade os valores DEI (diversidade, equidade e inclusão).

Um número cada vez maior de pessoas foi entendendo que essas políticas, que retoricamente afirmavam buscar a libertação das minorias, “na verdade as limitava à sua identidade, a categorias como origem, cor da pele e gênero”.

Donald Trump está acabando com as políticas DEI. É a revolução do senso comum. O problema é que a direita populista, nacionalista, iliberal, representada por Trump não é propriamente uma direita dotada de bom senso, mas uma direita que tende, também ela, a se contrapor a algo muito comum, genuíno e espontâneo: a compaixão, por exemplo.

Dentre as suas inúmeras medidas duríssimas contra imigrantes, destaca-se como particularmente desumana o ter encerrado o status de proteção temporária (TPS, na sigla em inglês), para mais de 300 mil venezuelanos nos Estados Unidos, que devem ser deportados para voltar a sofrer os horrores da ditadura de Maduro nos próximos meses.

Ao comprar a briga contra a cultura woke, Trump conseguiu votos e apoio daqueles que já estavam exasperados com o avanço da agenda delirante e intolerante da esquerda progressista. Sob esse aspecto, Trump parece ter sido um mal necessário para frear as pretensões de uma esquerda que levou seus erros longe demais.

Considerá-lo um mal necessário para o momento, porém, é diferente de fazer dele um ícone, um ídolo, um grande símbolo da liberdade, tal como o faz a direita brasileira, que o adora como novo mito.

Foi vexatória e patética a excursão de parlamentares brasileiros de direita para os Estados Unidos, primeiro no dia da eleição, depois no dia da posse.

Mas também foi e é vergonhosa, pelo motivo oposto, a cobertura da imprensa progressista sobre qualquer coisa que diga respeito a Trump. A imprensa não preciso idolatrá-lo nem demonizá-lo, mas acompanhar com atenção e senso crítico suas decisões.

Para voltar a citar o já referido artigo do NZZ, parece que “o momento está com Trump.”

Lembra Benedict Neff que, “Para Goethe, o zeitgeist era a predominância de um lado que assumia o controle da multidão e fazia o que tinha que fazer por um tempo, enquanto o outro lado tinha que se esconder. Mas em algum momento o zeitgeist muda novamente…”

A cultura woke tende a cair em ruína sob o peso do seu próprio absurdo. Resta saber que outro erro absurdo tomará o seu lugar a fim de resistirmos também a ele.

Oportunismo Político

A ascensão de Donald Trump e a adoção de suas políticas, especialmente no âmbito migratório, tem funcionado como combustível para governos impopulares tentarem um regaste de prestígio diante de sua população. Vimos isso acontecer com a deportação de imigrantes ilegais colombianos e brasileiros dos EUA, algo que movimentou o cenário externo nos últimos dias.

Petro, presidente da Colômbia, mergulhado em uma desaprovação que ultrapassa 60%, busca incansavelmente caminhos que recuperem sua popularidade. Achou uma brecha com a repatriação de imigrantes ilegais colombianos dos Estados Unidos. Havia aceitado receber os deportados. Fez um post celebrando a chegada de seus compatriotas com “bandeiras e flores” e depois deletou. Mudou de ideia para criar um fato político. Trump considerou sua mudança de atitude como ato de hostilidade e desonestidade. Retaliou. Petro recuou e acatou integralmente os termos dos EUA.

O Brasil seguiu pelo mesmo caminho. A polêmica por aqui se estabeleceu sobre o transporte dos imigrantes ilegais devolvidos em voo fretado pelos EUA. Há reclamação de que o grupo voltou algemado. O procedimento utilizado tem sido padrão desde 1980, usado também para transporte de presos nacionais dentro do seu próprio território. O padrão é adotado por dois motivos. Protege aquele que está sob custódia do Estado, que pode nesse tipo de situação se machucar ou até cometer algum ato extremo contra si próprio. O outro é a proteção dos agentes de segurança. Além disso, os voos são parte de um acordo firmado em 2018, durante o governo Temer.

Percebemos, na verdade, que o imbróglio possui fundo político, uma vez que estamos diante do mesmo rito e mecanismos usados há pelo menos 45 anos. Foram 22 ministros de Lula que mostraram indignação sobre brasileiros deportados no primeiro voo durante o governo Trump. Durante o terceiro mandato de Lula já foram 32 voos trazendo deportados da mesma forma. O governo jamais havia tecido qualquer crítica.

Todos sabem que o Brasil possui um governo antiamericano, algo inegável. Por questões políticas e ideológicas, Lula nunca escondeu sua visão sobre os Estados Unidos. Seu círculo mais íntimo de assessores, especialmente na área internacional, ainda carrega uma visão ultrapassada e obsoleta de mundo, responsáveis por equívocos como este.

Assim como Petro, o governo brasileiro tem usado o oportunismo político como arma para alavancar sua popularidade. Atualmente, Lula possui taxa de reprovação que supera a aprovação. Assim como Petro, enxerga sua popularidade derreter, colocando em xeque as chances de reeleição. Ambos procuram usar este fato como combustível político para resgatar o apoio popular perdido em meio aos erros de seus governos.

O número de ilegais deportados vem caindo sistematicamente desde o governo Clinton – aquele que mais deportou (com folga) nas últimas décadas e o número de deportados que havia caído com Obama e Trump, voltou a subir com Biden. Estes são fatos. Os EUA seguirão sendo um país de imigrantes, mas sobretudo de leis. Aqueles que migram de acordo com as regras, serão muito bem recebidos, porém, aqueles que infringirem as normas, estarão em risco de serem devolvidos aos seus países. Enquanto isso, não faltarão líderes populistas para lucrar nas costas dos deportados, algo que no dicionário de Brasília se chama de oportunismo político.

Conflitos Geopolíticos na “Garganta do Pacífico”: o Mar do Sul da China

O Mar da China Meridional, ou Mar do Sul da China (MSC), figura entre as maiores prioridades — e, também, alguns dos mais sérios desafios — do ambicioso projeto de Xi Jinping no sentido de tornar a China ‘grande de novo’.

Com 3,5 milhões de quilômetros quadrados (correspondendo a 22% da massa territorial chinesa) e mais de 250 ilhas, o MSC banha 10 países: a República Popular da China (RPC); Taiwan; Filipinas; Brunei; Malásia; Camboja; Indonésia, Singapura, Tailândia; e Vietnam. Por ali circulam de 20% a 33% do comércio mundial marítimo. Seu subsolo é rico em petróleo e gás, e suas águas abrigam mais de 3.300 espécies de peixes. O MSC é uma das maiores zonas produtoras de pescado do mundo, fonte importante de segurança alimentar para as nações litorâneas. Seus muitos pontos de estrangulamento, como os estreitos de Luzon e de Taiwan, aliados ao volume de interesses econômicos e militares em jogo, valeram-lhe o apelido de “Garganta do Pacífico”. Em caso de conflito militar bloqueando o Estreito de Malaca, entre a Indonésia e a Malásia, todo o seu tráfego marítimo teria que ser redirecionado para o sul da Austrália, com enormes custos adicionais para o comércio mundial e incalculáveis prejuízos para Taiwan, Singapura e outros países da região.

Por sua importância, os Estados Unidos advogam plena liberdade de navegação para as frotas mercantes e de guerra que singram o MSC, o que se choca frontalmente com as pretensões chinesas. As informações a seguir constam da excelente e atualíssima obra do jornalista Chun Han Wong, Party of One: the Rise of Xi Jinping and China’s Superpower Future (New York: Simon & Schuster, 2023). Nascido em Singapura e fluente tanto em inglês quanto em mandarim, ele trabalhou na sucursal chinesa do Wall Street Journal entre 2014 e 2019, quando teve a renovação de suas credenciais profissionais negada pelas autoridades de Pequim, que se indignaram com suas reportagens sobre as fortunas amealhadas pela oligarquia comunista, aí incluída a família de Xi.

Ainda na década de 1940, quando o Kuomintang dominava o continente, o governo do generalíssimo Chiang Kai-shek divulgou uma mapa que proclamava a soberania chinesa sobre a maior parte do MSC. Depois da vitória da revolução liderada por Mao Tsé-tung (1949), o regime comunista consolidou aquele ‘traçado’, estendendo suas pretensões a limites que até hoje alimentam atritos com seus vizinhos. Exemplos: com o Japão, a leste, por causa das ilhas Senkaku (ou, em chinês, Diaoyu); e com Filipinas, Malásia, Brunei e Taiwan, ao sul, pela ocupação das águas e das ilhas Spratly e Paracel.

Citado por Chun Han Wong, o pesquisador Gregory Poling, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (Washington, D. C.), aponta o interesse de Pequim em cobrir suas reivindicações sob um véu de ambiguidades, a fim de confundir as conversações com representantes dos países vizinhos (somada aos chineses, a população dessas nações do litoral do MSC ultrapassa a marca dos 600 milhões de habitantes). Será que o mapa dos chineses reflete suas pretensões soberanas sobre acidentes terrestres, como as ilhas Spratly e Paracel? Ou será que ele considera aquelas águas como parte do mar territorial chinês? Ou será, ainda, que ele envolve a reivindicação de direitos de exploração econômica escorados em antecedentes históricos?…

Enquanto, os diplomatas estrangeiros se entregam ao desvendamento desses enigmas, a China constrói ‘ilhas’ sobre os arrecifes, de modo a assegurar a eficácia de suas reclamações com quartéis, pistas de pouso, sistemas de defesa antiaérea e antinaval, entre outros ‘testemunhos’ do seu poderio militar.

Os elefantes, o capim e a ‘pergunta de um milhão de dólares’:

O governo americano e os governos daqueles países litorâneos do MSC encaram tudo isso como uma violação do arcabouço jurídico liberal que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, sustentou o sucesso econômico da região. Eles alegam que a RPC querem substituir esse arcabouço por um descarado recurso à ‘lei do mais forte’….

Assim, em 2016, o governo chinês declarou “nulo” um veredito da Corte Internacional de Justiça, de Haia, principal tribunal das Nações Unidas, o qual determinava o cancelamento dos planos de construção de ilhas artificiais, por solicitação dos governos de cinco países do Sudeste Asiático. Essa atitude de desafio se prevaleceu do poder de barganha decorrente do comércio da China com aquelas nações e também da tática de Pequim, que consiste em jogá-las umas contra as outras. Isso, até hoje, tem impedido uma resposta unificada da Associação das Nações do Sudeste Asiático-Asean aos arreganhos da RPC. O bloco, composto de 10 membros, toma suas decisões por consenso, e pelo
menos dois deles (Camboja e Laos), dada a sua dependência em face dos investimentos e empréstimos negociados no marco da Nova Rota da Seda, ali atuam como dóceis ‘clientes’ da China.

Afinal, como adverte a sabedoria popular do Extremo Oriente, quando os elefantes brigam, o capim sofre, ao que, em de seus pronunciamentos, o pai-fundador de Singapura, Lee Kuan Yew (1923-2015, primeiro-ministro entre 1965 e 1990), acrescentou: “Quando eles flertam, o capim também sofre. E, quando fazem amor, aí então é um desastre!…”

De qualquer maneira, o repto chinês à estabilidade geopolítica e econômica na região do Indo-Pacífico, cada vez mais, vem suscitando reações de potências regionais que compartilham as preocupações de segurança dos Estados Unidos, a exemplo do pacto militar trilateral entre americanos, britânicos e australianos (AUKUS) e o Diálogo Quadrilateral (Quad), em cujo marco Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália têm recebido apoio crescente dos governos da Coreia do Sul, do Canadá, do Vietnam e da Nova Zelândia.

Neste ponto, a ‘pergunta de um milhão de dólares’ que o mundo se faz é: qual o futuro desses arranjos estratégicos destinados a conter o expansionismo chinês durante o segundo mandato presidencial de Donald Trump?

As Garras da América

A águia foi escolhida como o símbolo oficial dos Estados Unidos por representar valores como liberdade, coragem, resiliência e determinação. Incluída no selo do país em 1776, tornou-se icônica, simbolizando orgulho e força. Suas garras representam sua arma mais poderosa, usadas tanto como instrumento de ataque, como de defesa.

“A Era de ouro da América começa agora”, pontuou Donald Trump, na abertura de seu discurso durante o triunfal retorno a Washington depois de quatro anos. Estamos diante de um Presidente que buscará exercer seu poder sem rodeios ou necessidade de aprovação. Esta sempre foi sua postura como empresário e como mandatário em seu primeiro mandato. Neste que, constitucionalmente deve ser o último, não hesitará em impor sua doutrina e atitude, que consiste na reforma dos mecanismos internos do país e na mudança de postura na frente internacional.

Veremos os Estados Unidos usarem efetivamente seu peso e poder ao redor do mundo. Ao contrário do Presidente Theodore Roosevelt, que assumiu publicamente a postura estratégica de “falar com suavidade e ter à mão um grande porrete”, a política do big stick, Donald Trump deve falar com assertividade e deixar claro que carrega centenas de porretes à sua disposição, algo que faz enorme sentido diante dos contornos políticos internacionais conhecidos de nosso tempo.

As primeiras incursões de sua política, sinalizadas antes da posse, já produziram uma série de resultados efetivos. Diante do fato de que a China tem usado a costa da Groenlândia para facilitar seu transporte de cargas, Trump lançou a ideia de compra do território. Resultado efetivo: o governo de Copenhague propôs o aumento de bases americanas na Groenlândia como forma de cessar as iniciativas de compra do território. Ponto para ele.

A negociação do cessar-fogo e retorno dos reféns para Israel foi negociado por Steve Witkoff, enviado de Trump para o Oriente Médio. Trump mete medo no Hamas e Netanyahu sabe que precisa do seu apoio. O resultado foi o acordo. Mais um ponto para o novo Presidente americano. Na Europa, em discurso a militares, Macron pediu ao continente para “acordar” e gastar mais com defesa. A fala veio depois de Trump pedir a países da Otan que elevassem os gastos militares para 5% do PIB. Os americanos hoje pagam grande parte deste custo. A Europa deve ceder. Mais um ponto para Trump.

Fato é que a simples sinalização da mudança de postura dos americanos já começou a movimentar as peças do tabuleiro no cenário internacional. A reação dos Estados Unidos chega em um momento crucial, especialmente diante da postura imperial de uma Rússia disposta a invadir seus vizinhos e uma China que se sentia livre para exercer seu poder e influência em diferentes pontos do planeta, seja pela compra de apoio e subserviência por meio da Nova Rota da Seda, seja pela imposição militar.

A reintrodução de uma América forte neste jogo, pautado atualmente pelos fenômenos do imperialismo e da desglobalização, é essencial para reequilibrar as forças no xadrez internacional. As garras de Washington nunca foram tão necessárias em um cenário que envolve atores dispostos a patrocinar a instabilidade internacional. A conferir.   

Trump e a doutrina da ferocidade com propósito

A posse de Donald Trump na tarde desta segunda-feira (20) marca uma mudança completa no desenho político dos Estados Unidos. Ele retorna ao poder anabolizado por uma contundente vitória eleitoral num contexto que, 4 anos atrás, era tido como impossível. Havia, afinal, perdido a reeleição para Joe Biden. Mas, ao contrário do que poderia se supor (e do que desejavam seus inimigos), não aceitou a resignação, e desde o primeiro dia trabalhou na construção de uma volta por cima. Mas talvez nem ele imaginasse que seu retorno seria tão triunfal. O maior da história do país.

O novo presidente americano não venceu apenas no voto popular e no Colégio Eleitoral. Fez maioria da Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Seu partido também elegeu a maior parte dos governadores e dos representantes dos legislativos estaduais. É o que na América se chama de landslide. Os republicanos não tinham um desempenho desses desde Ronald Reagan e sua primavera conservadora, lá nos anos de 1980.

Antes mesmo de assumir, Trump já trazia a reboque duas vitórias políticas, ambas de impacto global. A primeira delas, a mudança na política de moderação de conteúdos da Meta, big tech de propriedade do bilionário Mark Zuckerberg. “Assinarei um decreto para imediatamente por fim à censura governamental e trazer de volta a liberdade de expressão para a América”, disse depois de empossado e no mesmo recinto em que estavam Zuckerberg e outros magnatas das novas tecnologias.

Enquanto tomava posse no Capitólio, outro feito prévio de Trump se concretizava no Oriente Médio, com o cessar-fogo costurado entre o grupo terrorista Hamas e o Estado de Israel viabilizava a entrega dos reféns retidos em Gaza desde meados de 2023. A costura geopolítica, envolvendo autoridades árabes e o governo de Benjamin Netanyahu, só se concretizou pela ação firme do novo governo americano. A negociação, é verdade, já vinha desde de maio, mas não chegava a uma conclusão exatamente porque Joe Biden não era respeitado e nem temido. Disposto a obter um resultado antes de começar o mandato, Trump despachou para a região o empresário Steve Witkoff. A aposta foi certeira.

Trump não é um leitor voraz de ciência política e de filosofia. Não é capaz, por exemplo, de fazer uma análise da história de seu próprio partido ou de quais pensadores influenciaram na sua formação. É um empresário que negocia com a faca nos dentes e pensa permanentemente na obtenção de resultados. É a doutrina da ferocidade com propósito. Essa é a linha de ação será devolvida para a Casa Branca. É tolo, portanto, especular em tom de dúvidas sobre como Trump governará os EUA. Ele já ocupou o posto.

Já no primeiro dia de governo, o novo presidente assinou dezenas de decretos reposicionando os EUA no cenário global. Também distribuiu recados e deixou claro que usará todo o poderio militar e econômico norte-americano para alcançar seus objetivos internos e geopolíticos. A diferença é que agora, muito diferente de 2016, quando chegou ao poder pela primeira vez, Trump sabe onde está e como fazer.

Foto: Divulgação/Flickr White House

O Negociador

Apesar de Donald Trump ainda não ter assumido formalmente a presidência dos EUA, seu governo claramente já começou. Desde a indicação dos novos secretários, passando pelos encontros com líderes de outras nações e finalmente enviando recados pelas redes sociais, vemos que seu protagonismo político já está presente no cotidiano dos americanos e se faltam as formalidades da posse, de maneira informal, já assumiu o comando do país.

O Presidente que chegará à Casa Branca é muito diferente daquele de 2017. Ele agora possui controle pleno do Partido Republicano, maioria na Câmara, Senado e também na Suprema Corte. Ajudou os candidatos de seu partido a saírem vencedores nas disputas pelos governos da maioria dos estados em 2024 e lidera um movimento que transcende as fronteiras da política, fornecendo voz e vez a uma legião de americanos que se sentiam esquecidos. Trump tornou-se símbolo de um contramovimento que encontra ressonância em diversas partes do mundo.

Uma das razões que levaram o empresário a vencer as duas disputas presidenciais, tanto de 2016, quanto em 2024, foi o fato de que ele jamais participou ativamente da política partidária. Jamais ocupou qualquer cargo público ou envolveu-se em disputas eleitorais. Disputou apenas a Presidência. Sua trajetória é marcada pela vida empresarial e postura midiática, algo que sempre foi um traço de seu comportamento no mundo dos negócios. Este é Donald Trump. Um operador agressivo que gosta de assumir riscos, empresário midiático que usa sua exposição e figura pública como elemento central na arte da negociação.

Esta é uma leitura que falta aos analistas e jornalistas políticos de um modo geral, algo que acaba por limitar o entendimento de seus gestos ou o encaminhamento de suas estratégias. Trump jamais será moldado pelo Salão Oval, bastidores do Capitólio ou salões diplomáticos, pelo contrário, moldará a Casa Branca a sua imagem e semelhança, impondo seu tom e dinâmica ao cargo. Isto significa que temos no comando dos EUA um negociador agressivo do mercado imobiliário de Nova York, nascido no bairro do Queens, filho de um empresário do ramo da construção civil, originário do Bronx, longe dos quatrocentões que formaram tradicionalmente a elite da cidade e a política do país.

Exatamente por estas características, Trump soube dar voz a uma legião de americanos, criando algo muito além de uma vitória eleitoral, mas o molde de um movimento que pode mudar profundamente os alicerces da política americana, segundo ele, longe dos vícios do sistema. O trumpismo já delineou os contornos do novo Partido Republicano e busca levar sua mensagem muito além destas fronteiras.

Ao falar em retomar o Canal do Panamá, renomear o Golfo do México, tornar o Canadá o 51º estado americano ou comprar a Groenlândia, Trump está levando seu estilo de negociador empresarial agressivo do mercado imobiliário para a arena internacional, algo pedido pelo eleitor nas últimas eleições. Como resultado de sua pressão inicial pré-posse, o governo dinamarquês já propôs o aumento da presença militar dos EUA na Groenlândia a fim de cessar as falas do republicano sobre tomar a região. Como vemos, melhor do que ser um bom jogador, talvez seja possuir a habilidade de mudar as regras do jogo, um traço característico no novo Presidente dos EUA.

Foto: SAUL LOEB, AFP Via Getty Images.

Trump quer seu rosto no Monte Rushmore

A escolha de Donald Trump como personalidade do ano pela revista Time não poderia ser mais óbvia. Qualquer outro nome em seu lugar seria trocar os fatos por uma decisão editorial enviesada pela ideologia. A Time, ressalte-se, nunca fez boa avaliação do presidente eleito dos Estados Unidos. Esnoba-lo, entretanto, ainda mais diante de uma vitória tão contundente, resultaria em perda de reputação. Em comunicado, a revista justificou a definição do prêmio para Trump “por liberar um retorno de proporções históricas, por conduzir um realinhamento político único em uma geração, por remodelar a presidência americana e alterar o papel dos Estados Unidos no mundo”.

Imaginava-se que depois da derrota eleitoral de 2020 e as investigações movidas contra ele, Trump estaria morto na política americana. Mas o magnata manteve o controle das bases republicanas avançando para isolar os integrantes tradicionais que lhe fizeram frente em 2016 e durante seus quatro anos de mandato. O movimento Make America Great Again (MAGA) cresceu de tal forma que as “prévias” do partido foram figurativas. Ele as venceu sem mover uma palha, e escolheu como vice alguém completamente leal e comprometido com sua visão de mundo.

O caminho para o retorno triunfal de Trump à Casa Branca passa por uma série de fatores, sendo o mais importante o desastrado governo Joe Biden. O eleitorado médio foi convidado a fazer uma escolha plebiscitária entre os dois modelos de governo, uma vez que a eleição de 2024 seria uma reedição da de 2020, novamente com Trump e Biden na disputa. Mas a busca de reeleição do atual ocupante da Casa Branca se revelou um erro político medonho dos Democratas, já que ele dava sinais evidentes de declínio cognitivo, o que se acentuou no trágico debate entre os dois.

A incapacidade de Biden resultou na troca burocrática pela vice Kamala Harris, uma figura insossa e rejeitada. Mesmo com toda a mobilização da máquina Democrata, não houve meios de lhe maquiar algum carisma. À medida que sua exposição aumentou, se evidenciaram suas fraquezas. Trump surfou em cima da inabilidade de Harris, colando-a nos erros da administração rejeitada de Biden. Nesse meio tempo, Trump sobreviveu a não uma, mas duas tentativas de assassinato.

Além do contexto político e econômico, Trump explorou até a vitória sobre a morte, materializada na poderosa foto em que surge com o punho cerrado de sangue, cercado de agentes do serviço secreto e sob a sombra da bandeira americana. Uma imagem destinada a entrar para os livros de história.

Trump é tudo, menos imodesto. Quer, como Churchill, “caminhar com o destino”. Se pudesse, ele mesmo mandaria esculpir sua face no Monte Rushmore ao lado de Abraham Lincoln, George Washington, Thomas Jefferson e Theodore Roosevelt. Para tanto, terá de ser bem sucedido nos múltiplos objetivos que traçou. Dentre suas ambições está a de recolocar a economia americana nos trilhos e acabar com a guerra da Ucrânia usando sua capacidade nata de realizar acordos. Sendo bem-sucedido, melhor para seu ego, e também o mundo.

O México tem uma janela estreita para redefinir o relacionamento com os EUA

Nenhum parceiro dos EUA pode perder tanto com a abordagem de soma zero de Donald Trump quanto o México, e nenhum está tão despreparado para navegar em um governo Trump. No cargo apenas desde 2 de outubro, a presidente Claudia Sheinbaum herdou um país debilitado com o crime organizado em ascensão e sua perspectiva de crédito rebaixada nas últimas semanas.

Agora, Sheinbaum pode estar subestimando a profundidade dos desafios para o México que um governo Trump representa, dizendo ao seu país no dia seguinte à eleição dos EUA que “não há razão para se preocupar” e tomando ações que só aprofundarão as preocupações dos EUA sobre o México.

Sheinbaum pode acreditar que pode replicar a gestão bem-sucedida de seu antecessor na primeira presidência de Trump, mas sua resposta pública à promessa de Trump de impor uma tarifa de 25% ao México em seu primeiro dia no cargo, na qual ela leu uma carta a Trump alertando sobre as consequências, sugere que ela não tem os instintos políticos do presidente Andrés Manuel López Obrador, que frequentemente optou por não responder publicamente a Trump. López Obrador também acumulou capital político suficiente para poder satisfazer as demandas de Trump sem ser enfraquecido internamente. Embora Sheinbaum tenha vencido de forma esmagadora, ela não comanda a lealdade de seu partido Morena e deve sua posição em grande parte a López Obrador.

Sua abordagem à diplomacia é motivada pela ideologia, como visto em sua decisão de excluir o rei Felipe VI da Espanha de sua posse. E sua equipe de política externa tem experiência limitada com os Estados Unidos e não fez incursões com a nova administração.

Além disso, a natureza do desafio para o México é mais aguda do que há oito anos. Durante seu primeiro governo, Trump ameaçou impor tarifas e fechar passagens de fronteira, mas sua principal prioridade com o México era a construção de um muro na fronteira, o que foi visto como uma afronta pelo governo mexicano, mas não ameaçou a economia do México. Desta vez, Trump está mais determinado a impor tarifas, deportar milhões de trabalhadores indocumentados e atacar cartéis, e suas nomeações para o Gabinete buscarão esses objetivos de forma mais decisiva do que seus indicados para o primeiro mandato.

A inexperiência de Sheinbaum é perigosa para o México em um momento em que ele precisa de uma liderança experiente. No entanto, ela tem uma oportunidade estreita de demonstrar que entende a urgência da situação. Ao tomar a iniciativa e trabalhar para abordar as preocupações dos EUA em algumas áreas críticas, ela poderia potencialmente evitar algumas das medidas mais punitivas.

Uma área em que o governo de Sheinbaum está tomando medidas na direção certa, mas precisa fazer mais, é o investimento chinês. As preocupações dos EUA sobre a China usar o México para obter acesso livre de tarifas ao mercado dos EUA, especialmente na fabricação de automóveis, ameaçam inviabilizar a renovação do acordo comercial USMCA em 2026. Grande parte do investimento da China é ocultado pelo uso de entidades offshore em terceiros países e, segundo uma estimativa, o investimento chinês é, na verdade, seis vezes maior do que os números oficiais.

Sheinbaum pediu a redução da dependência de importações chinesas e seu governo entrou em contato com fabricantes americanos e internacionais no México pedindo ajuda para substituir produtos e peças importados da China por peças fabricadas localmente. Para conseguir isso, ela precisará ir mais longe e buscar políticas que apoiem a fabricação local. Ela também pode aumentar a confiança trabalhando para fornecer maior clareza em torno dos dados do governo sobre o investimento chinês.

A nova presidente do México também pode se distanciar de seu antecessor em segurança. A estrutura de segurança que ela anunciou após assumir o cargo contém alguns elementos positivos, mas ela deve ir mais longe. A ênfase de López Obrador em abordar fatores socioeconômicos em vez de enfrentar criminosos e sua suspensão da maior parte da cooperação de segurança com os Estados Unidos levaram à expansão do crime organizado no México, onde ele está cada vez mais assumindo economias legais, como a agricultura.

Sheinbaum esperava melhorar a situação da segurança durante seus primeiros meses no cargo, mas, em vez disso, a violência aumentou à medida que as facções lutam pelo controle do cartel de Sinaloa. Reconstruir a confiança entre os dois países em questões de segurança levará tempo, mas investir nas capacidades investigativas degradadas da polícia mexicana e renovar a cooperação de segurança com os Estados Unidos seria um sinal bem-vindo.

Finalmente, o apoio de Sheinbaum aos regimes autoritários na região certamente antagonizará a nova administração. Embora vá contra seus compromissos ideológicos, trabalhar para se alinhar mais de perto com as políticas dos EUA em relação a Cuba, Nicarágua e Venezuela é uma das medidas menos custosas que ela poderia tomar para melhorar o relacionamento EUA-México e que renderia dividendos imediatos.

Tomar medidas práticas nesse sentido envolveria algum risco político para Sheinbaum internamente, mas criaria boa vontade com os colegas dos EUA e ajudaria a mudar a narrativa sobre o México. Uma abordagem proativa poderia ter um efeito moderador na dinâmica do relacionamento, demonstrando que os Estados Unidos têm um parceiro no novo governo do México e não precisam depender de medidas unilaterais para atingir os objetivos da nova administração.

Imagem: Jim Watson / AFP - Getty Images.

Negócio da China

A eleição de Donald Trump levou o governo de Pequim a adotar um amplo pacote de estímulo econômico de US$ 1,4 trilhão com o objetivo de combater possíveis consequências na relação futura com os americanos. As ameaças de Trump de tarifas de até 60% sobre produtos chineses ocorrem em um momento delicado para o país oriental, que já está lidando com uma grave crise imobiliária, gastos fracos do consumidor e uma crescente dependência de exportações.

Nem tudo são flores em Pequim. Em resposta à ameaça iminente de tarifas elevadas, os formuladores de políticas chineses estabeleceram um pacote de resgate substancial. O Congresso Nacional do Povo aprovou o plano como uma contramedida para estabilizar a economia, com foco no refinanciamento da dívida e no reforço de projetos de infraestrutura para mitigar o impacto das políticas comerciais de Trump.

Apesar do estímulo, o plano alcança apenas uma fração da dívida oculta chinesa, estimada pelo Fundo Monetário Internacional em mais de US$ 8 trilhões. O retorno de Trump já impactou os mercados financeiros: as ações chinesas caíram, enquanto as ações dos EUA subiram, refletindo preocupações dos investidores sobre a escalada das tensões comerciais. A ação de Pequim com vistas a implementar o estímulo expõe sua preparação para uma rivalidade econômica prolongada.

Enquanto o presidente eleito Donald Trump se prepara para reimpor tarifas sobre a China, o líder chinês Xi Jinping busca fortalecer laços com países do porte do Brasil. A ideia de Pequim é fomentar um relacionamento construído em interesses econômicos compartilhados. Logo após a cúpula do G20 foram anunciados 37 acordos abrangendo agricultura, comércio, tecnologia e energia, que desenham um volumoso modelo de interdependência econômica.

O Brasil é o maior fornecedor de soja, minério de ferro e carne bovina da China, enquanto a China fornece ao Brasil semicondutores, fertilizantes e peças automotivas. Ficou claro que, mediante estes laços, a China busca mitigar os efeitos das tarifas dos EUA, usando o Brasil como instrumento de sua disputa comercial com os americanos.

De qualquer forma, apesar das relações profundas que desenha com Pequim, o Brasil ainda se mostra cauteloso sobre o alinhamento total com a China. Embora Xi tenha como objetivo que o Brasil se junte integralmente à Nova Rota da Seda, Lula esclareceu que seu governo não planeja integração total, mas “estabelecer sinergias entre a Iniciativa da Rota da Seda e as estratégias de desenvolvimento do Brasil”. Este movimento evidencia a estratégia global da China de aprofundar parcerias e redes comerciais para aliviar as suas próprias pressões econômicas internas.

É neste ponto que o Brasil precisa ser cauteloso, evitando a sinodependência comercial, a reedição de um novo pacto colonial e especialmente servir de contrapeso na economia chinesa em sua disputa com os americanos. Como mostram os números, a China carrega dívidas e uma situação que inspira cuidado. Atrelar nosso destino aos rumos traçados por Pequim pode se tornar um caminho perigoso, afinal, negócios da China muitas vezes escondem armadilhas difíceis de identificar.