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Nova Ordem Global

Para além das leituras tradicionais, os desdobramentos da visita de Volodymyr Zelensky a Washington sugerem algo mais profundo. Podemos estar diante de uma mudança de fundo na dinâmica da política internacional que tem potencial para mover os pilares da estabilidade global construída no pós-guerra. Este novo equilíbrio representa o retorno ao mundo de competição e equilíbrio entre grandes potências que prevaleceu antes da Segunda Guerra Mundial. É menos um mundo novo e corajoso do que um retorno a uma velha e perigosa dinâmica de poder.

A realidade imposta à Ucrânia representa a quebra de um paradigma importante que pode selar o futuro de diversas nações que depositaram no exterior a responsabilidade por sua defesa. Desde os acordos de Budapeste, que garantiram as fronteiras ucranianas em troca de sua desnuclearização, passando pela garantia da defesa da Europa na forma de um consórcio internacional, a OTAN, e desaguando na dinâmica de segurança de nações como o Japão, Taiwan e Coreia do Sul, jamais a estabilidade global atravessou período de tamanha turbulência e incerteza.

Nesta nova realidade estamos diante da possível consolidação de três pilares, liderados por Estados Unidos nas Américas, Rússia como pivot euroasiático e a China com influência decisiva no Pacífico, caracterizado por um novo balanço de poder. Os custos deste novo concerto seriam altíssimos nas mais diversas frentes, reordenando o equilíbrio global, entretanto, na visão de seus atuais líderes, alinharia seus interesses econômicos, geográficos e políticos. O mundo que lide com isso.

Este novo desenho de poder parece tomar forma na medida que diversos governos estão sendo impulsionados por uma onda populista, possivelmente idealizada, nascida, financiada e construída de forma artificial nas salas de um edifício neobarroco com fachada de tijolos amarelos nos arredores de Moscou, chamado de Lubyanka. Uma estratégia que encontrou simpatizantes dentro de partidos europeus e em líderes políticos nas Américas. Um modelo exportado pela Rússia, mas que sempre foi presente nas autocracias euroasiáticas e no autoritarismo chinês.

A alternativa ao novo desenho de mundo que pode emergir deste reordenamento de forças reside atualmente, única e exclusivamente, na capacidade de resiliência europeia, especialmente no que tange a defesa da Ucrânia, de maneira firme e decisiva. A Europa está diante de seu mais importante desafio desde a Segunda Guerra, aquele que definirá o seu futuro com desdobramentos profundos na geopolítica internacional, inclusive mediante reflexos na soberania dos países asiáticos, na existência de Taiwan como uma nação soberana diante das garras de Pequim, mas também na independência do Japão e na autonomia da Coréia do Sul. Os pilares da estabilidade internacional moveram-se profundamente e a ascensão de um inédito concerto entre as grandes nações tornou-se uma possibilidade real. Se tal movimento se concretizar, a discussão no Salão Oval passará de um simples incômodo diplomático a um marco histórico que pode ter sinalizado o surgimento de uma nova ordem global.

Voto crítico no órgão regional do Hemisfério Ocidental pode abrir a porta para a influência da China

Líderes no Hemisfério Ocidental enfrentam escolhas difíceis nos próximos meses enquanto se ajustam a uma nova administração dos EUA que está jogando por suas próprias regras em suas relações com a região. No entanto, uma escolha futura deve ser simples: a eleição de um novo secretário-geral para a Organização dos Estados Americanos em 10 de março.

O resultado da votação influenciará se a América Latina será capaz de conter regimes autoritários, combater o crime organizado e conter a crescente presença da China no hemisfério. Mais amplamente, moldará a capacidade da região de navegar no que está se configurando para ser um período tumultuado nas relações EUA-América Latina.

Após 10 anos sob a liderança do diplomata uruguaio Luis Almagro, a disputa entre o Ministro das Relações Exteriores do Paraguai Rubén Ramírez Lezcano e o diplomata surinamês Albert Ramdin representa mais do que uma transição de liderança de rotina. É um referendo sobre se a OEA manterá seu papel tradicional como defensora da democracia ou mudará para acomodar influências autoritárias na região.

Ramírez enfatiza o papel crítico da OEA no apoio à democracia e direitos humanos e pede esforços mais concentrados contra o crime organizado e lavagem de dinheiro. O Paraguai é o último aliado diplomático da América do Sul de Taiwan e um dos aliados mais próximos de Israel na América Latina, e seu apoio à oposição democrática da Venezuela levou o regime de Maduro a romper relações diplomáticas com o Paraguai em janeiro.

Em contraste, Ramdin defende uma abordagem mais permissiva em relação ao regime autoritário da Venezuela, priorizando o diálogo em vez da responsabilidade democrática. Ramdin conhece bem a organização, tendo atuado como secretário-geral assistente de 2005 a 2015, e sugeriu que o potencial do Suriname como um grande produtor de petróleo o posicionaria para vencer a eleição. Embora o Suriname tenha relações amigáveis ​​com os Estados Unidos, ele é mais próximo da China, que apoia a candidatura de Ramdin. Ramdin falou calorosamente sobre o papel da China no desenvolvimento do Suriname, inclusive por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota, à qual o Suriname aderiu em 2018.

Para alguns na região que já veem a OEA como muito amigável aos EUA, a tentação será apoiar o candidato que for menos atraente para Washington. Isso seria um erro. Os países da região estão experimentando uma série de desafios interconectados – insegurança, corrupção e erosão democrática entre eles – que exigem maior resolução coletiva e coordenação. A região precisa desesperadamente superar compromissos ideológicos e encontrar maneiras de se unir, ou corre o risco de se tornar um alvo mais fácil para atores malignos e perder relevância no cenário mundial.

O resultado da votação também importa para os Estados Unidos. A OEA continua a plataforma multilateral mais eficaz para o envolvimento dos EUA com o hemisfério. Ao contrário de outros fóruns, como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, ou CELAC, onde os EUA não têm um assento à mesa, a OEA geralmente se alinhou com os objetivos dos EUA e promoveu valores democráticos nas Américas.

A estratégia atual do governo Trump de pressão bilateral para enfraquecer o envolvimento da região com a China pode render concessões em alguns casos, mas não é suficiente para a tarefa maior de reconstruir a influência dos EUA na região. A América precisa de uma agenda mais ampla e positiva, e uma OEA forte sob liderança com ideias semelhantes poderia fornecer a plataforma para isso, especialmente em áreas como segurança, estado de direito e desenvolvimento.

Alguns críticos podem argumentar que as limitações da OEA a tornam indigna de atenção séria, mas tal visão é míope. É verdade que a OEA exibe muitas das fraquezas comuns a órgãos multilaterais, com uma ênfase indevida no consenso e capacidade limitada de fazer cumprir decisões. Ela também é cronicamente subfinanciada.

No entanto, apesar de suas imperfeições, a OEA continua sendo um importante baluarte para a democracia na região. Por exemplo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA documentou vigorosamente os esforços sistemáticos da Venezuela para suprimir a participação da oposição na política, impedir eleições livres e incutir medo entre os venezuelanos. E em agosto de 2024, os estados-membros da OEA votaram para instar a Venezuela a divulgar as contagens eleitorais e fornecer verificação imparcial dos resultados.

A escolha que os estados-membros da OEA enfrentam não é apenas entre dois candidatos — é entre manter o compromisso da organização com a democracia e permitir que a OEA e o hemisfério se dividam ainda mais. Para governos que buscam virar a página da atual instabilidade e deriva democrática na região, apoiar Ramírez é um imperativo.

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Trump traiu a Ucrânia de modo vil

Temos testemunhado ultimamente, em diferentes contextos, a deterioração de valores e princípios que outrora fundamentaram a ordem mundial liberal.

É lamentável que os Estados Unidos, nação mais representativa da sociedade aberta, estejam agora, sob o governo de Trump, contribuindo para o fortalecimento de um regime expansionista antiliberal e antiocidental.

A postura do atual presidente americano nas negociações para o fim da guerra na Ucrânia expressa desprezo pela soberania e descaso pela segurança futura desse país que tem lutado bravamente pela sua própria existência.

Trump deixou claro que, na sua visão, os dólares investidos na defesa do povo ucraniano seriam apenas um desperdício colossal. 

Como homem de negócios que é, vê apenas cifras que se vão, restando míope quanto às responsabilidades dos Estados Unidos em manter a segurança e a ordem internacional.

Ao decidir negociar o fim da guerra com os agressores russos, excluindo a Ucrânia de um processo que definirá o seu próprio destino, Trump mostrou de que lado está: o lado do invasor, o lado da iniquidade, o lado da injustiça.

Donald Trump não se importa com uma paz justa, ele quer apenas uma paz de conveniência. Para obter essa suposta “paz”, a Ucrânia deve ceder seus territórios invadidos, não deve insistir em fazer parte da Otan e deve retirar Zelensky do poder, ou seja, deve capitular, render-se, deixar-se subjugar pela grande mãe Rússia, cujo furor expansionista não parará por aí.

Não é à toa que analogias históricas vêm à mente. No acordo de Munique, assinado em setembro de 1938, a Alemanha foi autorizada a anexar os sudetos, região localizada na fronteira norte da antiga Tchecoslováquia.

Trump tem sido comparado nas redes sociais ao primeiro-ministro do Reino Unido, Neville Chamberlain, que se vangloriou desse acordo, retornando de Munique com a famosa declaração “peace for our time” (“paz para o nosso tempo”).

A analogia é válida e plena de lições: não há política de apaziguamento que dê certo quando se está lidando com personalidades bélicas e psicopatas como Adolf Hitler ou Vladimir Putin.

Li algures, mas já não me recordo onde, o seguinte comentário: não é a Europa que está defendendo a Ucrânia, é a Ucrânia que está defendendo a Europa. É isso mesmo. A brava resistência Ucraniana tem sido um escudo para os delírios expansionistas de Putin.

Mas Trump não dá a mínima para a segurança da Europa, nem se incomoda com delírios expansionistas alheios, desde que não interfira nos seus, pois também os tem, como se pôde constatar por suas bizarras ameaças em relação a Groenlândia e ao canal do Panamá.

O fato é que, em termos de visão de mundo, Trump é mais semelhante a Putin do que aos líderes europeus que, até então, os Estados Unidos tinham por aliados.

A visão política e (i)moral de ambos é que os “grandes players” devem dividir o poder e dominar os os menores, os quais devem se recolher à sua insignificância sem se arrogarem o direito de sequer participarem das discussões que lhes dizem respeito.

Em essência, a abordagem de Trump não só legitima os métodos autoritários de Putin, como também corrobora um sistema global baseado na subordinação dos mais vulneráveis.

A ordem espontânea, a sociedade aberta, a ordem liberal é uma ordem baseada no direito. A ordem almejada por Trump e Putin é a ordem ditada por quem tem poder. É ordem sem princípios éticos e sem senso de justiça. Logo, não é ordem, é caos.

Isentões agora são maioria: mais um dia difícil na vida dos inimigos

Mais um dia difícil na vida de quem apostou no caminho da perseguição política para defender sujeira. Gente que, por conveniência, fingiu não ver alianças espúrias, corrupção e abuso de poder, agora se encontra diante de uma verdade incômoda: a maioria do povo brasileiro rejeita esse tipo de conduta. Os chamados “isentões” tornaram-se maioria, segundo pesquisa da Genial/Quaest, e isso está deixando muita gente desnorteada.

Sempre se disse que é possível enganar algumas pessoas por um tempo, mas não todas as pessoas para sempre. E eis que chegamos a esse momento. Os que trocaram seus princípios por uma ilusão de maioria, os que silenciaram diante da dissolução da Lava Jato, os que jamais se opuseram à perseguição de quem discordava da cartilha dominante, agora percebem que sua aposta foi errada. Rifaram o caráter para tentar formar uma maioria que nunca existiu.

O que são os isentões? São os que se recusam a ser cadelinhas de político, os que rejeitam culto a personalidades, os que não aceitam a imposição de uma lealdade cega a figuras específicas. Como tudo isso é odiado por cadelinhas de políticos, isentões são bombardeados diariamente pela direita e pela esquerda psiquiátricas, que pareciam majoritárias. Agora descobrimos que isentões são a maioria. Talvez você seja um deles.

A pesquisa mostra que a maior parte dos brasileiros se identifica como direita ou esquerda, mas sem idolatria. A direita tem uma maioria que se define como direita, não como “bolsonarista”. Já a esquerda tem a maioria se dizendo “lulista”, e não simplesmente “de esquerda”. Há mais personalismo na esquerda, pois sua própria estrutura ideológica foi moldada dessa forma, centrada em líderes que traçam caminhos a serem seguidos. A direita, mais difusa e descentralizada, não costuma operar assim, apesar do fenômeno recente da direita capachista, que adotou a cultura petista de devoção a um único líder.

E o que fazer com essa maioria de isentões? Organização. Durante anos, a direitinha capachista culpou os isentões pela volta de Lula. Isso só ocorreu pela falta de antidoping.

Pessoas que se identificam como bolsonaristas faltaram às urnas em proporções gigantescas. Os petistas não, realmente saíram para votar em massa. Há quem diga que os boatos sobre urnas desanimaram a participação bolsonarista. Pode ser. O fato é que, no país do Homer Simpson, “a culpa é minha e eu ponho em quem quiser”. Sempre alguém será culpado, jamais quem tem culpa.

A questão agora é simples: ou essa maioria de isentões se organiza, ou continuará permitindo que minorias barulhentas ditem as regras do jogo. Falta aos isentões um nome que os represente. Ou talvez falte apenas um empurrãozinho para mostrar que, na política, o pior erro é deixar que os outros falem por você.

A ameaça da China à democracia global

Michael Beckley & Hal Brands, Journal of Democracy, Janeiro 2023

Abstract

 Um regime chinês poderoso, mas ansioso, está agora engajado em um esforço agressivo para tornar o mundo seguro para a autocracia e para corromper e desestabilizar democracias. A promoção da democracia pode estar fora de moda na política externa dos EUA, mas a prevenção da democracia está muito no centro da estratégia chinesa hoje.

Desde os tempos antigos, as disputas entre grandes potências frequentemente envolvem disputas de ideias. A Guerra do Peloponeso não foi simplesmente um choque entre uma Esparta reinante e uma Atenas em ascensão, mas também colocou uma protodemocracia liberal e marítima que se via como a “escola da Hélade” contra um estado escravocrata militarizado e agrário. A ameaça ideológica que a França revolucionária representava para a ordem europeia era tão séria quanto a militar. Na preparação para a Segunda Guerra Mundial, potências fascistas e democracias se enfrentaram; durante a Guerra Fria, as superpotências dividiram grande parte do mundo ao longo de linhas ideológicas.

O entrelaçamento de ideologia e geopolítica não deveria ser surpreendente: no fundo, a política externa é como um país busca tornar o mundo seguro para seu próprio modo de vida. Muitos analistas aceitam que a política externa dos EUA é movida por impulsos ideológicos. Até mesmo os “realistas” radicais das relações internacionais admitem a importância da ideologia quando lamentam o domínio que as paixões liberais têm sobre a política de Washington. Curiosamente, porém, tem havido mais resistência à ideia de que pode haver um componente ideológico na grande estratégia do principal rival dos Estados Unidos — a República Popular da China (RPC). Pequim não está fazendo nenhum “grande esforço estratégico para minar a democracia e espalhar a autocracia”, escreve um importante sinólogo. Sua política externa é baseada em “decisões pragmáticas sobre os interesses chineses”. 1  Os realistas dizem que a China pratica  a Realpolitik  enquanto os Estados Unidos ignoram o conselho de John Quincy Adams de 1821 de “não ir para o exterior em busca de monstros para destruir”. Outros analistas sugerem que é uma distração ou mesmo uma “ilusão” enfatizar os aspectos ideológicos da rivalidade sino-americana em detrimento do desafio militar e económico de Pequim. 2

Na verdade, o inverso é verdadeiro: para entender o desafio chinês, precisamos entender suas dimensões ideológicas. Se Woodrow Wilson e seus seguidores queriam tornar o mundo seguro para a democracia, os governantes da RPC querem fazer o mesmo pela autocracia. Para eles, a autocracia não é simplesmente um meio de controle político ou um bilhete para o autoenriquecimento, mas um conjunto de ideias profundamente arraigadas sobre o relacionamento adequado entre governantes e as massas. Em seu discurso principal de outubro de 2022 no Vigésimo Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) — durante o qual ele próprio foi empossado para um terceiro mandato como líder máximo, enquanto no último dia teve seu antecessor Hu Jintao escoltado sem cerimônia para fora da sala — Xi Jinping insistiu que “escrever constantemente um novo capítulo na Sinicização do Marxismo é a solene responsabilidade histórica dos comunistas chineses contemporâneos” e deixou claro que “a autoridade do Comitê Central do Partido” continuará a estar “no cerne da liderança no controle da situação geral”. Tudo no discurso depende do PCC permanecer como o único responsável por “desenvolver o socialismo com características chinesas”. 3

Essa crença na superioridade de um modelo chinês autocrático coexiste com uma profunda insegurança: a RPC é um regime brutalmente iliberal em um mundo liderado por um hegemon liberal, uma circunstância da qual o PCC extrai uma sensação de perigo generalizado e um forte desejo de remodelar a ordem mundial para que a forma particular de governo da RPC não seja apenas protegida, mas privilegiada. É por isso que um regime chinês poderoso, mas ansioso, está agora engajado em um esforço agressivo para tornar o mundo seguro para a autocracia e para corromper e desestabilizar democracias. A promoção da democracia pode estar fora de moda na política externa dos EUA, mas o que o acadêmico Jason Brownlee chama de “prevenção da democracia” está muito no cerne da estratégia chinesa hoje.

As fontes da conduta chinesa

De certa forma, a tentativa da China de primazia na Ásia e no mundo é um novo capítulo na história mais antiga da história: à medida que os países se tornam mais poderosos, eles se interessam mais em remodelar o mundo. Estados em ascensão buscam influência, respeito e poder; eles descobrem interesses vitais em lugares que estavam simplesmente além de seu alcance antes. Durante o final do século XIX e início do século XX, uma Alemanha em ascensão exigiu seu “lugar ao sol”; após a Guerra Civil, os Estados Unidos da América reunificados e economicamente ascendentes expulsaram seus rivais do Hemisfério Ocidental e começaram a exercer seu peso globalmente. Como escreveu o grande estudioso realista Nicholas Spykman, “o número de casos em que um estado dinâmico forte parou de se expandir… ou estabeleceu limites modestos para seus objetivos de poder foi muito pequeno, de fato”. 4  Dada a rapidez com que o poder da China aumentou nas últimas quatro décadas, seria muito estranho se Pequim  não  estivesse se afirmando no exterior.

No entanto, a China é movida por mais do que a lógica fria da geopolítica. Ela também está buscando a glória como uma questão de destino histórico. Os líderes chineses se veem como herdeiros de um estado chinês que foi uma superpotência durante a maior parte da história registrada. Uma série de impérios chineses reivindicaram “tudo sob o céu” como seu mandato e comandaram a deferência de estados menores ao longo da periferia imperial. Na visão de Pequim, um mundo liderado pelos EUA no qual a China é uma potência de segunda linha não é a norma histórica, mas uma exceção profundamente irritante. Essa ordem foi criada após a Segunda Guerra Mundial, no final de um “século de humilhação” durante o qual potências estrangeiras vorazes saquearam uma China dividida. O mandato do PCC é consertar a história, retornando a China ao topo da pilha.

E então há o imperativo ideológico. Uma China forte e orgulhosa ainda pode representar problemas para Washington, mesmo que um governo liberal-democrático tenha poder em Pequim. O fato de a China ser governada por autocratas comprometidos em suprimir implacavelmente o liberalismo em casa turbina o revisionismo chinês globalmente. Um estado profundamente autoritário nunca pode se sentir seguro em seu próprio governo porque não desfruta do consentimento livremente dado pelos governados; nunca pode se sentir seguro em um mundo dominado por democracias porque as normas internacionais liberais desafiam as práticas domésticas não liberais. “Autocracias”, escreve o estudioso da China Minxin Pei, “simplesmente são incapazes de praticar o liberalismo no exterior enquanto mantêm o autoritarismo em casa”. 5

Isto não é exagero. O infame Documento Número 9, uma diretiva política emitida há quase uma década no início da presidência de Xi, mostra que o PCC vê uma ordem mundial liberal como inerentemente ameaçadora. 6  “Como a China e os Estados Unidos têm conflitos de longa data sobre suas diferentes ideologias, sistemas sociais e políticas externas”, um documento militar chinês declarou na década de 1990, “será impossível melhorar fundamentalmente as relações sino-americanas”.  Por décadas, de fato, autoridades chinesas alegaram que Washington vem travando uma campanha deliberada e bem orquestrada — uma “Terceira Guerra Mundial sem fumaça”, nas palavras de Deng Xiaoping — para enfraquecer e subverter fatalmente o PCC. 7  Deng culpou os Estados Unidos por estarem por trás dos “chamados democratas” que ousaram protestar na Praça da Paz Celestial em 1989. 8

Mesmo quando os Estados Unidos se envolveram com a China, os líderes desta última detectaram uma conspiração para derrubar seu regime. Em 1998, o sucessor de Deng, Jiang Zemin, alertou seus colegas de que, independentemente de os Estados Unidos estarem tomando uma posição de “contenção” ou “engajamento” em relação à RPC, o verdadeiro objetivo de Washington era promover uma “conspiração política” para “dividir nosso país” e “mudar o sistema socialista de nosso país”. 9  Depois de Jiang, veio Hu Jintao, que falou ao seu Ministério das Relações Exteriores em 2003 sobre a “séria realidade de que as forças hostis ocidentais ainda estão implementando a ocidentalização e os projetos políticos divisionistas na China”. 10

Os líderes chineses estão errados se pensam que os Estados Unidos estão ativamente buscando derrubar o regime do PCC. Eles não estão errados, no entanto, ao pensar que um mundo enraizado em valores liberais é aquele em que seu próprio governo deve ser perpetuamente precário. Em um sistema internacional construído com base no respeito aos direitos humanos e na preferência pela democracia, governos que assassinam seus próprios cidadãos correm o risco de censura, ostracismo e punição — como aconteceu com Pequim após a Praça da Paz Celestial em 1989 e está acontecendo novamente hoje em resposta à brutalização da minoria uigur. Um sistema internacional em que as democracias são fortes, vibrantes e globalmente engajadas é aquele em que tendências subversivas tentarão continuamente estados governados por tiranos: em 1989, os manifestantes da Praça da Paz Celestial ergueram uma réplica da Estátua da Liberdade, enquanto aqueles em Hong Kong trinta anos depois agitaram publicamente bandeiras americanas e cantaram “The Star-Spangled Banner”. No que é e no que faz, uma democracia hegemônica ameaça o regime chinês.

A insegurança resultante tem implicações poderosas para a arte de governar de Pequim. Os líderes chineses sentem uma compulsão para tornar as normas e instituições internacionais mais amigáveis ​​ao governo iliberal. Eles buscam afastar influências liberais perigosas das fronteiras da RPC: na mente de Pequim, escreve Timothy Heath, uma “Ásia harmoniosa” apresentaria uma “ordem política moldada pelos princípios políticos chineses”. Os governantes em Pequim sentem que devem arrancar a autoridade internacional de uma superpotência democrática com uma longa história de levar autocracias à ruína. E à medida que uma China autoritária se torna poderosa, ela inevitavelmente busca fortalecer as forças do iliberalismo — e enfraquecer as da democracia — como uma forma de aumentar sua influência e reforçar seu próprio modelo. 11  A China está fazendo isso, além disso, em um momento em que o mundo, e sua distribuição predominante de poder ideológico, apresenta ao PCC tanto ansiedades agudas quanto oportunidades tentadoras.

Ansiedade e Oportunidade

No momento mais sombrio da Segunda Guerra Mundial, havia talvez uma dúzia de democracias no mundo. Ainda em 1989, havia o dobro de governos autocráticos do que democracias. Vinte anos depois, no entanto, as democracias superavam as autocracias em 100 para 78, e a parcela da população mundial vivendo sob autocracia havia caído pela metade. Da perspectiva dos EUA, o avanço global da democracia foi um dos desenvolvimentos mais esperançosos da era pós-1945. Da perspectiva dos líderes da China, no entanto, foi um sinal claro de que a ordem mundial liberal estava manipulada contra sua forma de governo e precisava ser mudada antes que destruísse seu regime.

De acordo com a narrativa de Pequim, o problema começou no início do período pós-guerra, quando os Estados Unidos exploraram seu domínio para injetar ideias liberais radicais em instituições internacionais. Por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 da ONU foi modelada na Declaração de Direitos dos EUA. A DUDH afirma que todos os humanos nascem livres e têm o direito de derrubar governos que não respeitam essa liberdade. Nas décadas seguintes, Pequim assistiu com horror enquanto dezenas de nações, incluindo Coreia do Sul e Taiwan, evoluíram para democracias prósperas. O grupo global em expansão de democracias posteriormente usou força militar, sanções econômicas e uma série de organizações de mídia e direitos humanos para minar dezenas de regimes autocráticos — não apenas os de ditadores de lata, mas também a União Soviética e quase a própria RPC em 1989.

Embora os líderes da RPC tenham se irritado por muito tempo com essa pressão ideológica, ela era suportável enquanto a China desfrutava de uma economia em expansão e uma periferia estável. Quando o Produto Interno Bruto estava crescendo três vezes mais rápido do que a média democrática durante as décadas de 1990 e 2000, foi fácil para Pequim persuadir as pessoas em casa e no exterior de que o autoritarismo era melhor para a China, se não para outros países.

Mas agora, a economia da China está desacelerando, e o regime está sofrendo maior pressão interna — testemunhe os protestos em larga escala que eclodiram contra a política de zero covid de Xi em várias cidades e em dezenas de campi universitários no final de 2022. Pequim está enfrentando crescentes críticas e resistência internacionais em outras frentes também. Em todo o mundo, as visões negativas da China atingiram níveis nunca vistos desde o Massacre da Praça da Paz Celestial de 1989. Os taiwaneses estão mais determinados do que nunca a manter sua soberania de fato. O Japão está dobrando seus gastos com defesa e se preparando explicitamente para a guerra contra a China nesta década. Sob um novo governo democraticamente eleito, as Filipinas estão reforçando seus laços de defesa com os Estados Unidos. A Índia está concentrando forças na fronteira ocidental da China. A União Europeia recentemente rotulou a China como um “rival sistêmico” e suspendeu seu tratado de investimento com Pequim. Até mesmo a ONU, na qual a China ocupa vários cargos de liderança, divulgou recentemente um relatório declarando que Pequim pode ter cometido “crimes contra a humanidade” em Xinjiang. Abalroada por ventos contrários crescentes, a autocracia não é mais uma venda fácil para o PCC. Os cidadãos chineses estavam dispostos a abrir mão de direitos políticos quando suas carteiras e o status internacional de seu país estavam inchando, mas é uma questão em aberto se eles continuarão a fazê-lo sob condições mais duras. Essa questão é especialmente urgente no que diz respeito aos millennials da China, nascidos nas décadas de 1980 e 1990, que não conheceram nada além de ascensão econômica e mobilidade internacional.

Os governantes da China também entenderam há muito tempo o que os cientistas políticos provaram empiricamente: as autocracias geralmente caem em ondas, à medida que a atividade revolucionária em um país inspira revoltas populares em outros. 12  Um efeito dominó democrático derrubou regimes comunistas na Europa Central e Oriental em 1989. A autoimolação de um vendedor de frutas tunisiano no final de 2010 incendiou grande parte do mundo árabe. A lição é que uma revolução em qualquer lugar é uma ameaça à autocracia em todos os lugares. Xi Jinping sabe disso: não muito depois da Primavera Árabe, ele se preocupou em particular com o presidente Barack Obama e o vice-presidente Joe Biden que a China era um alvo de “revoluções coloridas” e vulnerável ao tipo de revolta que engolfava o Oriente Médio. 13

O PCC respondeu com repressão intensificada na última década — prendendo dissidentes, mobilizando forças de segurança, censurando informações e prevenindo a agitação popular. No entanto, a China agora é forte o suficiente para fazer mais do que apenas se agachar diante da pressão estrangeira. Xi acredita que o poder doméstico do PCC será aprimorado se o autoritarismo prevalecer e as democracias forem disfuncionais — colegas déspotas não punirão a China por abusos de direitos, e o povo chinês não desejará imitar o caos dos sistemas liberais. Ele acha que impedir revoltas contra o autoritarismo em outros países diminuirá as chances de tal revolta irromper na China. E ele acredita que silenciar os críticos no exterior limitará os desafios que o PCC enfrenta na China. Xi vê a reversão da democracia no exterior como parte de seu plano para proteger seu regime em casa.

Prevenção da Democracia

A RPC escreveu sua primeira estratégia formal de segurança nacional sob Xi, em 2014. 14  Enquanto a segurança do regime costumava ser uma das muitas prioridades do governo (embora a mais importante), agora é  a  prioridade. 15  Todas as outras questões — comércio, diplomacia, modernização militar — são complementos para manter o PCC no poder. Como resultado, cada questão é uma questão de segurança do regime. Uma guerra comercial com democracias ricas não é mais apenas um desacordo econômico; é um ataque ao estado chinês e um possível prelúdio para uma guerra armada.

Enquanto as administrações chinesas anteriores defendiam a “manutenção da estabilidade”, o foco sob Xi está na prevenção de ameaças. Documentos chineses comparam explosões populares a tumores cancerígenos que precisam ser extirpados rapidamente antes que se espalhem para órgãos vitais do estado. Ideologias que podem rivalizar com o comunismo, incluindo o liberalismo e o islamismo, são vistas como doenças infecciosas contra as quais a população da China deve ser imunizada. Como Sheena Chestnut Greitens demonstrou, essas metáforas médicas justificam mirar e “tratar” pessoas muito antes que elas apresentem sintomas ameaçadores. 16  A ilustração mais clara está em Xinjiang, onde a China prendeu extrajudicialmente mais de um milhão de uigures. 17  Mas a China está aplicando essa lógica preventiva além de suas fronteiras também.

Pequim gasta bilhões de dólares anualmente em um “kit de ferramentas antidemocrático” de organizações não governamentais, veículos de mídia, diplomatas, conselheiros, hackers e subornos, todos projetados para sustentar autocratas e semear discórdia nas democracias. 18  O PCC fornece armas, dinheiro e proteção contra a censura da ONU para outras autocracias, enquanto aplica sanções a defensores estrangeiros dos direitos humanos. Autoridades chinesas oferecem a seus irmãos autoritários equipamentos de controle de distúrbios e conselhos sobre como construir um estado de vigilância; o comércio, o investimento e os empréstimos da RPC permitem que esses ditadores evitem a condicionalidade ocidental em relação à anticorrupção ou à boa governança.

Pequim usa seus órgãos de mídia que abrangem o globo para apregoar as realizações do governo iliberal enquanto destaca as falhas e hipocrisias dos governos democráticos. A China trabalha com regimes autoritários companheiros, como o de Vladimir Putin na Rússia, para empurrar normas favoráveis ​​aos autocratas de gerenciamento da internet em instituições internacionais e órgãos de definição de padrões. Pequim também ajuda outros regimes iliberais próximos ou na Ásia Central a perseguir e reprimir exilados e dissidentes. Não menos importante, a China está travando uma campanha de coerção política e militar para desestabilizar Taiwan, uma nação florescente cuja própria existência refuta as alegações do PCC de que a cultura chinesa é incompatível com a democracia. O problema fundamental que Taiwan representa para a China, escrevem Andrew Nathan e Andrew Scobell, “vem de Taiwan simplesmente ser o que é — uma sociedade chinesa moderna que é economicamente próspera e politicamente democrática”. 19

Pode ser tentador descartar os esforços de prevenção da democracia da China como “política mundial como sempre”. Afinal, os autocratas têm conspirado para manter o liberalismo sob controle desde que os monarcas da Áustria, Prússia e Rússia se uniram para lutar contra a França Revolucionária há mais de dois séculos. Mas o ataque ideológico da China é especialmente ameaçador, por três razões.

Primeiro, o alcance global da China é mais penetrante do que o de qualquer potência iliberal anterior. Sua economia massiva e 1,4 bilhão de consumidores a armam com cenouras e porretes poderosos para silenciar a liberdade de expressão muito além de suas fronteiras. Austrália, Canadá, República Tcheca, Japão, Lituânia, Noruega, Filipinas, Coreia do Sul, Taiwan e Estados Unidos — além de dezenas de empresas privadas e indivíduos de nações democráticas — experimentaram recentemente a ira econômica da China. Em muitos casos, a punição foi amplamente desproporcional ao suposto crime. Por exemplo, a China aplicou tarifas altas em quase todas as principais exportações da Austrália depois que Canberra solicitou uma investigação internacional sobre as origens da covid-19.

Além de armas econômicas, a China ocupa cargos de liderança na ONU e em outras grandes instituições internacionais que dão a Pequim chances de dobrar a governança global em uma direção antiliberal. Por exemplo, quando Belarus violou normas internacionais ao forçar a queda de um avião que transportava um dissidente procurado em 2021, a China exerceu sua autoridade como chefe da Organização Internacional de Aviação Civil da ONU para proteger o regime brutal de Alyaksandr Lukashenka da censura. 20  E se a diplomacia e os incentivos econômicos falharem, Pequim pode usar sua marinha, agora a maior do mundo, e força de mísseis convencionais para coagir países a obedecer ou até mesmo para varrer democracias do mapa, como a China está ameaçando fazer com Taiwan.

Em segundo lugar, a campanha antiliberal da China capitaliza uma tendência global perturbadora: como relata a Freedom House, o autoritarismo se espalhou durante todos os anos desde 2006, enquanto a democracia recuou. Essa “recessão democrática” deu à China uma janela de oportunidade ideológica para promover uma visão de uma sociedade hierárquica e harmoniosa e uma crítica de um Ocidente desordenado e decadente. Em todo o mundo, a fé pública nas instituições democráticas caiu para níveis nunca vistos desde a década de 1930. O solo político amadureceu para o autoritarismo criar raízes, e a China, a Rússia e outros estados autoritários estão fertilizando essa planta antidemocrática com desinformação digital que seus propagandistas injetam nos feeds de mídia social de bilhões em todo o mundo. 21

O terceiro e mais importante fator que impulsiona os esforços da China é a revolução digital em andamento. 22  O PCC possui poder de coleta de dados e mensagens para rivalizar com o da Apple, Amazon, Facebook, Google e Twitter. 23  Ao combinar inteligência artificial (IA) e “big data” com tecnologias cibernéticas, biométricas e de reconhecimento facial e de fala, Pequim está sendo pioneira em um sistema que permitirá que ditadores saibam tudo sobre seus súditos — o que as pessoas estão dizendo e assistindo, com quem andam, do que gostam e não gostam e onde estão localizados em um determinado momento — e disciplinar cidadãos instantaneamente restringindo seu acesso a crédito, educação, emprego, assistência médica, telecomunicações e viagens, se não para caçá-los para formas mais medievais de punição.

Esta revolução tecnológica ameaça perturbar o equilíbrio global entre democracia e autoritarismo ao tornar a repressão mais acessível e eficaz do que nunca. 24  Em vez de depender de exércitos caros e potencialmente rebeldes para brutalizar uma população ressentida, um autocrata agora terá meios de controle mais insidiosos. Milhões de espiões podem ser substituídos por centenas de milhões de câmeras sem piscar. Tecnologias de reconhecimento facial podem classificar rapidamente feeds de vídeo e identificar encrenqueiros. Bots podem entregar propaganda personalizada para grupos específicos. Malware pode ser instalado em computadores por meio de aplicativos ou links aparentemente inócuos, e então hackers do governo podem invadir as redes de computadores de dissidentes ou coletar informações sobre suas operações. Essas informações, por sua vez, podem ser usadas para cooptar movimentos de resistência subornando seus líderes ou atendendo suas demandas mais inócuas. Alternativamente, as autoridades podem imprimir uma lista montada por IA de supostos ativistas e matar todos nela.

O gênio maligno desse “autoritarismo digital” é que a maioria das pessoas será aparentemente livre para cuidar de suas vidas cotidianas. Na verdade, porém, o estado estará constantemente censurando tudo o que veem e rastreando tudo o que fazem. Com o autoritarismo da velha escola, pelo menos se sabia de onde vinha a opressão. Mas agora as pessoas podem ser cutucadas e persuadidas por algoritmos invisíveis que entregam conteúdo personalizado para seus telefones. Em eras passadas, os autocratas tinham que fazer escolhas difíceis entre financiar esquadrões da morte ou desenvolvimento econômico. Hoje, no entanto, a repressão não é apenas acessível, mas também lucrativa, porque as tecnologias de “cidade inteligente” que permitem um controle social rígido também podem ser usadas para combater o crime, diagnosticar doenças e fazer os trens circularem no horário.

Essas tecnologias são o sonho de um tirano. Reconhecendo essa demanda, as empresas chinesas já estavam vendendo e operando sistemas de vigilância em mais de oitenta países em 2020. 25  À medida que o PCC se sente cada vez mais ameaçado em casa e no exterior, há todos os motivos para esperar que Pequim exporte o autoritarismo digital para mais longe e mais amplamente. Muitos países já o querem, e a China tem ferramentas poderosas para obrigar aqueles que não o querem. Quer acesso ao vasto mercado da RPC? Deixe a Huawei instalar os principais componentes da sua rede 5G. Quer um empréstimo chinês? Aceite a tecnologia de vigilância da RPC na sua capital.

À medida que mais governos fizerem parcerias com Pequim, o alcance do estado de vigilância da China aumentará. 26  As autocracias existentes se tornarão mais totalitárias, e algumas democracias irão migrar para o campo autoritário. Os conflitos internacionais provavelmente proliferarão — não apenas os de ideias, mas os de armas, pois, como ilustra a invasão da Ucrânia por Putin, a ditadura frequentemente se transforma em nacionalismo de sangue e solo e revanchismo violento. A crença liberal de que a democracia e a paz estão destinadas a se espalhar pelo mundo será derrubada. O mesmo acontecerá com o mito reconfortante de que a humanidade evoluiu além do ponto de atrocidades em massa, porque o autoritarismo digital não desloca gulags e genocídios; ele os possibilita. Quando as ditaduras aumentam a repressão digital, elas também se envolvem em mais torturas e assassinatos. 27  Computadores e câmeras que lidam com a vigilância cotidiana liberam os soldados rasos do regime para tarefas como limpeza étnica e espancamento de dissidentes até a submissão. Xinjiang, com suas cidades inteligentes e campos de concentração, oferece um vislumbre desse futuro terrível. 28

Proteção da Democracia

A ofensiva ideológica da China está, portanto, no cerne de seu esforço para remodelar a ordem global. Uma parte crucial da estratégia da China no mundo democrático, portanto, deve envolver a proteção de instituições democráticas contra ataques autoritários. Se  a promoção da democracia  tem má fama,  a proteção  da democracia está se tornando indispensável.

Esta campanha ideológica não implica buscar uma mudança de regime na China. A democracia pode eventualmente se consolidar naquele país, mas há pouca perspectiva disso em breve, e esforços ativos para desestabilizar o PCC podem ser contraproducentes e perigosos. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos nunca tentaram realmente derrubar o governo soviético. Isso foi por preocupação de que isso pudesse desencadear a guerra quente que Washington esperava evitar. O mesmo princípio de cautela deve ser aplicado hoje. A proteção da democracia é uma estratégia essencialmente defensiva, embora em alguns casos exija táticas mais assertivas do que aquelas que os Estados Unidos e seus aliados têm estado dispostos a empregar até o momento.

Em sua essência, a proteção da democracia requer o que os planejadores militares chamam de “defender para a frente” — salvaguardar os sistemas democráticos enfraquecendo ativamente a capacidade de um oponente de danificá-los. 29  Os Estados Unidos devem fazer o que puderem para reforçar a democracia em casa e no exterior, mas a prioridade imediata deve ser abrir buracos na cortina de ferro digital que Pequim está desenhando em grandes áreas do globo. Se o mundo está de fato em um “ponto de inflexão” na luta entre democracia e autocracia, como Biden e Xi parecem pensar que está, uma América que permaneça na defensiva não fará a balança pender. Colocar “a casa democrática da América em ordem” é uma ideia maravilhosa, mas levará anos, se não décadas, e daria apenas ajuda indireta para deter a disseminação da autocracia no exterior. Formar uma aliança gigante de democracias é um objetivo digno, mas pode gerar debates intermináveis ​​em vez de ações decisivas. Em 2000, o governo Bill Clinton criou a “Comunidade das Democracias”, que, no final, incluía 106 países. Após anos de reuniões, sua única realização foi uma declaração insípida criticando o golpe militar de 2021 na Birmânia.

Em vez de construir mais uma organização em expansão ou remendar humildemente buracos nas defesas democráticas, os Estados Unidos deveriam levar a luta ao inimigo e mobilizar “gangues” rudes e prontas de aliados para degradar e deter as iniciativas de guerra política da China. O primeiro passo seria hackear sistemas autoritários digitais. Uma qualidade redentora dos estados policiais digitais é que eles têm uma miríade de pontos de falha. Qualquer computador ou capanga do governo é um ponto de entrada potencial para malware. Os hackers podem furtivamente alimentar “entradas adversárias” em sistemas de vigilância alterando alguns pixels em certas imagens, inserindo pontos de dados falsos ou inserindo código malicioso nos patches que os técnicos autoritários usam para consertar sistemas defeituosos. Os hacks podem permitir que notícias proibidas se tornem virais, enganar os sistemas de vigilância para ignorar a atividade dissidente e classificar erroneamente os leais ao regime como inimigos do estado.

Governos democráticos nem precisam atacar estados autoritários diretamente; democracias podem postar paródias online e deixar dissidentes ao redor do mundo usá-las como armas. E defensores da democracia não precisam interromper todos os regimes autoritários digitais — alguns erros de alto perfil podem ser o suficiente para diminuir a demanda pelos produtos de Pequim. Pense nisso como uma imposição de custo ideológica: o tempo, energia e dinheiro que a China terá que dedicar para consertar seu estado de vigilância doméstica serão tempo, energia e dinheiro que Pequim não pode gastar manipulando políticas democráticas no exterior.

Uma segunda tarefa vital é desacelerar a disseminação da tecnologia que permite a repressão. Em parte, isso significará produzir alternativas acessíveis aos produtos chineses de telecomunicações e cidades inteligentes. Essas alternativas podem incluir satélites de órbita baixa da Terra (como os mais de 3.000 satélites pequenos que compõem a rede Starlink) para fornecer banda larga global. Mais importante, isso também significará impedir que empresas dos EUA e aliadas transfiram certas tecnologias — como aquelas para reconhecimento avançado de fala e facial, visão computacional e processamento de linguagem natural — para regimes autoritários, bem como impedir que empresas estrangeiras envolvidas em repressão autoritária levantem capital nos mercados financeiros das democracias. 30  Durante a Guerra Fria, os governos ocidentais mantiveram o Comitê Coordenador para Controles Multilaterais de Exportação (Co-Com) para impedir que tecnologia avançada fosse vendida ao bloco soviético. Algo como a abordagem do Co-Com é adequado no que diz respeito à China. Washington e os aliados dos EUA já restringiram o acesso da RPC a semicondutores avançados, principalmente até agora por meio de novas regulamentações agressivas que o Departamento de Comércio dos EUA implementou em outubro de 2022. Embargos semelhantes serão necessários para prejudicar o estado de vigilância em expansão de Pequim. 31

Isso se relaciona a um terceiro imperativo — frustrar os esforços da China para expandir o alcance de sua internet autoritária. Uma maneira de fazer isso seria os Estados Unidos e seus aliados dividirem preventivamente a internet global criando um bloco digital no qual dados e produtos fluam livremente, excluindo a China e outros países que se recusam a respeitar a liberdade de expressão ou direitos de privacidade. Isso pode parecer drástico, mas pode ser necessário para combater o PCC, que atualmente desfruta do melhor dos dois mundos: ele administra uma rede fechada em casa (impedindo que cidadãos da RPC acessem sites estrangeiros e limitando o acesso digital de empresas ocidentais) enquanto também acessa seletivamente a internet globalmente para roubar propriedade intelectual, interferir em eleições democráticas, espalhar propaganda e hackear infraestrutura crítica. Esta é uma versão da era digital da infame Doutrina Brezhnev da União Soviética: o que é meu é meu, e o que é seu está em disputa.

Para combater essa exploração, Richard Clarke e Rob Knake propuseram formar uma “Internet Freedom League”, uma iniciativa que é melhor vista menos como uma aliança multilateral em expansão do que como uma espécie de união alfandegária digital. 32  Sob esse sistema, os países que aderirem à visão de uma internet livre e aberta permaneceriam conectados uns aos outros, enquanto os países que se opuserem a essa visão enfrentariam acesso restrito ou seriam excluídos. Todo o tráfego da web de não membros não seria bloqueado, apenas o tráfego de empresas e organizações que auxiliam e incentivam o autoritarismo digital ou o crime cibernético. Claro, o governo da RPC é um desses maus atores, então ele e as entidades que fazem suas licitações — sejam instituições governamentais ou empresas nominalmente privadas que estão profundamente ligadas ao estado chinês — seriam cortadas.

Quarto, uma maior cooperação entre democracias — econômicas e outras — diminuirá a capacidade da China de assustá-las e fazê-las silenciar punindo uma delas. A recente campanha da China contra a Austrália enfatizou isso. Em abril de 2020, Canberra pediu uma investigação internacional independente sobre as origens da pandemia de covid. Uma Pequim enfurecida aplicou tarifas altas sobre carvão, carne bovina, trigo, vinho e outros produtos australianos, ao mesmo tempo em que exigia que o governo australiano abafasse vozes domésticas “hostis” à RPC.

Para seu crédito, Canberra se recusou a ceder e lentamente encontrou mercados alternativos, em parte lançando uma campanha de relações públicas “combata o comunismo, compre vinho australiano”. O governo Biden informou às autoridades da RPC que as tensões bilaterais não diminuiriam se o PCC estivesse atacando os aliados dos EUA, e Washington prometeu fornecer à Austrália tecnologia nuclear para alimentar submarinos de ataque de ponta. A economia da Austrália sofreu um golpe, no entanto — e, desajeitadamente, empresas de outras democracias abocanharam parte da fatia de mercado resultante. Laços econômicos mais densos entre democracias e não democracias amigáveis ​​que temem a coerção chinesa, como Vietnã e Cingapura, podem cortar os custos de resistência futura. Ainda melhor seria se democracias ricas concordassem em infligir dor recíproca a Pequim por meio de contra-sanções. A China ainda poderia tentar censurar o discurso democrático em países estrangeiros, mas apenas ao custo de seu próprio crescimento econômico.

A China certamente se irritaria com essas medidas, mas até certo ponto isso é uma coisa boa, porque fornece oportunidades para incitar Pequim a erros estratégicos. Lembre-se do que aconteceu em março de 2021, quando os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido e o Canadá sancionaram quatro autoridades chinesas por abusos de direitos humanos em Xinjiang. As sanções foram tapas no pulso, mas desencadearam uma explosão autodestrutiva de “guerreiro-lobo”: Pequim desencadeou uma fuzilaria diplomática e sancionou autoridades e think tanks da UE; a UE respondeu congelando o pendente Acordo Abrangente sobre Investimento China-UE. Os Estados Unidos e seus aliados podem incitar a China de maneiras sutis que não correm o risco de guerra, mas provocam reações exageradas e tempestuosas por meio das quais Pequim se isola.

Estratégias de isca e sangramento, no entanto, exigem resiliência. Quando a mídia estatal chinesa ameaçou, em março de 2020, mergulhar a América em “um poderoso mar de coronavírus” negando-lhe produtos farmacêuticos, ela ressaltou a capacidade de Pequim de retaliar feio contra democracias que se recusam a seguir sua linha. 33  Um quinto requisito dessa estratégia, então, será desenvolver rapidamente redes de produção de mundo livre para recursos críticos que a China atualmente domina, incluindo minerais de terras raras e suprimentos médicos de emergência. A alternativa ao desenvolvimento proativo dessas redes é desenvolvê-las reativa e a um custo muito maior durante uma crise — como a Europa descobriu com sua transição forçada do fornecimento de energia russo devido à guerra na Ucrânia.

Um sexto aspecto da defesa avançada envolve lutar mais ativamente na guerra da informação. A estratégia da China envolve promover incansavelmente os supostos benefícios de seu próprio modelo, enquanto atiça as chamas da discórdia política em sociedades democráticas. Expor grupos falsos da sociedade civil ou veículos de mídia que são ferramentas de influência chinesa é obviamente vital. Igualmente importante, porém, é ser mais agressivo em virar o jogo contra Pequim, espalhando a notícia de seus abusos de direitos, crescentes problemas econômicos e sociais, corrupção desenfreada, práticas predatórias de empréstimos no exterior e outros crimes e deficiências do PCC. Os Estados Unidos acumularam muita experiência com tais esforços durante a Guerra Fria, quando instituições como a extinta Agência de Informação dos EUA disseram a verdade sobre o bloco soviético enquanto contestavam mentiras comunistas sobre o mundo livre. 34  Hoje, mensagens semelhantes podem não ressoar com líderes estrangeiros cleptocráticos que são financiados por Pequim — mas tais comunicações ajudarão a tornar o ambiente global de informações menos favorável à propaganda do PCC.

Sétimo, os Estados Unidos e seus aliados devem contestar mais efetivamente o terreno institucional, porque aqueles que governam os organismos internacionais do mundo escrevem as regras do mundo. Transformar organizações internacionais em ferramentas de entrincheiramento doméstico e influência global para regimes autoritários é uma estratégia de longa data do PCC. Pequim compra regularmente votos de estados-membros nessas organizações, que então elegem candidatos favorecidos pela RPC para liderá-los. Para deter a marcha da China em direção ao domínio institucional, os Estados Unidos devem aprender a reunir coalizões mutáveis ​​de países democráticos por trás de candidatos que defenderão os valores básicos do mundo livre. Isso aconteceu em setembro de 2022, quando Doreen Bogdan-Martin foi eleita secretária-geral da União Internacional de Telecomunicações da ONU.

Finalmente, os Estados Unidos precisam ajudar a proteger democracias que fazem fronteira com agressores autoritários. Defender nações vulneráveis ​​importa, principalmente porque a coerção autoritária bem-sucedida em um lugar pode encorajar ações perigosas em outro lugar. O principal campo de batalha hoje é a Ucrânia, com Taiwan em segundo lugar. Ao reforçar Taiwan com proteção militar e linhas de vida econômicas, Washington pode preservar uma alternativa ideológica potente ao PCC — e fortalecer uma coalizão de mundo livre que pode manter o mundo seguro para a democracia nas próximas décadas.

Este ensaio é uma adaptação do livro dos autores, Danger Zone: The Coming Conflict with China  (2022).

NOTAS

1. Jessica Chen Weiss, “Um mundo seguro para a autocracia? A ascensão da China e o futuro da política global”,  Foreign Affairs  98 (julho–agosto de 2019): 93–94.

2. Elbridge Colby e Robert D. Kaplan, “A ilusão ideológica: a competição da América com a China não é sobre doutrina”, Foreign Affairs,  4 de setembro de 2020.

3. “The Long and Short of the CCP Congress,” China Media Project, 16 de outubro de 2022,  https://chinamediaproject.org/2022/10/16/the-long-and-short-of-xis-political-report .  As palavras citadas são da versão curta do discurso de Xi, que pode ser baixada em chinês de um link nesta página e, em seguida, executada por um programa de tradução.

4. Nicholas Spykman,  Estratégia da América na Política Mundial: Os Estados Unidos e o Equilíbrio de Poder (Nova York: Harcourt and Brace, 1942), 20–22.

5. Minxin Pei, “Pragmatismo assertivo: ascensão econômica da China e seu impacto na política externa chinesa”, Departamento de Estudos de Segurança do IFRI, outono de 2006,  https://www.ifri.org/sites/default/files/atoms/files/Prolif_Paper_Minxin_Pei.pdf .

6. Suisheng Zhao, “O renascimento maoísta de Xi Jinping”,  Journal of Democracy 27 (julho de 2016): 85, www.journalofdemocracy.org/wp-content/uploads/2016/07/Zhao-27-3.pdf .

7. Citações de Christopher A. Ford,  China Looks at the West: Identity, Global Ambitions, and the Future of Sino-American Relations (A China olha para o Ocidente: identidade, ambições globais e o futuro das relações sino-americanas) (Lexington: University Press of Kentucky, 2015), 186; Samuel Kim, “Human Rights in China’s International Relations”, em Edward Friedman e Barrett L. McCormick, eds.,  What If China Doesn’t Democratize? Implications for War and Peace (E se a China não se democratizar? Implicações para a guerra e a paz) (Nova York: ME Sharpe, 2000), 130–31.

8. Citado em Rush Doshi,  The Long Game: China’s Grand Strategy to Displace American Order (Nova York: Oxford University Press, 2021), 52.

9. Doshi,  Jogo Longo, 54–55.

10. Doshi,  Jogo Longo, 56.

11. Timothy R. Heath, “O que a China quer? Discernindo a estratégia nacional da RPC”,  Asian Security 8 (março de 2012): 54–72.

12. Samuel P. Huntington,  The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century  (Norman: University of Oklahoma Press, 1993). Para dados, veja o Mass Mobilization Project,  https://massmobilization.github.io .

13. Chris Buckley e Steven Lee Myers, “Em tempos turbulentos, Xi constrói uma fortaleza de segurança para a China e para si mesmo”,  New York Times,  6 de agosto de 2022.

14. “O Comitê Central do PCC – Proposta Formulada para o 14º Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico e Social Nacional e Metas de Longo Prazo para 2035”,  www. xinhuanet.com/2020-10/29/c_1126674147.htm .

15. Jude Blanchette, “Segurança ideológica como segurança nacional”, CSIS, 2 de dezembro de 2020,  www.csis.org/analysis/ideological-security-national-security .

16. Sheena Chestnut Greitens, “Repressão preventiva: segurança interna e grande estratégia na China sob Xi Jinping”, ms. não publicado, 2021.

17. Sheena Chestnut Greitens, Myunghee Lee e Emir Yazici, “Contraterrorismo e repressão preventiva: a mudança de estratégia da China em Xinjiang”,  International Security  44 (inverno de 2019–20): 9–47.

18. Christopher Walker e Jessica Ludwig, “The Long Arm of the Strongman: How China and Russia Use Sharp Power to Threaten Democracies”,  Foreign Affairs,  12 de maio de 2021; Elizabeth. C. Economy, “Exporting the China Model”, Testemunho perante a Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China, 13 de março de 2020,  www.uscc.gov/sites/default/files/testimonies/USCCTestimony3-13-20%20(Elizabeth%20Economy)_justified.pdf .

19. Andrew J. Nathan e Andrew Scobell,  A busca da China por segurança (Nova York: Columbia University Press, 2012), 213.

20. Yaroslav Trofimov, Drew Henshaw e Kate O’Keeffe, “Como a China está assumindo o controle de organizações internacionais, um voto de cada vez”,  Wall Street Journal,  29 de setembro de 2020.

21. Michael J. Mazarr et al.,  Manipulação social hostil: realidades atuais e tendências emergentes  (Santa Monica: RAND Corporation, 2019); Jeff Kao, “Como a China construiu uma máquina de propaganda no Twitter e depois a soltou no coronavírus”,  ProPublica,  26 de março de 2020,  https://www.propublica.org/article/how-china-built-a-twitter-propaganda-machine-then-let-it-loose-on-coronavirus .

22. Veja os artigos na edição de janeiro de 2019 do  Journal of Democracy intitulados coletivamente “The Road to Digital Unfreedom”; veja também Richard Fontaine e Kara Frederick, “The Autocrat’s New Toolkit”,  Wall Street Journal,  15 de março de 2019.

23. Larry Diamond, “O caminho para a falta de liberdade digital: a ameaça do totalitarismo pós-moderno”,  Journal of Democracy  30 (janeiro de 2019): 22.

24. Tiberiu Dragu e Yonatan Lupu, “Autoritarismo digital e o futuro dos direitos humanos”,  Organização Internacional  75 (outono de 2021): 991–1017.

25. Sheena Chestnut Greitens, “Lidando com a demanda por exportações de vigilância global da China”,  Global China, abril de 2020,  www.brookings.edu/research/dealing-with-demand-for-chinas-global-surveillance-exports .

26. Alina Polyakova e Chris Meserole, “Exportando autoritarismo digital: os modelos russo e chinês”, Brookings Institution Policy Brief, agosto de 2019,  www.brookings.edu/wp-content/uploads/2019/08/FP_20190827_digital_authoritarianism_polyakova_meserole.pdf .

27. Andrea Kendall-Taylor, Erica Frantz e Joseph Wright, “Os ditadores digitais: como a tecnologia fortalece a autocracia”,  Foreign Affairs  99 (março–abril de 2020).

28. Ross Andersen, “O Panóptico Já Está Aqui”,  Atlantic,  setembro de 2020.

29. O Comando Cibernético dos Estados Unidos, por exemplo, adotou essa abordagem para proteger redes dos EUA. Veja Erica D. Lonergan, “Operationalizing Defend Forward: How the Concept Works to Change Adversary Behavior,”  Lawfare,  12 de março de 2020,  lawfareblog.com/operationalizing-defend-forward-how-concept-works-change-adversary-behavior .

30. Derek Scissors, “Limits Are Overdue in the US-China Technology Relationship”, Declaração ao Comitê Judiciário do Senado dos EUA, Subcomitê sobre Crime e Terrorismo, 4 de março de 2020.

31. Para uma lista de tecnologias críticas, veja Emma Rafaelof, “Unfinished Business: Export Control and Foreign Investment Reforms,” US-China Economic and Security Review Commission, Issue Brief, 1 de junho de 2021.

32. Richard A. Clarke e Rob Knake, “A Liga da Liberdade da Internet: Como reagir contra o ataque autoritário à Web”,  Foreign Affairs  98 (setembro–outubro de 2019).

33. Barnini Chakraborty, “China sugere negar medicamentos que salvam vidas para os Estados Unidos contra o coronavírus”, Fox News, 13 de março de 2020.

34. Hal Brands,  A luta crepuscular: o que a Guerra Fria nos ensina sobre a rivalidade entre grandes potências hoje  (New Haven: Yale University Press, 2022), 186–89

Michael Beckley is associate professor of political science at Tufts University and nonresident senior fellow at the American Enterprise Institute.

Hal Brands is the Henry Kissinger Distinguished Professor at the Johns Hopkins School of Advanced International Studies and senior fellow at the American Enterprise Institute. 

Foto: Sergei Bobylev/Sputnik.

Xeque Mate

Estamos diante de uma partida de xadrez no tabuleiro internacional e Moscou vem trabalhando com foco no longo prazo, com a preparação de jogadas e armadilhas com vistas a atingir seus propósitos. Tudo indica que vem logrando êxito, especialmente diante dos últimos acontecimentos.

Desde que assumiu o poder, Putin tem um grande objetivo, que é a reconstrução do império russo por meio das fronteiras perdidas diante da desintegração da União Soviética em 1991. Em discurso em 2005, pontuou que o colapso da URSS foi “a maior catástrofe geopolítica do século” e que “para o nosso povo, isso se tornou um drama de verdade. Dezenas de milhões de nossos cidadãos se viram fora de nossa Federação”. Reconstruir este espaço se tornou sua obsessão.

Duas décadas depois, a Europa se tornou dependente do gás russo e o país abriu a porta dos conselhos de suas empresas para políticos europeus. Passou a investir em uma máquina de propaganda e desinformação por meio de canais oficiais e não oficiais no exterior, envenenou opositores e encarcerou dissidentes do regime, além de manipular eleições no exterior, seja pelo apoio financeiro ou por meio de estratégias de seus canais de comunicação e informação. 

Isso significa que o Kremlin vem desenhando este caminho há tempos. Uma estratégia como esta é algo preparado de forma meticulosa no longo prazo e agora vem colhendo resultados reais. O enfraquecimento da Otan, a ascensão de governos populistas ao redor do mundo, assim como a consolidação de um eixo autocrático está dentro dos planos traçados por Moscou. Nada, até o presente momento, fugiu do script.

A ação militar sobre a Ucrânia, com a sua invasão, é apenas mais um capítulo desta história. Agora, que tudo se encaminha para um acordo onde o leste do país ficará sob a tutela de Moscou (que já havia tomado a Criméia), será uma questão de tempo para que o Kremlin avance por todo o país. Um aperitivo do que pode vir depois, colocando em risco o Báltico e o Cáucaso antes de ampliar ainda mais seu espectro.

Em 1904, o geógrafo inglês Halford Mackinder desenvolveu a teoria do Heartland. Ele situou esta região na zona territorial que abrange os continentes europeu e asiático, que recebe a denominação de Eurásia. Pela profundidade do território e suas riquezas, aquela nação que controlasse esta faixa de terra e suas saídas marítimas estratégicas, dominaria o mundo. Poucos entendiam de geopolítica como Mackinder, entretanto, ao ler seus ensinamentos, é possível antever cada um dos passos dados por Vladimir Putin. Em face de seu objetivo, claro e bem traçado, vemos que os movimentos do Kremlin estão espalhados em várias frentes, são coordenados e pensados no longo prazo, inclusive incluindo suas alianças e criação de novos fóruns internacionais. Uma arquitetura de poder que vem corroendo as estruturas democráticas do mundo ocidental nos seus valores, lideranças, eleições e decisões, por meio da desinformação, financiamento e infiltração. Se o Ocidente não reagir, o xeque-mate será inevitável.   

Bolsonaro ganharia de Lula se a eleição fosse hoje

Uma cena descreve a situação atual do governo Lula: frango descendo ladeira. A situação econômica não melhora, os aliados começam a desembarcar, a base no Congresso se torna mais difícil de controlar e, pior, o governo não apresenta nenhuma solução concreta para sair do buraco em que se enfiou.

Diante desse cenário, a velha tática de distribuir programas sociais já não funciona mais como antes. A população que depende desses auxílios não vê mais aquilo como um presente do governo, mas sim como um direito adquirido. Ou seja, Lula pode inflar o Bolsa Família e criar novas bolsas, mas isso não garante que os eleitores vão continuar votando nele. Ainda mais quando os preços seguem nas alturas e a inflação corrói o poder de compra das pessoas.

A resposta do governo? Uma estratégia de comunicação desastrosa e uma tentativa de criar narrativas para desviar a culpa. O episódio mais ridículo foi a ação coordenada de influencers e parlamentares governistas para tentar responsabilizar os produtores rurais pela alta dos alimentos.

Os aliados do governo se mobilizaram para espalhar a tese de que os preços altos não são culpa da política econômica desastrosa de Lula, mas sim dos próprios produtores, que “jogam comida fora”. O ápice do absurdo foi um vídeo em que um influencer queridinho do governo reage à cena de uma uma mulher descartando dois chuchus. Influenciadores repetiram a narrativa, políticos embarcaram e até parte da imprensa governista tentou dar algum verniz de credibilidade à história.

Só que a tese não se sustenta e a operação de mídia teve pouco ou nenhum efeito sobre quem acha os preços altos no supermercado.

Lula está mais isolado do que nunca. E, diferente dos seus primeiros governos, não tem mais estrategistas competentes ao seu redor. No passado, ele contava com Antônio Palocci, Luiz Gushiken, Gilberto Carvalho e José Dirceu, que, goste-se ou não, sabiam articular politicamente. Agora, ele tem Gleisi Hoffmann e Janja.

O cenário eleitoral também não traz boas notícias. A pesquisa da Paraná Pesquisas aponta um quadro preocupante para o PT: em um eventual segundo turno contra Jair Bolsonaro, Lula já aparece numericamente bem atrás, com 40,2% contra 45,1% do ex-presidente. Perdeu nas urnas por um dedinho, agora perde uma mão cheia, cinco pontos. Também perde contra Michelle Bolsonaro e toma um suor do governador Tarcísio de Freitas.

Os aliados começaram a abandonar o barco. O advogado Kakay escreveu uma carta alertando que Lula está cercado por bajuladores. Paulinho da Força já reclamou. Kassab já criticou. E até Luísa Mell, ativista da causa animal e historicamente alinhada com pautas progressistas, se afastou.

Luísa Mell nunca foi uma figura ligada à política partidária, mas sempre teve trânsito no campo progressista, é uma referência na defesa mais estridente dos pets. Sua crítica a Lula veio após o presidente criticar o Ibama. Se até ela, que normalmente evita disputas ideológicas, fez questão de expor sua frustração, significa que o desgaste do governo extrapolou o campo da política tradicional.

A questão agora é: quem mais vai pular fora? E mais importante: quanto tempo até Lula decidir que precisa encontrar um bode expiatório dentro de casa? Quando ele perceber que sua popularidade não melhora, será que a culpa vai cair sobre Janja?

O tempo dirá, mas o cenário não é nada animador para o presidente. Lula já enfrentou crises antes, mas desta vez, ao contrário de outras ocasiões, ele não tem mais controle sobre a narrativa. O desgaste só aumenta e os próximos dois anos prometem ser difíceis.

Foto: André Borges / EFE.

Derrota Anunciada

Lula chegou pela terceira vez à Presidência da República embalado na rejeição colhida por Bolsonaro em várias frentes, porém, sobretudo durante a pandemia. Costumo dizer que Lula não venceu as eleições de 2022, mas Bolsonaro que perdeu, uma frase que explica muito da dinâmica daquela campanha. Quando miramos no cenário que se desenha para 2026, vemos Lula repetir os erros de Bolsonaro, colocando-se em especial posição para ser o derrotado pelas urnas, encerrando sua carreira política.

O Presidente chegou ao Planalto a bordo do que se convencionou chamar de “frente ampla”, ou seja, uma união de partidos, líderes e políticos de centro que no passado foram seus adversários, mas que diante do cenário, preferiram apoiar seu nome. Ao vencer, tinha tudo para construir um governo de coalizão e terminar sua vida política como uma liderança política reconhecida, mesmo que sob a sombra de seus erros e das comprovações de corrupção que envolvem seus governos, aliados e a si mesmo.

O caminho escolhido, entretanto, foi outro. Lula colocou em prática aquela forma já ultrapassada de fazer política, acrescentando pitadas de seus antigos vícios, abrindo um espaço demasiado grande para partidos pequenos e um feudo enorme para os petistas. O resultado, é claro, foi um governo disfuncional, sem base no Congresso Nacional, com políticas que se afastaram do centro, mostrando um governo torto, totalmente desconectado dos votos essenciais que lhe entregaram a vitória de 2022.

Esta dinâmica está exposta nas pesquisas de opinião. Atualmente Lula vive seu pior momento desde que assumiu a Presidência da República em 2003. Sua popularidade despencou para 24%, uma queda de 11 pontos em 2 meses, algo inédito. A reprovação de sua gestão também subiu, de 34% para 41%. Sua popularidade caiu 15 pontos entre os mais pobres e foi acentuada também no Nordeste. Tudo isso se torna ainda mais impactante quando 62% da população não deseja ver Lula como candidato à reeleição.

Em seu terceiro governo há um Lula ultrapassado, seja diante da tentativa de reeditar políticas antigas ou envelopar iniciativas superadas de outrora. Diante de novos desafios são necessárias novas estratégias e o governo parece parado no tempo, incapaz de enxergar uma política fiscal consistente, reduzir gastos públicos, controlar as críticas de um petismo atrasado que ainda vive preso nos anos 1980 e levar racionalidade para a máquina pública.

Além disso, Lula não tem o mesmo carisma do passado diante das massas, produz gafes em série e gera pouco efeito positivo. Isto ficou exposto na carta enviada pelo seu amigo, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro: “O Lula do 3° mandato, por circunstâncias diversas, políticas e principalmente pessoais, é outro. Não faz política. Está isolado. Capturado. Não tem ao seu lado pessoas com capacidade de falar o que ele teria que ouvir. Não recebe mais os velhos amigos políticos e perdeu o que tinha de melhor: sua inigualável capacidade de seduzir, de ouvir, de olhar a cena política”. O diagnóstico é preciso e irretocável.

Lula caminha para uma derrota anunciada, aquele que será vencido em 2026, independente de quem triunfe.

Foto: Roque de Sá.

O que eu disse ao relator de Liberdade de Expressão da OEA

Na última quinta-feira, participei de uma audiência fechada com o relator de Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Pedro Vaca Villareal, que visitou o Brasil esta semana para produzir um relatório.

Fui ouvida como representante do Instituto Direito de Fala, que fundei para reunir pessoas em defesa da liberdade de expressão após um episódio em que eu fui cerceada. Também participaram representantes de outras organizações como Instituto Brasileiro de Direito e Religião, Instituto Millenium e Instituto Liberal, entre outros.

Cada um de nós teve 5 minutos para sua exposição verbal. Nenhum tema foi proposto ou restrito, todos falamos livremente. Também tivemos a oportunidade de enviar documentos à relatoria para embasar nossos relatos.

Podíamos fazer nossas manifestações em inglês e espanhol normalmente. Quem optasse pelo português precisaria falar pausadamente. Optei pelo inglês. Segue a tradução para o português da minha fala.

Prezado Relator Especial para a Liberdade de Expressão, Pedro Vaca Villareal,

Meu nome é Madeleine Lacsko. Sou jornalista há 28 anos, colunista em O Antagonista, Gazeta do Povo e UOL News, escritora, autora do livro Cancelando o Cancelamento, e fundadora do Instituto Direito de Fala. Já fui assessora da presidência do Supremo Tribunal Federal e da comissão de Direitos  Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo. Fiz parte do time do Unicef que erradicou a pólio em Angola. Dedico minha carreira à defesa da liberdade de expressão e do livre debate, pilares essenciais da democracia.

Fui condenada judicialmente por um suposto ato de “transfobia”, embora este conceito não exista no ordenamento jurídico brasileiro. A decisão foi fundamentada exclusivamente em uma interpretação subjetiva da linguagem, baseada na ideia de que usei uma palavra “indevida” para me referir a um influenciador transgênero.

A expressão “cara” pode ser usada informalmente de forma neutra, mas no contexto específico em que utilizei, tratava-se da forma formal e necessariamente feminina. Ou seja, sequer houve “misgendering”.

A condenação não teve como base a lei brasileira, mas ideologias que dizem buscar justiça social. Isso abre um perigoso precedente para a violação do devido processo legal.

Além disso, o julgamento partiu do pressuposto de que eu teria uma intenção maliciosa ao usar essa palavra, sem que eu sequer tenha sido ouvida pelo Judiciário. Meu último recurso está no Supremo Tribunal Federal.

Além da total ausência de base legal, esse julgamento desconsidera completamente meus direitos como mulher, jornalista e cristã. Como qualquer cidadão em uma democracia, tenho o direito de expressar minha visão sobre a pauta trans e meu conceito de mulher.

Da mesma forma, tenho o direito, como cristã, de professar minha fé, o que inclui a concepção biológica e espiritual do que é ser mulher. No entanto, esses direitos sequer foram levados em conta na decisão, que me trata como se eu não fosse sujeito de liberdade de expressão, de crença e de opinião.

O Instituto Brasileiro de Direito e Religião elaborou um parecer sobre o meu caso porque tem enfrentado desafios semelhantes na área de liberdade religiosa. Há uma tendência crescente de decisões judiciais que ignoram o arcabouço legal, amparando-se em conceitos fluidos que podem ser interpretados de forma arbitrária. Como alerta o parecer do IBDR: “O Judiciário, ao se afastar da legislação objetiva e basear-se em doutrinas ideológicas, coloca em risco não apenas a liberdade de expressão, mas a própria segurança jurídica”.

A tentativa de calar a imprensa não começou agora.

Lembro de um episódio emblemático há 21 anos, quando o presidente Lula tentou expulsar do Brasil o correspondente do New York Times Larry Rohter por não gostar de uma reportagem.

A perseguição vai além da censura direta. No Brasil, é comum que políticos peçam a demissão de jornalistas, promovam campanhas difamatórias e incitem seguidores a hostilizar e ameaçar profissionais da imprensa e suas famílias.

O Poder Judiciário costumava ser o anteparo aos arroubos autoritários dos políticos. Há um ponto de inflexão quando se torna parte dessa engrenagem.

O marco importante é a censura direta à Revista Crusoé, em 2019, pela reportagem O Amigo do Amigo do Meu Pai, acerca de um ministro do STF. Essa decisão marca uma guinada na cultura judicial, consolidando um ambiente onde a censura se tornou ferramenta recorrente. O deputado Marcel Van Hattem já apresentou esse caso à Relatoria, e a própria Crusoé dará seu testemunho.

A censura também se estendeu ao humor. Humoristas como Léo Lins e Danilo Gentili acumulam dezenas de processos judiciais simplesmente por fazerem piadas.

O caso de Léo Lins é especialmente emblemático: ele teve um especial de stand-up banido, suas redes sociais suspensas, foi proibido de deixar o estado de São Paulo e não pode mais fazer piadas com uma lista de temas elaborada pela Justiça. Shows seus foram cancelados mais de 50 vezes porque políticos locais se sentiram ofendidos. Hoje, ele enfrenta cerca de 80 processos, sendo 20 deles criminais.

Há uma tendência crescente e preocupante. Vale ressaltar que a Justiça brasileira tem não apenas o poder de censurar, mas também de aplicar multas de milhares de dólares e bloquear automaticamente contas bancárias dos réus em punições. É um cenário que tem sido muito eficaz no incentivo à autocensura e ao silêncio. Inclusive das vozes dissonantes dentro do próprio judiciário.

Diante desse cenário, fundei o Instituto Direito de Fala. Nosso objetivo é reunir e apoiar aqueles que compreendem que a liberdade de expressão é a base para todas as outras liberdades. Sem ela, não há debate, não há pluralidade, não há avanços sociais.

O que está em jogo não é apenas minha liberdade de expressão, mas o próprio alicerce da democracia brasileira. Quando o Judiciário abandona a imparcialidade para agir como guardião de ideologias específicas, instala-se um regime onde o arbítrio se sobrepõe ao direito, e a intimidação substitui o debate.

Hoje sou eu a condenada por um crime inexistente, mas amanhã qualquer voz dissonante pode ser silenciada da mesma forma. A liberdade não é um privilégio concedido pelo Estado, é um direito inalienável de cada cidadão. Permitir que ela seja corroída pelo medo e pela censura é aceitar a morte da democracia em silêncio.

Muito obrigada

A Estrela Decadente

Parece contraditório, mas o Partido dos Trabalhadores (PT) chegou ao poder pela quinta vez depois de atravessar um longo período de declínio. 

Seu candidato a presidente foi vitorioso na eleição de 2022, não pela força do partido, mas porque o desastre do governo anterior possibilitou a formação de uma ampla frente de oposição.

Certamente, mesmo em declínio, a força político-eleitoral do PT era ainda significativa; e seu candidato, Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo desgastado, não encontrava na oposição nenhum nome que com ele ombreasse em popularidade para enfrentar o então presidente Jair Messias Bolsonaro.

O PT e o presidente Lula não souberam, porém – passados já dois anos, metade do mandato –, aproveitar a reconquista da Presidência da República para recuperarem a força, simbolismo e prestígio que tiveram na aurora do partido. Pelo contrário, retornaram à rota de declínio. 

Todavia, se não é provável, também não é impossível que Lula seja reeleito em 2026; isto porque, se o governo Lula-PT é ruim, a oposição não deixa de ser também uma lástima. 

É tão desoladora a situação que, em lugar de um equilibrado centro-democrático, temos uma coisa chamada “centrão”, aglomerado fisiológico de parlamentares desvairados por dinheiro, o qual abocanham especialmente através de emendas secretas, semi secretas ou escandalosamente abertas.

A redemocratização

Há 45 anos – 1980 –, o Partido dos Trabalhadores nascia como uma estrela fulgurante para a esquerda brasileira, com grande força de atração e equivalente força de propulsão. 

O ambiente era propício para o surgimento de um novo partido de esquerda. A ditadura militar, ainda vigente, estava moribunda. 

Na verdade, não existia mais ditadura: a ‘Anistia Ampla, Geral e Irrestrita’ de 1979, promulgada pelo presidente General Figueiredo, tornara a redemocratização irreversível e as multidões ocupavam as ruas, sem enfrentar repressão, exigindo a realização de eleição para presidente da República, com a campanha das “Diretas já”

Se essa campanha não logrou vitória formal no Congresso Nacional, ao menos instituiu a democracia diretamente no espaço público: nas ruas, praças e botequins. Corria pelo Brasil uma verdadeira euforia democrática. 

Embora tenha derrubado a emenda das eleições diretas para presidente (emenda Dante de Oliveira), o Congresso Nacional viu-se forçado a caminhar para a eleição de um presidente da República civil, tendo o Colégio Eleitoral elegido, em janeiro de 1985, Tancredo Neves (que morreu antes da data da posse, o que levou à posse do vice-presidente eleito, José Sarney.

Lula e o PT

Gestado nesse contexto de lutas contra a ditadura militar brasileira e clima de redemocratização, o PT teve como suporte principal uma forte base sindical montada a partir do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, presidido pelo operário/torneiro mecânico (licenciado por acidente) Luiz Inácio da Silva (ainda sem o famoso apelido acrescido ao nome em cartório). 

A essa base vieram a se unir contingentes expressivos de diversos segmentos sociais contestatórios, com destaque para a esquerda remanescente das lutas estudantis de 1968 e guerrilheiros que sobreviveram aos “anos de chumbo”, assim como comunidades eclesiais de base da Igreja católica e o movimento estudantil, fortemente reativado por essa época.

Quando aconteceu a almejada eleição direta para presidente, em 1989, o PT já estava forte o suficiente para ir ao segundo turno. 

Leonel Brizola (PDT) era tido como favorito naquela eleição, mas cresciam o nome de Lula e de um jovem político de Alagoas, até pouco tempo nacionalmente desconhecido, chamado Fernando Collor de Mello.

Collor venceu, então, a primeira eleição presidencial pós-redemocratização, mas realizou um governo tão estúpido e desastroso que não demorou a ser afastado por impeachment. 

Como se sabe, a persistência petista levaria Lula a Presidência da República na eleição de 2002, quando derrotou José Serra (PSDB).

Petismo, lulismo e marxismo

Com a entrada trepidante de Lula no cenário nacional através da enorme repercussão das greves de fábricas no ABC paulista nos anos 1970, o fato de um operário ser alçado à condição de grande liderança fascinou a intelligentsia marxista brasileira. 

Ainda antes da fundação do Partido dos Trabalhadores, um enxame desses intelectuais passou a cercar o futuro presidente do PT e doutriná-lo com o extrato do pensamento de Marx, Engels e Lênin. 

Pouco afeito à leitura, Luiz Inácio não teria como compreender muito bem a complicadíssima ciência do materialismo histórico e dialético, mas o componente do autoritarismo leninista (bolchevismo) foi bem assimilado. 

É certo que Lula desenvolveu forte simpatia, apego e estima por ditaduras de esquerda; como são os casos notórios da ditadura de Cuba (desde os tempos de Fidel Castro) e da ditadura da Venezuela (desde os tempos de Hugo Chaves), dentre outras. 

Lula não apenas nutriu simpatia por tais regimes, como também os financiou generosamente durante o exercício dos seus passados mandatos.

Fora essa paixão ideológica por ditaduras, Lula é tido e havido como um político pragmático, capaz mesmo de fazer alianças espúrias para se dar bem. 

O dono do PT

Nas pesquisas que andei fazendo para reconstituir o histórico do PT, conversei com alguns militantes dos primórdios do partido, que participaram ativamente da sua fundação em algumas cidades do Nordeste e que tiveram cargos de direção em alguns diretórios estaduais e municipais. 

Explicaram-me eles que, naqueles tempos, havia democracia interna; a democracia partidária era a tônica. 

Lula era, naturalmente, uma liderança respeitada, mas muito longe de ser o autocrata que, segundo alguns ex-petistas com quem conversei, passou a submeter o partido ao seu inteiro talante. 

Como se diz e é comum em outros partidos brasileiros: hoje o PT tem dono. 

Um dos motivos pelo qual o governo Lula vai mal é esse: ele não conta com um partido no qual possa pensar coletivamente, discutir, aprimorar projetos e ideias ou encontrar quem salutarmente o questione. A única instância de discussão de Lula parece ser ele mesmo; e agora Janja.

A corrupção petista

Nos primeiro e segundo mandatos de Lula, o governo petista atolou-se em corrupção. Nos dois mandatos de Dilma Rousseff, o governo petista atolou-se mesmo na incompetência. 

O desastre do segundo mandato de Dilma levou ao seu impeachment. E é preciso frisar bem: foi um legítimo processo de impeachment que afastou a presidente Dilma, não foi um “golpe”, como apregoa a narrativa dos inconformados petistas; do mesmo modo que não foi golpe o impeachment de Collor de Mello.

A corrupção desencadeada nos primeiros governos de Lula geraram processos que o levaram à cadeia após julgamentos referendados pelo Supremo Tribunal Federal (STF); o mesmo Supremo que viria a libertá-lo, mudando suas interpretações e permitindo sua candidatura em nova eleição.

Sem entrar na análise dessas decisões erráticas do STF, fato é que somente um líder com grande carisma e popularidade poderia voltar ao poder, pelo voto, após tamanhos descaminhos.

Todavia, parece-me que Lula e seu partido vão chegando ao fim da linha. Lula, pelos descaminhos políticos e também pela idade. E o PT porque, ao deixar-se submeter à autocracia de Lula e insistir nas ideias autoritárias de uma esquerda que fede a mofo, tende a morrer com ele.

Lula e o Centrão

Lula, hoje, enquanto lida com o seu próprio partido com menosprezo e rigor de autocrata, submete-se, no Congresso Nacional, às artimanhas e chantagens do Centrão.

Os lulistas mais devotos tentam justificar essa pusilanimidade do presidente da República diante dos abusos da ala parlamentar fisiológica com a desculpa de que, sem isso, a governabilidade perece. 

Creio que o PT de outrora, de antes do primeiro mandato corrompido de Lula, teria ocupado as ruas para sustentar seu programa de esquerda, em vez de ceder às chantagens dos congressistas oportunistas de plantão. 

A velha esquerda e a nova esquerda

De um modo geral, a forma mais destacada da política brasileira, nos últimos anos, tem sido a lacração na internet. E esse é mais um motivo do declínio de Lula e do PT: ambos são analógicos. 

Na verdade, a esquerda brasileira é, em sua maioria, velha, analógica e melancólica. Penso que, nessa condição, estão alguns dos esquerdistas mais respeitáveis (nessa categoria de respeitáveis não incluo Lula, que é só velho e analógico; penso aqui em outras personalidades). 

Simpatizo um pouco com a velha esquerda romântica, desiludida e nostálgica, que lutou contra a ditadura, mas antipatizo profundamente com a nova esquerda que hoje faz barulho nas redes sociais. 

A nova esquerda é essa turma woke, identitária, extremista, fanática, meio demente, nutrida por uma estúpida ideologia anti-ocidental.

Enfim, entendo que o PT acabou e que o lulopetismo é uma política em fase de extinção. O que não me entristece. Entristece-me, porém, não ver algo de animador no horizonte. Até o momento, não consigo ver luz no fim do túnel; nem à esquerda, nem à direita.