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Quantas ditaduras no mundo de hoje são de extrema-direita?

Eis um levantamento de pouco mais de quarenta principais (incluindo todas as mais crueis) ditaduras atuais do mundo para verificar quantas podem ser consideradas de extrema-direita. É uma refutação da falsa alegação de que a extrema-direita é a única (ou a maior) ameaça atual à democracia no mundo.  O assunto já foi tratado em outro artigo desta revista, intitulado A extrema-direita como único inimigo da democracia.

Por certo os populistas-autoritários ou nacional-populistas iliberais (como Orbán, Erdogan, Trump, Vance e Bannon, Salvini e Meloni, Le Pen, Wilders, Farage e os ex-militantes do Brexit, Chrupalla, Weidel e Gauland, Riikka Purra, Abascal, Ventura, Bukele, Bolsonaro etc.) – a maioria dos quais dita de extrema-direita – são, sim, uma ameaça à democracia, mas não a única (nem a principal). Ademais, só três deles (Bukele, Erdogan e Orbán) governam países que têm regimes que podem ser considerados autoritários. Não tem nem comparação com o número de governantes de ditaduras que se declaram de esquerda ou estão na órbita de influência de regimes que se declaram de esquerda.

Trump, Vance e Bannon são nacional-populistas (de extrema-direita) mas ainda não estão no governo dos EUA, que seguem sendo uma democracia. Se Trump vencer as eleições de 2024 haverá uma significativa mudança na correlação de forças no âmbito mundial, mas os EUA continuarão sendo – nos curto e médio prazos – uma democracia.

Le Pen é nacional-populista, mas não governa a democracia liberal francesa. Wilders, idem, mas não governa a democracia liberal holandesa.

Farage e os ex-militantes do Brexit aumentaram sua representação política nas ultimas eleições, mas estão longe do governo no Reino Unido, uma democracia liberal.

Chrupalla, Weidel e Gauland, da Alternativa para a Alemanha, não estão no governo da Alemanha, uma democracia liberal.

Rikka Purra, do Partido dos Finlandeses, que pode ser considerado de extrema-direita, não governa a Finlândia, uma democracia liberal.

Abascal e Ventura não governam as democracias espanhola e portuguesa.

Por fim, Bolsonaro já saiu do governo do Brasil e está inelegível até 2030.

Além de Bukele, Erdogan e Orbán sobrou apenas Meloni, que poderia ser considerada nacional-populista e governa de fato a Itália, cujo regime, entretanto, continua sendo democrático liberal.

A seguir vamos mostrar que as ameaças concretas à democracia partem muito mais das ditaduras do que de forças políticas nacional-populistas de oposição que parasitam democracias liberais. Isso é tão óbvio que nem seria necessário argumentar. Ditaduras (autocracias fechadas ou eleitorais, regimes autoritários ou não-livres) são o oposto de democracias.

Partimos da classificação do V-Dem (Universidade de Gotemburgo) de todas as autocracias fechadas (incluindo algumas autocracias eleitorais) que é, em grande parte, coincidente com os países não-livres da Freedom House e com os regimes autoritários da The Economist Intelligence Unit. Esses são os três mais reconhecidos centros de pesquisa que monitoram os regimes políticos no mundo.

Abaixo vai a lista de ditaduras (em ordem alfabética), seus governantes atuais, os partidos a que pertencem e suas percebidas orientações políticas:

Afeganistão | Hibatullah Azhundzada e seu partido fundamentalista Talibã não podem ser considerados de extrema-direita. O jihadismo ofensivo islâmico não pode, a rigor, ser considerado de direita ou esquerda – ainda que seja um adversário das democracias liberais.

Arábia Saudita | Mohammad bin Salman é o chefe da corte real da Casa de Saud. Não há partidos políticos no país. O staff do Estado é fundamentalista islâmico, influenciado pela seita dos wahhabbis, uma corrente sunita geralmente conhecida pelo nome salafista. Não tem sentido classificar tal regime como de direita ou de esquerda, embora o fundamentalismo islâmico seja contrário às democracias liberais. A Arábia Saudita também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Azerbaijão | Ilham Aliev e seu Partido Novo Azerbaijão orbitam na esfera de influência da ditadura russa. Mas não podem ser classificados como extrema-direita.

Barein| Salman bin Hamad bin Isa Al Khalifa é o primeiro-ministro do Barein, uma monarquia islâmica sem partidos. O regime não pode ser classificado como de esquerda ou de direita.

Bielorrússia | Aleksandr Lukashenko e seu Partido Independente da Bielorússia não são de extrema-direita. O regime da Bielorrússia  faz parte do eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã etc.) articulado contra as democracias liberais.

Burkina Faso | Ibrahim Traoré e seu Movimento Patriótico para a Salvaguarda e Restauração (a junta militar que governa o país depois de um golpe de Estado de 2022) não podem ser classificados como direita ou esquerda.

Camboja | Hun Sen – um ex-comandante do Khmer Vermelho que mudou de lado – que governa o Camboja há quatro décadas, e o seu Partido Popular do Camboja, alinharam a sua ditadura à ditadura chinesa. Obviamente, não são de extrema-direita.

Catar | Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani é uma monarquia absolutista islâmica. Não tem partidos. A família Al Thani governa o país com mão de ferro desde 1825. Não tem o menor sentido classificar esse regime como extrema-direita. Aliás, o Catar dá abrigo à direção atual do Hamas e financia esse grupo terrorista.

Chade | Mahamat Déby é o chefe da junta militar que governa o Chade. Ele e seu Movimento de Salvação Patriótica estão sendo capturados pela ditadura russa de Vladimir Putin. Tal como no caso da Rússia, não faz sentido classificá-los como direita ou esquerda.

China | Xi Jinping e seu Partido Comunista da China não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê. A China também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Coreia do Norte | Kim Jong-un e seu Partido dos Trabalhadores da Coreia não são de extrema-direita.Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

Cuba | Díaz-Canel e seu Partido Comunista de Cuba não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

El Salvador | Nayib Bukele e seu partido Nuevas Ideas são nacional-populistas ou populistas-autoritários que podem, sim, ser classificados como de extrema-direita. Antes Bukele integrou a FMLN, Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional, de extrema-esquerda.

Emirados Árabes Unidos | Xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum é um monarca absolutista de uma ditadura islâmica (sunita). Como em outros casos de regimes autoritários islâmicos não faz muito sentido classificá-lo como de direita ou de esquerda. Mas os EAU estão no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Eritreia | Isaias Afewerki governa um Estado de partido único na Eritréia. Ainda que não faça muito sentido classificar seu regime totalitário como sendo de direita ou de esquerda, o ditador está na esfera de influência de autocracias (como a Turquia e a Venezuela) e de regimes eleitorais parasitados por governos populistas (como o Brasil).

Essuatini | Mswati II (o rei), Ntfombi (a rainha-mãe) e Russell Diamini (o primeiro-ministro) governam essa ditadura africana. Os partidos políticos são proibidos no reino de Essuatini (antiga Suazilândia). Não há política propriamente dita no país. Não faz sentido classificar o regime como de direita ou de esquerda.

Gaza | Ismail Haniya e Yahya Sinwar e seu partido, o Hamas, embora de orientação sunita, estão a serviço do regime teocrático xiita iraniano na sua ofensiva contra as democracias liberais (em especial as de Israel e dos EUA). São hoje teleguiados pelo eixo autocrático para fazer o serviço sujo de inflamar as populações contra a democracia. Não podem ser classificados como de extrema-direita, pelo contrário: são apoiados pela esquerda (populista, classista e identitarista) em todo o mundo.

Guiné Equatorial | O ditador Teodoro Obiang Nguema Mbasogo e seu Partido Democrático da Guiné Equatorial estão sendo caputurados pela ditadura chinesa. Obviamente não pode ser classificado como de extrema-direita.

Haiti | É uma autocracia mergulhada no caos político e social. Não se sabe exatamente quem governa o país.

Hungria | Viktor Orbán e seu partido Fidesz governam a autocracia eleitoral húngara, chamada de “democracia iliberal”. Aliadas de Vladimir Putin, as forças políticas dominante na Hungria são, claramente, populistas-autoritárias ou nacional-populistas de extrema-direita.

Iémen | O Iémen é um país em guerra civil onde se configura dualidade de poder. Os terroristas Houthis, financiados pelo Irã, controlam parte significativa do país. Mohammed Ali al-Houthi, chefe do comitê revolucionário supremo, é um vassalo do eixo autocrático na sua investida contra as democracias liberais.

Irã | Ali Khamenei e seu partido Associação dos Clérigos Combatentes não podem ser considerados de extrema-direita. O Irã faz parte do eixo autocrático (juntamente com Rússia, China, Coreia do Norte – todos autodeclarados de esquerda), articulado contra as democracias liberais. O Irã também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Jordânia | O rei Abdullah II bin Al Hussein controla a monarquia jordaniana de devoção islâmica sunita. Não faz sentido classificar o regime como de extrema-direita.

Kuwait | Mishal Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah é o atual Emir do Kuwait, uma ditadura islâmica. Não faz sentido classificar o regime monárquico como extrema-direita.

Laos | Sonexay Siphandone e seu Partido Popular Revolucionário do Laos (PPRL) que governam essa república socialista de partido único estão bem longe de ser de extrema-direita. Pelo contrário, historicamente são de esquerda.

Líbia | Mohamed al-Menfi e Abdul Hamid Mohammed al-Dabaib com seu movimento Libya al-Mustakbal tentam controlar o país. É uma ditadura islâmica (sunita). Vários grupos jihadistas e tribais controlam partes do país. Não cabe classificar o regime como extrema-direita.

Mali | Choguel Kokalla Maïga e seu Movimento Patriótico pela Renovação governam o país. O Mali está sendo capturado pela ditadura russa (o que também está ocorrendo com Mauritânia e Niger).

Marrocos | O rei Maomé VI e o primeiro-ministro Aziz Akhannouch e seu Partido Nacional dos Independentes controlam essa monarquia islâmica.

Myanmar | Min Aung Hlaing e seu Partido de Solidariedade e Desenvolvimento da União (USDP), ligado aos militares que desfecharam um golpe de Estado, controlam essa ditadura asiática.

Nicarágua | Daniel Ortega e seu partido, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

Omã | Haitham bin Tariq Al Said é o sultão da monarquia absolutista islâmica que governa Omã.

Rússia | Vladimir Putin e seu partido Rússia Unida são nacional-populistas, mas não podem ser considerados de extrema-direita. Pela simples razão de que apoiam todas as ditaduras que se declaram de esquerda. A Rússia também está no BRICS, uma articulação política de autocratas e populistas de esquerda disfarçada de bloco econômico.

Síria | Bashar al-Assad e seu Partido Socialista Árabe Baath não podem ser considerados de extrema-direita. O regime ditatorial sírio é apoiado ostensivamente pela Rússia e faz parte do eixo autocrático articulado contra as democracias liberais.

Somália | Hassan Sheikh Mohamud e seu Partido da União para Paz e Desenvolvimento, anterior Partido Paz e Desenvolvimento (ligado à Irmandade Muçulmana), são operadores de um regime islâmico.

Sudão | O general Abdel Fattah al-Burhan e seu partido Independente são islâmicos militarizados.

Sudão do Sul | Salva Kiir Mayardit e seu partido Movimento Popular de Libertação do Sudão são aliados da ditadura de Angola, que se declara de esquerda (do MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola). Não podem ser considerados de extrema-direita.

Tajiquistão | Emomali Rahmon, Kokhir Rasulzoda e seu Partido Democrático Popular do Tajiquistão são nacionalistas, estatistas e autoritários. Orbitam na área de influência da ditadura russa e se alinham ao Partido Comunista Chinês. Nada, portanto, de extrema-direita.

Turquemenistão | Serdar Berdimuhamedow e seu Partido Democrático do Turquemenistão – no poder  há mais de trinta anos – têm profundas raízes comunistas. O partido foi liderado pelo ex-líder do Partido Comunista, Saparmyrat Nyýazow, desde a dissolução da União Soviética. São populistas que orbitam na área de influência da ditadura russa. Nada de direita.

Turquia | Recep Tayyip Erdoğan e seu Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP) poderiam, com algum esforço, ser considerados de extrema-direita (ou seja, nacional-populistas ou populistas-autoritários). O AKP é defensor do neo-otomanismo e do nacionalismo econômico. Politicamente, se alinha ao eixo autocrático contra as democracias liberais.

Uzbequistão | Shavkat Mirziyayev e seu Partido Liberal Democrático do Uzbequistão são nacionalistas que orbitam na área de influência da ditadura russa. Têm uma ideologia que se poderia considerar de direita na medida em que esposa o liberalismo-econômico, mas não o liberalismo político, quer dizer, a democracia. Esse partido surgiu de um movimento de empreendores e empresários para dar a aparência de multipartidarismo, mas na verdade é controlado pelo Partido Democrático Popular.

Venezuela | Nicolás Maduro e seu Partido Socialista Unido da Venezuela não são de extrema-direita. Eles se declaram de esquerda. E o nome e a história do partido estão dizendo por quê.

Vietnam | Pham Minh Chính é o chefe do Partido Comunista do Vietnam. Não é necessário dizer que não têm nada de direita. O Vietnam é uma ditadura socialista unitária unipartidária.

Um esboço de classificação

1 – De extrema-direita mesmo (entendendo-se por isso os populistas-autoritários ou nacional-populistas iliberais) temos três governantes de regimes autocráticos

Nayib Bukele (de El Salvador), Viktor Orbán (da Hungria) e Recep Erdoğan (da Turquia).

2 – De esquerda ou extrema-esquerda temos (historicamente ou de forma declarada) sete governantes de regimes autocráticos

Xi Jinping (da China), Kim Jong-un (da Coreia do Norte), Díaz-Canel (de Cuba), Sonexay Siphandone (do Laos), Daniel Ortega (da Nicarágua), Nicolás Maduro (da Venezuela), Pham Minh Chính (do Vietnam).

3 – Os ditadores na esfera de influência das ditaduras russa e chinesa (ou do eixo autocrático – incluindo o Irã) governam cerca de vinte regimes autocráticos

Além de todas as sete ditaduras declaradamente de esquerda, temos Ilham Aliev (do Azerbaijão), Aleksandr Lukashenko (da Bielorrússia), Hun Sen (do Camboja), Mahamat Déby (do Chade), Ismail Haniya e Yahya Sinwar (de Gaza), Teodoro Obiang Nguema Mbasogo (da Guiné Equatorial), Choguel Kokalla Maïga (do Mali), Vladimir Putin (da Rússia), Bashar al-Assad (da Síria), Salva Kiir Mayardit (do Sudão do Sul), Emomali Rahmon e Kokhir Rasulzoda (do Tajiquistão), Serdar Berdimuhamedow (do Turquemenistão), Shavkat Mirziyayev (do Uzbequistão).

4 – Os ditadores islâmicos governam cerca de quatorze regimes autocráticos

Hibatullah Azhundzada (do Afeganistão), Mohammad bin Salman (da Arábia Saudita), Salman bin Hamad bin Isa Al Khalifa (do Barein), Mohammed bin Abdul Rahman Al Thani (do Catar), Xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum (dos Emirados Árabes Unidos), Mohammed Ali al-Houthi (do Iémen), Ali Khamenei (do Irã), Abdullah II bin Al Hussein (da Jordânia), Mishal Al-Ahmad Al-Jaber Al-Sabah (do Kuwait), Mohamed al-Menfi e Abdul Hamid Mohammed al-Dabaib (da Líbia), Maomé VI e Aziz Akhannouch (do Marrocos), Haitham bin Tariq Al Said (de Omã), Hassan Sheikh Mohamud (da Somália), Abdel Fattah al-Burhan (do Sudão).

Note-se que muitos ditadores islâmicos estão na esfera de influência do eixo autocrático e, portanto, são adversários ostensivos das democracias liberais.

5 – Ditaduras não-classificadas

Burkina Faso, Eritréia, Essuatini, Haiti, Myanmar.

Um esboço de conclusão

O eixo autocrático é tendencialmente de esquerda ou extrema-esquerda e não de extrema-direita, ainda que dele participem regimes ditatoriais dúbios (como o russo) e islâmicos (como a teocracia iraniana, suas ditaduras aliadas, como a Síria e seus braços terroristas no Oriente Médio, na Ásia e na África). Ora, esse eixo, hoje, é a principal ameaça à democracia no mundo e não a chamada “internacional fascista” de extrema-direita (embora essa última também seja uma ameaça, porém menor ou secundária em comparação com a primeira).

Lula e a “reeleição” de Maduro na Venezuela

A questão com Maduro representa o maior desafio diplomático que o governo Lula já enfrentou. A resposta de Lula à eleição de Maduro talvez não signifique muito para a Venezuela, onde a situação é complicada, mas é de extrema importância para o Brasil. A maneira como o governo Lula se posicionará indicará o que ele considera ser uma democracia.

É claro que muitos dirão que já sabiam, que Lula sempre demonstrou suas intenções. Mas a situação agora é diferente. Classificar situações diferentes como iguais é um erro, e precisamos evitar sermos dominados por políticos que se aproveitam dessa confusão. No momento, a questão é: o que o governo Lula fará?

Lula conseguiu enviar um emissário para observar as eleições na Venezuela, algo que outros líderes, como Boric, Milei e Lacalle Pou, não fizeram. Lula declarou que se esforçaria para que o processo fosse democrático. No entanto, se seu enviado disser que as eleições não foram democráticas, isso representará uma derrota gigantesca para Lula, colocando-o em uma sinuca de bico.

Até agora, o comunicado do Itamaraty afirmou que o processo foi pacífico, o que contradiz os relatos de prisões, desaparecimentos e mortes. Lula ainda está indeciso sobre qual caminho tomar. Se optar por apoiar Maduro, ele pode se alinhar às grandes ditaduras, mas isso terá um preço alto para o Brasil, incluindo consequências econômicas e políticas.

Os países ditatoriais enfrentam bloqueios e boicotes internacionais que afetam profundamente suas populações. Caso o Brasil se alinhe a essas ditaduras, a população brasileira também sofrerá as consequências, incluindo aqueles que fazem oposição ao governo.

Portanto, a declaração de Lula sobre a Venezuela é crucial para nós. Se ele aceitar a fraude eleitoral na Venezuela, isso indicará os movimentos futuros do Brasil. Não importará se você gosta ou não de Lula; todos nós estaremos nesse barco. A questão agora é: o povo brasileiro tem maturidade para pressionar o governo a não reconhecer como democrática uma eleição fraudada ou preferirá ver o circo pegar fogo apenas para dizer “eu avisei”?

A Netwar

A netwar é a nova forma de guerra em uma sociedade-em-rede. Não é, como geralmente se pensa, a luta sem quartel travada nas mídias sociais (que dela representam apenas um pequeno aspecto). Antes de qualquer coisa, a netwar é social, não digital. É uma guerra que alcança as redes de pessoas (inclusive as que não interagem nas mídias sociais).

Para entender isso temos de voltar ao início da segunda década deste século, quando houve uma explosão das mídias sociais (incorretamente chamadas, no Brasil e em outros países, de redes sociais). Mídias sociais não são redes sociais. Poderiam ser, no máximo, ferramentas de netweaving. Acabaram, infelizmente, sendo o oposto ao conspirar contra as redes mais distribuídas do que centralizadas. Redes sociais são pessoas interagindo (enquanto estão interagindo) por qualquer meio (mídia). Não, não são ferramentas, dispositivos tecnológicos, sites, aplicativos, programas, algoritmos.

A netwar extravasa, não elimina, as guerras quentes (os conflitos armados que comumente chamamos de guerra). Aliás, o fato de um conflito ser armado só agrava circunstancialmente sua gravidade (pela ameaça mais premente às vidas humanas e dos demais seres vivos). Essencialmente, porém, ela altera o modo de regulação dos conflitos tornando-o menos pazeante e mais adversarial ou antagônico, ao produzir inimigos. Sim, a guerra, qualquer guerra, não é destruição de inimigos (um “efeito colateral”), mas construção de inimigos. Não importa se o inimigo da vez é a Eurásia ou a Lestásia, para lembrar o 1984 de George Orwell (1949). A guerra constroi inimigos como pretexto para reorganizar cosmos sociais, adotando padrões de organização hierárquicos regidos por modos de regulação autocráticos.

A netwar diminui os graus de distribuição das redes sociais e, consequentemente, altera a sua conectividade e a sua interatividade (ver imagem abaixo).

Imagem ilustrativa by Renato Cecchettini. Ao cortar conexões, a netwar multicentraliza a rede, quer dizer, converte uma rede mais distribuída do que centralizada em uma rede mais centralizada do que distribuída.

Não é “guerra de propaganda”. É reengenharia topológica. Ela multicentraliza (e estilhaça) as redes em miríades de esferas privadas opacas. É uma espécie de clustering fortemente restringido. A chamada tribalização, ou ilhamento em bolhas, é um dos efeitos observáveis dessa perturbação na fenomenologia da interação. A netwar desatalha, ou seja, corta as conexões (atalhos) entre os clusters. Ao fazer isso, conecta para dentro e desconecta para fora. E exclui nodos dos mundos sociais que habitavam. Com tudo isso, ela altera molecularmente comportamentos numa velocidade inimaginável, como numa reação em cadeia. Novos organismos sociais, malignos para a democracia, nascidos dessa operação, erigem-se em dias ou até em horas, talvez. Não há comparação com o tempo gasto para estruturar uma SS (Schutzstaffel) ou um Exército de Guardiães da Revolução Islâmica (Pásdárán), mais conhecido como Guarda Revolucionária Iraniana (IRGC).

A netwar que está em curso – na segunda guerra fria que já eclodiu – é muito mais perigosa para as democracias do que todas as guerras mundiais do século passado (a primeira e a segunda guerras e a primeiro guerra fria).

Toda realidade política sob a terceira onda de autocratização em que vivemos está afetada por essa segunda guerra fria que se instalou, notadamente, a partir da terceira década do século 21. Como foi dito, não é uma terceira guerra mundial, nos moldes das duas anteriores, nem é uma reedição da primeira guerra fria do século 20, porque não é uma guerra de blocos demarcados sobre a geografia do globo. Não é EUA x China no lugar de EUA x URSS. A segunda guerra fria é fractal, se instala dentro de cada país.

Um eixo autocrático, o mais poderoso já conformado em toda a história humana (Rússia, China, Irã, Coréia do Norte, Turquia, Hungria, Cuba, Venezuela, Nicarágua, além de várias outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África e de Bharat – este último ainda uma incógnita), está movendo uma netwar mundial, uma campanha de isolamento e exterminação das democracias liberais. E, para tanto, está conquistando o alinhamento de regimes eleitorais não liberais parasitados por populismos (México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, Indonésia et coetera).

Essa segunda guerra fria é uma guerra essencialmente política (ou antipolítica, quer dizer, contra a política: que não é guerra e sim evitar a guerra), com múltiplos eventos regionais de guerra quente (conflitos armados) que servem, fundamentalmente, para alimentar a netwar. A guerra do Hamas contra Israel não é uma guerra regional visando a alcançar objetivos militares locais, mas uma das espoletas para a explosão de uma netwar global. Mesmo que vença militarmente no terreno de Gaza, Israel já perdeu a netwar cujo palco é o mundo inteiro (e tanto é assim que se manifesta nos campi das universidades americanas, passando pelas ruas e praças de Paris, de Londres e de Bogotá, até chegar na avenida Paulista no Brasil). A guerra de Putin contra a Ucrânia não é só contra a Ucrânia, para conquistar território e se apropriar de recursos naturais, e sim contra a ordem liberal vigente na Europa e nos Estados Unidos. E ela é travada em todo lugar, até na Assembleia Geral da ONU e no seu Conselho de Segurança.

As três dezenas de democracias liberais que restaram não vão conseguir passar incólumes por essa nova guerra mundial que já está em curso: ao que tudo indica haverá declínio de direitos políticos e liberdades civis até mesmo nesses países de democracia mais avançada ou plena (União Europeia sem Hungria, Reino Unido, Noruega e Suíça, EUA, Canadá, Barbados, Costa Rica, Chile e Uruguai, Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia).

Não se sabe ainda o que acontecerá, mas já se pode apostar que não será bom para as democracias.

Novo recorde? Três processos da Lava Jato são extintos num único dia

A percepção de que as ações do Judiciário são políticas enfraquece a instituição e fortalece os políticos. É especialmente preocupante porque uma democracia pode sobreviver a políticos ruins, mas não a um Judiciário desacreditado. A confiança nos juízes é essencial. Os apressadinhos se metem a dizer que ninguém confia no Judiciário há muito tempo. É um erro.

Pense em qualquer caso de difamação que você vê em redes sociais. Quando a coisa desanda, o que o pessoal diz? “Esse merece um processinho”, ou seja, há confiança de que o Judiciário resolve. O mesmo vale para quando alguém te deve e não quer pagar, para violência doméstica, para casos trabalhistas. Fora do mundinho pantanoso dos políticos, o Judiciário é visto como quem vai defender o cidadão e fazer valer a lei.

No entanto, como explicar decisões judiciais inconsistentes em casos políticos? Por que o ministro Fachin vota para extinguir processos contra Renan Calheiros e Romero Jucá, mas vota para manter a pena de José Dirceu? A ministra Cármen Lúcia aliou-se a ele. Do outro lado estavam Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Quem seria o fiel da balança para decidir se a pena de Dirceu seria ou não extinta? Um ministro indicado por Jair Bolsonaro, Nunes Marques. E foi ele quem liberou o petista.

Casos como o da Odebrecht, onde delações premiadas resultaram na devolução de bilhões de dólares, agora são anulados. E não são casos apenas do Brasil, envolvem diversos países. Casos assim iniciam o falatório de que o Judiciário decide conforme convém, minando a confiança no sistema.

O Tribunal de Contas da União (TCU) também trouxe no mesmo dia um outro exemplo. O caso das jóias de Bolsonaro virou uma crise nacional, enquanto Lula foi liberado para ficar com as jóias, no caso relógios caríssimos, que recebeu na presidência. Como explicar isso para o cidadão comum?

Por enquanto, o Judiciário tem a sorte de duas coisas. A primeira é que as pessoas, por falso senso de elitismo, atribuem decisões a ministros e não à Corte. Para fingir que sabem do tema, dizem que “o ministro tal decidiu isso”, não que “o STF decidiu isso”. Se a Corte fosse contrária, reformaria a decisão rapidamente, simples assim. Mas o desconhecimento aliado à necessidade de demonstrar intimidade com a matéria pulverizam a responsabilização. A carga de imagem que cairia sobre o STF se divide em onze.

A segunda coisa é que os brasileiros ainda confiam no Judiciário para questões não políticas. O problema surgirá se essa contaminação política se expandir para outras áreas, ligadas à rotina do cidadão comum.

A democracia depende de um Judiciário forte e confiável. O Judiciário precisa agir com transparência e consistência para manter a confiança pública. Se falhar, veremos um aumento da descrença e da busca por soluções alternativas. Que soluções seriam essas? A julgar pela forma como o brasileiro vota, não dá para ser otimista.

“Civil salva civil” não é fake news. É força capaz de redimir o Brasil

O termo “democracia” tem sido tão maltratado, retorcido e descaracterizado em nossos dias que mal se consegue reconhecê-lo como um conceito que aponta para algo além de um vazio retórico instrumentalizado ao bel prazer da demagogia política de ocasião.

É preciso, às vezes, retroceder um pouco, retomar o fio da história das ideias a fim de repor o sentido ou reapresentar os sentidos das palavras que mobilizam as paixões políticas do nosso tempo.

Quando falamos democracia, nós, que não somos socialistas, referimo-nos a um regime político onde o poder está distribuído, difuso, pouco concentrado; falamos em uma forma de governo na qual o Estado deve não apenas equilibrar o exercício do seu poder entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, mas deve também ser fiscalizado e permanecer em diálogo aberto, transparente e regular com a sociedade civil que, por sua vez, deve ser ativa, dinâmica, criadora e livre.

Abismo entre Estado e sociedade civil

A tragédia que assolou o Rio Grande do Sul mostrou, no entanto, que, no Brasil, há uma enorme distância separando o cidadão comum das instituições; mostrou que há um abismo entre o Estado e a sociedade civil, sendo a profundidade desse abismo a medida da crise política que vivenciamos.

A democracia surge com a pólis, cidade-estado grega, na qual se configura também a política enquanto organização de indivíduos livres e pensantes que deliberam, decidem e agem tendo por finalidade a efetivação do bem comum e a manutenção de uma ordem social na qual cada um é livre para buscar por si mesmo aquilo que considera o seu próprio bem.

O bem comum é a razão de ser do Estado e a liberdade é a razão de ser da política. Quando o Estado não assegura o bem comum e, além disso, usa a política contra a sua razão de ser, que é a liberdade, estamos diante de uma grave crise.

Liberalismo e conservadorismo em tempos de crise

A corrupção que se generaliza à medida que o Estado se agiganta faz com que as doutrinas do Estado mínimo se tornem atrativas, embora a realidade brasileira, marcada pela pobreza, pela exploração e pela desigualdade seja campo pouco fértil para o florescimento de um pensamento liberal tout court. Apesar das adversidades, o pensamento liberal foi ganhando corpo e hoje é uma força política considerável no Brasil.

Da mesma forma foi ganhando espaço, no Brasil, a tendência conservadora, que valoriza o ser social em seus vínculos concretos de tradição, costumes, cultura, hábitos e sentimento de solidariedade; visão política que, por sua vez, cultiva prudência e ceticismo em relação ao valor e à eficácia de um planejamento estatal abstrato, desvinculado da experiência real da comunidade.

Esse liberalismo e esse conservadorismo difusos – talvez sequer bem compreendidos em seu sentido mais conceitual e rigoroso por aqueles que os expressam – deram um tom sui generis à ação e à narração daqueles que se prontificaram a ajudar o Estado a fazer o seu papel por ocasião do desastre ambiental que trouxe o caos ao Rio Grande do Sul.

Medo da ordem espontânea e censura

A força da mobilização espontânea da sociedade e o entusiasmo que acompanhou a descoberta dessa força foi tão grande que aqueles cujo poder só se perpetua devido à nossa dependência e subserviência sentiram-se ameaçados.

Enquanto a comunidade organizava forças-tarefa de voluntariado em redes solidárias para resgate e apoio aos atingidos pelo desastre natural, o Governo Federal organizava uma “Sala de Situação” para monitorar e censurar postagens nas redes sociais.

O Ministro-chefe da Secretária de Comunicação Social do Brasil, Paulo Pimenta, misturou opiniões críticas ao governo, desabafos exasperados de cidadãos comuns, versões de temas controversos, algumas notícias sabidamente falsas, listou tudo junto, assinou um ofício e encaminhou o material à Justiça para um novo inquérito das fake news, com uma recomendação suplementar de “botar para f…nos caras” e tratar como “quinta-coluna” e “criminosos” todos aqueles que ousaram expressar suas dúvidas a respeito da onipotência benéfica do Estado.

Poder e propaganda: Pimenta no JN 

Mas nem só de repressão vivem os regimes autoritários. A propaganda é alma do negócio. Sendo assim, vamos assistir ao mesmo ministro da Secom, Paulo Pimenta, ser entrevistado, ao vivo, em horário nobre, no Jornal Nacional, sobre o referido pedido de investigação das pessoas que supostamente divulgaram desinformação.

Justiça seja feita, Willian Bonner teve ao menos a hombridade de comentar que, entre as postagens encaminhadas por Pimenta para investigação, algumas não tinham “uma característica tão clara de fake news”, mas sim “a característica de uma crítica ou de um comentário crítico ao governo”.

Bonner não insistiu quando o ministro da propaganda do governo Lula sofismou em torno da pergunta sobre o critério usado para incluir tais postagens meramente críticas no referido inquérito. De toda forma, o experiente jornalista se equilibrou entre o dever de perguntar e a polidez de não tentar forçar o entrevistado a responder. 

O servilismo escancarado ficou por conta mesmo da moça do governo na Globo News, que causou indignação ao se referir de modo bastante infeliz à ação dos voluntários no Rio Grande do Sul.

A cauda longa do governo na Globo

Em vídeo bastante difundido nas redes sociais, Daniela Lima afirma que “eles” (referindo-se às pessoas que supostamente disseminam fake news) “usam vídeos falsos, descontextualizados, para dizer que quem tá salvando o Rio Grande do sul no braço são os voluntários, são os civis”.

No referido trecho do seu programa alegadamente jornalístico, a cheerleader do governo Lula pede — com o seu didatismo pedante, cheio de uma gesticulação peculiar — que o telespectador salve o termo “cauda longa”. Segundo a douta, a ideia de que “civil salva civil” seria essa tal cauda longa: “Essa ideia tá incutida em toda lá (sic). É para dizer que o Estado é lento, que o Estado não chega, que o Estado é preguiçoso, que o Estado nada está fazendo.

Se eu que estou aqui, no conforto da minha casa sequinha, longe das enchentes, fiquei indignada com esse vídeo, como não terão se sentido os civis que estão lá no Rio Grande do Sul, com o pé na lama e a mão na massa, resgatando pessoas e animais, recolhendo e distribuindo doações, levantando pontes e improvisando abrigos?

Não é justo que se hostilize o esforço de mobilização do Estado, pois os bombeiros, os policiais, os militares e todos os outros servidores públicos que foram enviados para a missão no Rio Grande do Sul são também brasileiros solidários, dispostos a estender a mão ao seu semelhante e a fazer o seu melhor. Mas tampouco é justificável o esforço autoritário na direção da censura ou o menosprezo pela mobilização autônoma da sociedade civil.

Fake news e democracia

Em um momento trágico e delicado, o governo Lula agiu para calar as críticas, sufocar a dissidência, perseguir opositores e tentar impedir que o povo tomasse consciência da sua própria força, da sua própria grandeza, da sua própria capacidade de se organizar de maneira espontânea, solidária e eficiente.

Fake news não é crime. É apenas um termo vago como tantos outros, manipulado pelos que detêm o poder e que farão de tudo para não perdê-lo, inclusive avançar a censura a fim de perpetuar esse status quo injusto no qual o Estado esmaga e rouba o pagador de impostos, ao mesmo tempo em que incha com as regalias concedidas à sua elite burocrática à custa de suor e sangue do brasileiro que se vê agora ameaçado no seu mais básico direito de reclamar.

Os que não somos socialistas jamais aceitaremos que, sob pretexto de defender a “democracia”, o Estado cale as críticas dos cidadãos com a alegação estapafúrdia de defender a honra das instituições.

A “honra” de uma instituição está no cumprimento fiel de sua função. Se as instituições brasileiras se desmoralizam pela falta de ética dos indivíduos que as compõem, não é silenciando as críticas e as denúncias que essas mesmas instituições serão preservadas.

O avanço da censura sob o pretexto de defesa da democracia é apenas um dos sinais de que a democracia está morrendo. Mas ela pode reviver. Porque a democracia não é apenas um regime político concreto; é também um ideal aberto de igualdade, liberdade e justiça que, em sociedades livres, pode ser concretizado em formas diferentes e novas.

Aqui no Brasil, nossa democracia pode ressurgir da lama, como aquela ponte erguida “no braço” pelos civis. 

“Civil salva civil” não é “cauda longa”, não é fake news; é o valor heroico da união e da solidariedade que pode redimir o Brasil.

Legado de Mandela

Aqueles que estudam ou já visitaram a África do Sul entendem o papel central de Nelson Mandela na reconstrução do país. Recém-saído do terrível modelo do apartheid, que vigorou durante décadas, o território poderia passar por um terrível conflito, algo como uma guerra civil, porém, a habilidade política de seus líderes e a ponderação, equilíbrio e sensibilidade de Mandela fizeram com que o país trilhasse um caminho virtuoso de entendimento e reconciliação.

Nações partidas por quaisquer motivos precisam lembrar dos valores que os unem e partir para duas palavras essenciais que fizeram de Mandela um estadista, alguém que não pensava na próxima eleição, mas nas próximas gerações: perdão e reconciliação. O caminho escolhido para liderar o país jamais passou pela raiva ou vingança, mas pelo sentimento de união capaz fazer com que as diferenças fossem vencidas.

O Brasil passa há tempos por outro caminho, algo que transita pela raiva e pelo ressentimento, com claras pitadas de vingança em ambos os lados do espectro político. Uma posição infantil que apenas apequena nossa nação e torna a adoção de soluções comuns um objetivo praticamente intransponível. Parece que depois de um elogiado processo de redemocratização que teve como ponto central a adoção do instituto da anistia, nosso país retrocedeu no caminho do amadurecimento democrático.

Atualmente valem mais as diferenças do que o diálogo, e a política se tornou um jogo no qual busca-se a qualquer custo a retribuição pessoal dos dissabores do passado. Neste tabuleiro, está em desvantagem aquele grupo fora do poder e a alternância destes no espectro político faz com que vivamos um duelo que serve apenas aqueles que bebem na fonte do ódio e da polarização.

Em 1990, Mandela deixava a prisão depois de 27 anos e ao invés de se vingar da injustiça sofrida, fez a opção de perdoar seus algozes como forma de criar um sentimento de reconciliação na África do Sul. Ele dizia que “se você quer fazer as pazes com seu inimigo, você tem que trabalhar com ele. Em seguida, ele irá tornar-se seu parceiro”. É possível fazer política por meio do ódio ou da reconciliação. Depende apenas de quem exerce o poder.

O Brasil está passando pela polarização, mas também pela opção do entendimento na última década e a escolha de ambos os lados têm sido um caminho oposto daquele percorrido por Mandela. Como vimos, quando o esforço passa pela reconciliação, o tecido social se reconstrói, a nação avança e progride. Quando o caminho fica preso nas diferenças e no discurso de ódio, apenas os políticos ganham. Turbinam seus votos, porém entregam o país ao caos.

Há tempos escrevo que a polarização é o grande mal que assola nosso país, que nos impede de avançar e construir as bases de uma grande nação. Mais do que isso, vem empurrando o Brasil para uma deterioração de sua democracia, nos fazendo flertar com os extremos e o risco de quebra institucional, estabelecendo parcerias com países que violam diretos e garantias fundamentais. A liderança que precisamos passa por alguém capaz de unir o país apesar das diferenças. O legado de Mandela é a maior prova que o perdão e a reconciliação são a única forma de unir um país, liderar e construir uma verdadeira nação.

Foto: Mustafa Hassona/Anadolu Agency via Getty Images

Não há solução no curto prazo para o conflito israelo-palestino

A defesa de Israel ao ataque terrorista do Hamas – atuando como ponta de lança do eixo autocrático (Rússia, Irã, Síria e outras tiranias do Oriente Médio, com o apoio da China e de governos populistas da Europa, América Latina e África, reunidos no BRICS e no Sul Global) em guerra (a segunda grande guerra fria) contra as democracias liberais – é legítima, independentemente de seu governo atual ser ou não ser democrático. Qualquer governo de Israel – autocrático ou democrático – teria de reagir, contra-atacando o Hamas, sob pena de deixar a sociedade israelense vulnerável a novos ataques terroristas. Todo problema aqui é como reagir.

O governo Netanyahu não é democrático. É populista-autoritário, abrigando muitos tarados supremacistas. Entretanto, o regime político de Israel é uma democracia liberal segundo todos os institutos que monitoram a democracia no mundo (V-Dem, Freedom House, The Economist Intelligence Unit etc.).

Ao reagir declarando imediatamente guerra total ao Hamas, bombardeando e invadindo militarmente o território de Gaza com efeitos colaterais inevitáveis, como a morte de civis não-combatentes, passíveis de serem explorados cinematograficamente, o governo Netanyahu caiu numa armadilha, talvez uma armadilha na qual não poderia não cair – mas caiu. De sorte que Israel perdeu a guerra de propaganda – uma guerra suja, com a divulgação diária, feita exclusivamente pelo Hamas, de proporções falsificadas de mulheres e crianças mortas em relação ao número total de mortos de palestinos em Gaza. Além disso, ficou vulnerável a acusações infundadas de terrorismo e genocídio.

Perdida a guerra da propaganda, o problema é o que fazer daqui para frente. A guerra quente, na sua forma atual, não pode ser eterna. Em algum momento deverá haver cessação das hostilidades generalizadas. Mas o governo Netanyahu dificulta – e no limite inviabiliza – qualquer negociação de paz. Por isso precisa ser derrubado pelos próprios democratas israelenses, por meio dos mecanismos legais disponíveis em seu regime democrático. De preferência, isso não deve ser feito só depois da fase atual da guerra (quente) e sim o quanto antes. Após a queda do governo Bibi, uma nova coalizão democrática no governo de Israel deve buscar ativamente a paz, entrando em negociação com as potências democráticas e com os países da região que não apoiam o Hamas. Fará parte necessariamente dessa negociação parar e começar a remover os assentamentos judaicos na Cisjordânia (ou negociar áreas ocupadas por troca de terras em outros lugares – quando isso for possível) e suspender a presença ostensiva de forças militares e policiais naquele território.

O Hamas, a Jihad Islâmica, a Frente de Libertação da Palestina, o Hezbollah e as milícias xiitas que atuam na Síria, no Iraque e no Iêmem sob o comando do Irã, não são players válidos nas relações internacionais porque são organizações terroristas. Com eles não se pode contar para a ereção de um Estado palestino que, ao lado do Estado de Israel, possa estabelecer a paz na região. Um Estado comandado por terroristas será um Estado fora da lei, um Estado de bandidos que viverá fustigando Israel, e não um Estado de direito – nem mesmo será um Estado autocrático que, por razões de realpolitik, não queira atacar Israel.

Gaza (visível) não é o Hamas, mas o Hamas é Gaza (invisível) porque está profundamente enraizado na sociedade palestina que ali vive a ponto de ter conseguido transformar o território da Faixa em um laboratório de experimentos exterministas e em uma fábrica de terroristas que visam a aniquilar Israel. O terrorismo em Gaza já se reproduz intergeracionalmente por meio das famílias, das escolas, das mesquitas e de entidades civis com a ajuda de militantes autocráticos homiziados em agências da ONU e em organizações humanitárias internacionais, com financiamento e apoio do Irã, da Turquia, sobretudo do Catar, e de outras autocracias da região.

A estratégia de matar os milhares de militantes do Hamas um-a-um é inócua no curto prazo. Cada líder morto será imediatamente substituído por outro líder. Até agora, pelos números fornecidos pelas próprias Forças de Defesa de Israel, só foram mortos 25% do presumível total de combatentes do Hamas. O Hamas é uma rede extensa e profunda. Israel não dispõe do tempo político necessário para consumar a operação de eliminar todos os nodos da rede (que perfazem cerca de 2% da população de Gaza) um-a-um, o que exigiria – numa avaliação otimista – oito meses de guerra na sua forma atual. Mas o Hamas ainda pode ser muito mais numeroso do que se estima (se considerarmos jovens menores de idade e simpatizantes que estão entrando continuamente no combate).

Por outro lado, matar no atacado os militantes e simpatizantes do Hamas para extinguí-lo completamente, exigiria arrasar a terra de Gaza eliminando boa parte da população palestina. Isso não foi feito até agora por Israel porque seria inaceitável. Pelos números (sempre falsificados) de mortos divulgados pelo próprio Hamas, morreram cerca de 1% de civis palestinos (incluindo combatentes do Hamas – que são considerados civis).

A rede de túneis que abriga a infra-estrutura bélica do Hamas pode ser destruida, mas a rede de túneis não é nada diante da rede de pessoas. Uma rede não é a coleção de seu nodos. Para eliminar o Hamas seria necessário quebrar as conexões entre os nodos dessa rede e cortar os atalhos entre os seus clusters (dentro e fora do território de Gaza). Isso não pode ser feito no curto prazo.

A única saída (provisória) é uma negociação bancada pelas potências democráticas em aliança realista com autocracias do Oriente Médio que não visam a destruição de Israel para impor um novo governo em Gaza e na Cisjordânia sem a participação de organizações terroristas – o embrião de um Estado palestino – que mantenha uma coexistência não-beligerante vigiada com o Estado de Israel.

Nos curto e médio prazos é altamente improvável que esse novo Estado palestino seja um Estado democrático de direito. Será mais uma ditadura, entre as quatorze que já existem no Oriente Médio (a única democracia da região seguirá sendo Israel por muito tempo). Uma saída mais definitiva talvez possa ser alcançada no tempo de uma geração, se as crianças palestinas que ainda vão nascer e as de hoje (menores de 12 anos) deixarem de ser doutrinadas por organizações do jihadismo ofensivo islâmico e por organismos internacionais disfarçados de humanitários.

Democracia e Investimento

O investimento direto estrangeiro se tornou importante diante de um mundo cada vez mais conectado e com economias interdependentes. Além de financiar ações seminais em áreas como inovação e desenvolvimento, é responsável por impulsionar setores essenciais da economia na construção de comunidades com enorme diferencial competitivo. Isto se torna ainda mais importante em países como o Brasil, que possuem forte déficit de poupança interna e se tornaram dependentes de capital externo para realização de investimentos

Ao mesmo tempo, com um Estado que direciona 92% dos recursos do setor público para custeio, fica claro que o governo brasileiro possui capacidade estatal de investimento limitada e muito menor do que as necessidades de nossa economia. Isto explica por que mais de 65% das obras do PAC são realizadas com dinheiro da iniciativa privada. 

Esta é a razão pela qual o governo brasileiro trabalha constantemente para atração de investimento direto estrangeiro para a ampliação de nossa economia. Nesta disputa externa em busca por recursos internacionais, diversos fatores surgem como elementos essenciais que atraem capital de qualidade. Entre eles podemos citar um ambiente regulatório confiável, judiciário independente, contas públicas equilibradas, moeda e regras estáveis, liberdades individuais asseguradas e democracia consolidada, ou seja, uma trilha virtuosa que assegure o retorno dos investimentos.

Ao mesmo tempo que existem recursos de qualidade que exigem este arcabouço de virtudes, também existem investimentos predatórios, de mais fácil atração e que não exigem este ambiente de estabilidade. São perigosos porque trafegam em modelos corruptos, exigem contrapartidas e carregam armadilhas de dependência política, financeira, econômica e social.

Com base neste risco, muitos países desenvolvidos vêm trabalhando modelos de defesa contra investimentos predatórios. Como consequência, a União Europeia viu uma diminuição muito significativa do investimento predatório a partir de 2022. Ali existem iniciativas de adoção e atualização de mecanismos de análise de investimentos diretos estrangeiros existentes. A Itália, por exemplo, retirou-se das iniciativas chinesas da Nova Rota da Seda por considerar o modelo perigoso para seu interesse nacional. 

Em Portugal, desde 2014, se estabelece o regime de salvaguarda de ativos estratégicos essenciais para garantir segurança da defesa nacional e do aprovisionamento do país em serviços fundamentais. O governo pode opor-se a qualquer transação da qual resulte, direta ou indiretamente, a aquisição de controle de terceiros à UE sobre ativos estratégicos nos setores de energia, transportes e comunicações.

O Brasil deveria seguir o mesmo caminho, especialmente por se alinhar atualmente com países que optaram pelo investimento predatório, como os membros do BRICS. Nosso país deveria optar pelos investimentos de qualidade, com recursos de origem conhecida e limpa, ao mesmo tempo que realiza reformas que tornem o país receptivo àquelas democracias que visam parcerias longas, sadias e focadas na construção de um país forte e próspero. Devemos trabalhar na atração de investimentos diretos estrangeiros de qualidade, sob pena de nos tornarmos reféns de um modelo que pode aprisionar nossa economia e nossa sociedade.

Más Companhias

Os tentáculos do Kremlin finalmente alcançaram Alexei Navalny, principal opositor de Putin, preso em uma penitenciária em Yamalo-Nenets, no círculo polar ártico. Navalny agora faz parte de uma lista cada vez mais extensa de opositores do regime de Putin que foram vítimas de assassinatos, envenenamentos, emboscadas e supostos acidentes. Isso tudo acontece na mesma medida que as liberdades são cerceadas e o regime se fecha cada vez mais sob um domínio autoritário e despótico.

A Rússia é uma das principais forças por trás de um movimento autocrático crescente no mundo, com foco em especial no desmonte das democracias ocidentais. Falo de uma estratégia que está além da direita e esquerda tradicionais, que atualmente ocupam a arena política. O movimento autocrático une estes dois polos naquilo que ambos têm de pior, que é o desprezo pelo modelo de democracia liberal construído nos pós-guerra.

Venho repetindo há algum tempo que as placas tectônicas da estabilidade internacional vêm se movimentando com especial intensidade em tempos recentes com a ascensão do modelo chinês, teocracismo iraniano, bolivarianismo venezuelano, autoritarismo russo e todos os subtipos derivados destes modelos. A união destas forças por meio da economia e pela manipulação da democracia são os principais desafios enfrentados por um mundo que se encontra carente de líderes e estadistas.

Em termos de Brasil, tudo indica uma captura da política pela lógica destes novos players do cenário internacional, seja pela via da direita ou da esquerda, com vimos em tempos recentes. A presença do nosso país no BRICS, principal arena do grupo, chancela o Brasil como membro ativo de um clube que além de China, Rússia, África do Sul e Índia, agora conta com Arábia Saudita, Irã, Egito, Etiópia e Emirados Árabes Unidos. Uma opção que deixou de considerar a democracia como elemento essencial.

Fato é que as posições recentes de nossa diplomacia deixam claro o caminho tomado, afinal no governo passado deixamos de condenar a invasão da Ucrânia, posição mantida atualmente. Da mesma forma, deixamos de condenar as violações aos Direitos Humanos na Nicarágua e Venezuela, além de golpes de estado na África sabidamente organizados com o apoio de Moscou. Falta também condenar as brutais violações ocorridas na China, especialmente a brutalidade contra a minoria uigur.

Estamos diante de uma lógica perversa, que privilegia alianças políticas em detrimento de valores universais, enterrados aos poucos pelos sócios de nosso país no BRICS e por todos os outros satélites que resolveram optar pela cartilha autocrática. Estamos diante da construção de uma nova ordem internacional por nações que desprezam os valores da liberdade e da democracia. Uma nova ordem pela qual o Brasil, de forma equivocada, ingênua e irresponsável, vem optando por fazer parte.

A morte de Alexei Navalny é mais um capítulo triste da história da Rússia. Ele se junta a Alexander Litvinenko, Anna Politkovskaya, Natalia Estemirova, Stanislav Markelov, Boris Nemtsov, Sergei Yushenkov, Denis Voronenkov, Sergei e Yulia Skripal, Nikolai Glushkov e tantos outros opositores que pereceram ao enfrentar o Kremlin de Putin. O Brasil deveria repensar suas alianças e permanecer ao lado de democracias liberais e livres, antes que sejamos ainda mais contaminados pelas más companhias.

Alerta Transparente

Nos útimos anos o Brasil viveu enormes retrocessos que começam a aparecer em rankings internacionais. O mais recente é o Índice de Percepção da Corrupção produzido pela Transparência Internacional. Nosso país caiu 10 posições e agora é considerado o 104º país mais corrupto do mundo com nota 36 de uma escala que vai de zero (mais corrupto) a 100 (mais íntegro).

O Índice de Percepção da Corrupção é o principal indicador de corrupção no mundo. Produzido pela Transparência Internacional desde 1995, avalia 180 países e territórios. Como parâmetro, o Brasil está abaixo da média global de 43 pontos, abaixo da média regional para Américas (também de 43 pontos) e inclusive abaixo da média dos países que compõe a formação original do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) com 40 pontos. A comparação se torna incômoda sob qualquer aspecto.

A situação fica ainda mais constrangedora quando é realizada com integrantes do G20, composto pelas 19 principais economias do mundo, mais a União Africana e a União Europeia, com 53 pontos e com membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) com 66 pontos. Isto significa que quanto mais a comparação leva em conta países democráticos e desenvolvidos, a distância aumenta.

Quando olhamos para o Brasil, a Transparência Internacional manteve distância da polarização política nacional, apontando tanto o governo Bolsonaro, quanto o atual governo Lula, como despreparados a lidar com o tema. Segundo o Índice, os anos em que Bolsonaro esteve na Presidência da República, entre 2019 e 2022, deixaram a lição de como, em um curto período, os marcos legais e institucionais anticorrupção, que levaram décadas para ser construídos, podem ser destruídos, com reflexos negativos claros em nossa democracia.

O primeiro ano de Lula deixa a lição de como é ou ainda será desafiador o processo de reestruturação. O Índice de Percepção da Corrupção avalia três linhas de defesa contra a corrupção, nas áreas judicial, política e social e destaca a situação crítica do controle jurídico da corrupção por causa da falta de independência do sistema de Justiça. Desmonte de operações, anulação de provas e a inobservância da lista tríplice em indicações ao judiciário também mostraram que as instituições brasileiras retrocederam em manter pilares republicanos independentes.

Para além disso, é apontado que a declaração de inconstitucionalidade do orçamento secreto “não impediu o Congresso e o governo Lula de encontrarem rapidamente um arranjo que preservasse o mecanismo espúrio de barganha, que manteve vivos velhos vícios aperfeiçoados durante a gestão Bolsonaro”. Na visão do organismo, independente do governo, os mecanismos políticos que alimentam corrupção e falta de transparência permanecem intocados e resultam na piora do índice brasileiro.

Ao nos nivelar com autocracias do BRICS e nos afastarmos da boa governança de países democráticos da OCDE, o Brasil faz uma opção equivocada que se reflete nos índices internacionais. Isto afeta os investimentos estrangeiros, estabilidade institucional e o fortalecimento de nossa democracia. O aviso da Transparência Internacional deveria servir de alerta. Retroceder é um péssimo caminho para nosso país.