Arquivo da tag: democracia

Lobby e Democracia

Ao ler as notícias do dia, me deparei com a seguinte manchete: “Lobista cobrou 20% para liberar emendas de empresários investigados, diz PF”. Ao abrir a matéria pude perceber que não se tratava de um lobista, mas alguém que exercia, sem cerimônias, a prática de tráfico de influência. Me senti aliviado, afinal de contas, nada mais longe do exercício diário da vida de um lobista do que a ação denunciada pela matéria.

Antes de qualquer coisa é preciso deixar algo muito claro: lobby não é tráfico de influência. Pelo contrário, são conceitos antagônicos. Mais do que isso, lobby somente existe onde há um sistema democrático e transparente, enquanto tráfico de influência é uma prática comum em regimes autocráticos e autoritários, onde existe concentração arbitrária de poder. Nosso país, uma jovem democracia, somente foi apresentada ao lobby em tempos recentes e ainda possui dificuldade em entender sua legitimidade. 

O lobby é uma prática tão antiga quanto a democracia, pois se estamos diante de um regime com plenas liberdades, talvez a mais importante delas seja aquela que garante à sociedade o direito de ser ouvida pelos seus representantes. Ao isolar-se e rejeitar a necessidade de ouvir, um governo torna-se autoritário. Ao fechar as portas para os pleitos dos eleitores, um parlamento perde legitimidade. Ao deixar de ouvir as partes, um juiz se torna despótico. Limitar o direito ao lobby é limitar o direito ao exercício mais básico de cidadania em uma democracia.

O termo lobby nasceu nos Estados Unidos, país que moldou o conceito moderno de democracia como conhecemos. No início de sua república, os parlamentares passavam longos períodos em Washington, hospedados no hotel Willard, localizado entre o Congresso e a Casa Branca. No lobby do hotel era comum encontrar representantes do setor privado à espera dos parlamentares para que estes pudessem ouvir sobre o impacto das leis que estavam por analisar. Desta atividade surgiu o termo lobby.

Os lobistas tornaram-se elemento central do processo legislativo e pilar essencial da democracia, uma vez que se tornou essencial ouvir os setores da sociedade afetados pelas leis que eram debatidas no Capitólio. A prática cresceu em importância e relevância na medida que aperfeiçoava diplomas legais mediante diálogo direto com a sociedade. As leis passaram a ser debatidas ouvindo a realidade do cidadão, contribuindo para que a legislação ajudasse o país a prosperar.

No Brasil, o termo passou a fazer parte de nosso cotidiano durante o mais recente período autoritário, quando não havia eleições e o parlamento permanecia fechado. Mais do que isso, passou a designar aqueles que conseguiam arrancar favores e políticas favoráveis do regime militar, uma clara situação que configurava tráfico de influência. 

Com a redemocratização e o nascimento da prática de lobby como instrumento legítimo da sociedade, o termo, usado de forma equivocada para designar tráfico de influência, foi internalizado erroneamente em nossa língua. Para remediar esta confusão, o primeiro grande passo seria ver nosso Congresso Nacional aprovar a lei que regulamenta esta atividade. Uma ação tardia, com mais de dois séculos de atraso, porém relevante e necessária para introdução de mecanismos éticos e transparentes para esta atividade que é um dos pilares da democracia.

Para Lula não perder a eleição

Em condições normais Lula perderá a eleição de 2026. Não para o bolsonarismo e sim para o antilulismo e para o antipetismo, que são hoje muito mais amplos. Sabendo disso, o lulopetismo está tentando criar condições anormais. Como?

1) Transformando o julgamento de Bolsonaro e comparsas no STF em um julgamento político e numa antecipação da campanha eleitoral, para vender a ideia de que qualquer candidato não petista, que pretenda herdar os votos bolsonaristas, será um golpista (ou fascista) disfarçado. Em resumo, o PT quer disseminar a impressão de que a derrota eleitoral de Lula seria, para efeitos práticos, o equivalente a um golpe.

2) Censurando programas eleitorais das oposições no horário gratuito da TV; no limite, cassando candidaturas ou pré-candidaturas oposicionistas.

3) Usando as mídias profissionais (sobretudo as TVs – o leitor sabe quais) como imprensa chapa-branca ou assessoria de imprensa do governo (atuando informalmente como partidos políticos).

4) Aprovando, via STF, uma regulamentação das mídias sociais que asfixie as oposições, censurando conteúdos antilulistas e antipetistas; no limite tirando do ar algumas dessas mídias durante a campanha eleitoral sob o pretexto de que difundem fake news, desinformação, discurso de ódio ou atentado ao Estado de direito e à democracia.

Claro que, adicionalmente, Lula tentará aprovar todo tipo de benesses eleitoreiras para os pobres e remediados (onde está em franca minoria). Mas isso é do jogo tal como é jogado pelos populismos que parasitam nosso regime político. E não costuma funcionar mais como funcionava.

Lulo-madurismo ou bolso-trumpismo: a encruzilhada do atraso

A polarização entre lulismo e bolsonarismo é uma praga que há tempos vem corroendo a política e apodrecendo o cérebro da sociedade brasileira, reduzindo o debate político-eleitoral ao nível fanatizado da lacração e do insulto.

É lugar comum da análise das ideologias a consideração de que a esquerda e a direita se unem em seus extremos. 

No caso em tela, temos que o extremo-esquerdismo lulopetista se une ao extremo-direitismo bolsonarista por modos que vão além da indigência do discurso; um desses modos é a adoção de ídolos.

No caso do lulopetismo a idolatria ideológica é vasta, destacando-se, porém, a paixão de que foi objeto o ditador cubano Fidel Castro. Hoje, destaca-se a fixação adulatória no ditador venezuelano Nicolás Maduro.

No caso do bolsonarismo, a idolatria ideológica resgatou durante algum tempo a figura de Brilhante Ustra, comandante do (DOI-CODI) e um dos principais símbolos da repressão durante a ditadura militar brasileira. Hoje, destaca-se a fixação adulatória no presidente norte-americano, Donald Trump.

Historicamente, obsessões ideológicas costumam desnortear os políticos e levá-los a decisões desastrosas. 

Considerando-se o tenso contexto da atual geopolítica, deixar o Brasil a mercê das idiossincrasias ideológicas do lulopetismo ou do bolsonarismo pode levar a desastres maiores do que aqueles que já foram por eles produzidos.

Lula, Maduro e o “exército de Stédile”

Após a escandalosa fraude na última eleição presidencial da Venezuela, Lula tinha controlado um pouco sua incontinência adulatória em relação ao ditador Maduro, mas terminou sendo arrastado pela incontrolável paixão do extremo petismo e está recompondo a velha amizade; isto no quadro nebuloso de uma composição fundiária e militar.

Paralelamente a um acordo de cooperação técnica em agricultura celebrado por Maduro e Lula, o ditador venezuelano cedeu 180 mil hectares de terra para ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o conhecido movimento invasor de terras liderado por João Pedro Stédile.

Que uma composição com o MST seja também militar é algo que emerge da própria fala do presidente Lula que, em 2015, no contexto de forte pressão política após denúncias, pela operação Lava Jato, do esquema de corrupção petista, exclamou, durante discurso: “também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stédile colocar o Exército dele nas ruas”.

No artigo “MST é a tropa de choque de Maduro”, Duda Teixeira denuncia, com razão, a doação de terras de Maduro para o MST como uma “caso clássico de ingerência externa, em que um ditador estrangeiro financia um grupo armado que gera instabilidade no Brasil, violando as leis brasileiras”.

O jornalista também nos lembra, em seu artigo, as vezes em que o MST já atuou como a tropa de choque de Maduro além das suas fronteiras, a exemplo do que ocorreu em 2019, quando o movimento ocupou a embaixada da Venezuela em Brasília para expulsar diplomatas do presidente interino Juan Guaidó.

Nesse contexto, deve-se atentar ainda para o – temporariamente suspenso – projeto de Maduro de invadir a Guiana. 

Estando agora parte do MST em terras cedidas pelo governo da Venezuela, se o ditador Maduro decidir fazer avançar o plano postergado, poderá certamente contar, mais uma vez, com o leal “exército de Stédile.”

I love you, Trump”

Consta no anedotário político brasileiro que, por ocasião da Assembleia Geral da ONU, em 2019, diplomatas presentes na sala que abrigava presidentes antes e depois dos discursos, presenciaram o momento em que o então presidente Jair Bolsonaro disparou para Donald Trump um “I love you” e recebeu um “nice to see you again”.

De lá pra cá a paixão só aumentou. A paixão, porém, quando invade a cena política, pode colocar os atores e a plateia em risco.

Desde o início do seu novo mandato na Casa Branca o objeto da paixão do ex-presidente brasileiro tem governado com imprevisibilidade e desrespeito ao próprio legado histórico-político dos Estados Unidos. 

Sob Trump, o outrora farol do mundo livre, traiu os melhores ideais da América, entrincheirando-se em um nacionalismo-populista tosco e boçal, deixando atônitos seus antigos aliados europeus.

A direita brasileira sabuja mostra-se, porém, incapaz de fazer uma crítica a Trump, mesmo diante da sequência estonteante de ditos e feitos deploráveis do presidente americano.

Da direita brasileira não vem nenhuma crítica à infame postura pró-Rússia, nenhuma crítica à cruel política de deportação de imigrantes, nenhuma crítica à insana guerra comercial contra a Europa, nenhuma crítica aos arroubos expansionistas que ameaçam a Groenlândia, o Panamá e o Canadá.

A reação do bolsonarismo a qualquer medida do governo dos EUA será sempre acrítica. Quaisquer que sejam elas, serão recebidas com entusiasmo, louvor e integral apoio.

Já era assim antes, ainda mais agora que Eduardo Bolsonaro se licenciou do cargo de deputado federal no Brasil para permanecer nos EUA prestando serviço em tempo integral à família Trump na esperança de angariar apoio para livrar o seu pai da cadeia.

Encruzilhada do atraso

A polarização entre lulistas e bolsonaristas dará novamente o tom na disputa eleitoral de 2026?

O lulopetismo tem ao mesmo tempo vantagem e desvantagem por estar no poder. A desvantagem vem do desgaste de um governo ruim; a vantagem vem do fato de o presidente Lula já ter contratado um marqueteiro a preço de ministério e não estar economizando nos gastos de campanha.

O bolsonarismo tem a desvantagem de, não estando no poder, não poder usar a máquina pública a seu favor, como fez em 2022, quando perdeu por pouco. Mas tem a vantagem de que o ex-presidente Bolsonaro, declarado inelegível pelo TSE, não pode ser candidato.

Se pudesse ser candidato em 2026, Bolsonaro perderia por muito, mas um seu substituto (ou substituta) pode ter melhor sorte.

Azar mesmo é o da população brasileira se continuar paralisada nessa encruzilhada do atraso.

Em Defesa dos Conservadores

Jornalistas e analistas políticos, sobretudo quando afinados com ideias ditas progressistas, costumam desvalorizar os conservadores. Por exemplo, criticam o Congresso atual do Brasil por ser demasiadamente conservador. É como se ser conservador fosse ruim, de alguma forma inadequado, quando não problemático para a democracia. Sobretudo para os populistas de esquerda (hegemonistas e antipluralistas) ser conservador é um problema grave. Para eles, os conservadores passam a ser os inimigos a ser extirpados.

Isso está simplesmente errado. Sem conservadores (ditos de direita), aceitos como players legítimos, não pode haver democracia liberal.

Cabe dizer, preliminarmente, que conservadores não são o contrário de liberais. Tanto é assim que existem liberais-conservadores. Conservadores são o contrário, isto sim, de reacionários e de revolucionários.

Aqui é preciso esclarecer que liberal (no sentido político do termo) é quem toma a liberdade (e não a ordem) como sentido da política. Nesse sentido, Clístenes, Efialtes, Péricles, Aspásia e Protágoras eram liberais. E Spinoza – vinte anos antes de Locke – também era liberal, mas não Hobbes. E foram liberais Locke, Montesquieu, Rousseau, Jefferson, Madison e os Federalistas, Paine, Constant, Tocqueville, Mill, Dewey, Popper e Arendt. E ainda, Berlin, Dahl, Havel, Lefort, Bobbio, Castoriadis, Dahrendorf, Rawls, Maturana, Sen, Przeworski, Fukuyama e Rancière. Os liberais se confundem, portanto, com os principais inventores e intérpretes democráticos da democracia.

Alguns mencionados na lista acima são conservadores. Outros são mais inovadores. Conservadores e inovadores não estão em contradição: ambos são players importantes do jogo democrático. Há uma tensão entre ambos, conservadores e inovadores. Essa tensão é saudável para a democracia porque permite que as regras do jogo – as instituições e os procedimentos do regime democrático – sejam mantidas, enquanto o próprio jogo continue sendo jogado, inspirando a criação de novas instituições e procedimentos adequados à cada avanço do processo de democratização. A democracia é alostática. Tem que se manter enquanto avança. É a metáfora da bicicleta: parou de pedalar, cai. Por isso os inovadores são tão importantes. Mas os conservadores também.

Sem liberais-inovadores não teria sido inventada e reinventada a democracia. Sim, a democracia, quando surgiu ou ressurgiu, foi uma formidável inovação política. Por outro lado, sem liberais-conservadores, nenhuma democracia teria se mantido.

Precisamos esclarecer essa confusão conceitual. Seria pedir demais que, na crise da democracia em que vivemos (sob uma terceira onda de autocratização), a análise política democrática também não estivesse dando sinais de falência. Suas categorias envelheceram. Seus esquemas classificatórios de regimes ficaram inadequados.

Tenho proposto um novo esquema básico para uma classificação desses termos que muitas vezes se confundem e nos confundem. Recoloco a questão do ponto de vista da proximidade dos comportamentos políticos (não das ideologias declaradas) com dois eixos ortogonais: o eixo da democracia e o eixo da autocracia.

Claro que os reacionários disfarçados de conservadores e os revolucionários travestidos de progressistas não concordam com nada isso.

Conservadores (ditos de direita) não são problema para a democracia. A não ser quando são puxados por reacionários nacional-populistas (ditos de extrema-direita), que são, via-de-regra, golpistas. Progressistas (ditos de esquerda) não são problema para a democracia. A menos quando são neopopulistas, quer dizer, hegemonistas.

O problema são os novos populismos do século 21: o nacional-populismo (dito de extrema-direita) e o neopopulismo (dito de esquerda). Todos os populismos são antipluralistas e, como tais, adversários da democracia liberal.

Os reacionários de extrema-direita, que se apresentam como conservadores de direita, desprezam os verdadeiros conservadores de direita. Acham que eles fazem parte de “o sistema”. Como esses reacionários são antissistema, acham que os conservadores de direita só servem quando podem ser puxados pelo nariz. Puxados, é claro, por eles.

Os populistas-autoritários ou nacional-populistas, ditos de extrema-direita, não querem fazer política. Querem fazer uma revolução reacionária para destruir o que chamam de “o sistema”. A democracia, a convivência democrática normal, como modo político pluralista de administração do Estado baseado na conversação, na negociação, na busca do consenso é, para eles, uma enfermidade própria desse sistema. Por isso eles são, fundamentalmente, antidemocráticos. Seu projeto é, sempre, ao fim e ao cabo, instalar uma autocracia.

Trump é bom. Porque começou a destruir o sistema. Bolsonaro era bom. Porque queria destruir o sistema. Orbán é bom. Porque está destruindo o sistema. Modi é bom. Porque está destruindo o sistema. Bukele é bom. Porque está destruindo o sistema. Milei é bom. Porque pode acabar destruindo o sistema. Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage, são bons. Porque querem destruir o sistema. Ora… esse pessoal pode ser tudo, menos conservador. Eles são revolucionários. Revolucionários para trás. Quer dizer, reacionários.

Existe realmente um movimento molecular antissistema na gênese e ascensão da extrema-direita. Esse movimento tem as características de uma revolução. Nos Estados Unidos de hoje, uma revolução retrópica (reacionária) MAGA coligada a uma revolução distópica (futurista, mas darwinista social) dos tecno-feudalistas.

No Brasil atual, líderes como Allan dos Santos, Luiz Philippe de Orléans e Bragança, Carla Zambelli, Ricardo Salles, Bia Kicis, Marcos Pollon ou Damares Alves não são conservadores. São populistas-autoritários (ou nacional-populistas), alguns golpistas, todos antipluralistas, reacionários travestidos de conservadores, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Para a democracia não há nenhum problema em ser progressista dito de esquerda. O problema é ser populista de esquerda (neopopulista). Porque o neopopulismo (o novo populismo de esquerda do século 21) é hegemonista e antipluralista.

Frequentemente, os revolucionários que chamam a si mesmos de progressistas querem, em grande parte, construir outro tipo de regime democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora). Daí, evidentemente, não sairá nenhum tipo de democracia.

No Brasil atual, líderes como João Pedro Stedile, Guilherme Boulos, Frei Betto, Luiz Marinho, Gleisi Hoffmann, Breno Altman ou José Dirceu não são progressistas. São neopopulistas, hegemonistas e antipluralistas, revolucionários socialistas disfarçados de progressistas, iliberais que usam a democracia contra a democracia.

Os bolsonaristas, embora sejam populistas-autoritários (ou nacional-populistas), iliberais, antipluralistas e reacionários, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não violem as leis.

Os lulopetistas, embora sejam neopopulistas, não-liberais, hegemonistas, antipluralistas e, em parte, revolucionários travestidos de “progressistas”, têm o direito de existir na nossa democracia, disputar eleições e participar da vida política. Desde que não queiram violar ou bypassar os critérios da legitimidade democrática de Ralf Dahrendorf: além da liberdade e da eletividade, a publicidade ou transparência (capaz de ensejar uma efetiva accountability), a rotatividade ou alternância, a legalidade e a institucionalidade.

Ambos, porém, são problemas para a democracia. Os primeiros porque, tendo uma proposta antissistema, dificilmente não acabarão enveredando para o golpismo – o que viola as leis escritas. Os segundos porque, tendo uma proposta hegemonista, acabarão transgredindo os critérios da legitimidade democrática – o que viola as normas não-escritas que permitem o funcionamento da democracia.

Democracia é propriamente democracia liberal. Iliberais ou não-liberais (não importa se ditos de direita ou de esquerda) são, sempre, problemas para a democracia.

Já os conservadores, não. Isso nada tem a ver com ser “conservador nos costumes”, que não é matéria da política. Cada qual conserve os costumes que quiser. Conservador, no sentido político do termo, é outra coisa. É um comportamento necessário à manutenção (e, portanto, à continuidade) do regime democrático. Se alguém não conservar as instituições e os procedimentos democráticos, nenhuma democracia pode perdurar.

Esta é uma defesa dos liberais-conservadores (democratas formais) feita por um liberal-inovador (democrata radical).

Manual do Isentão

Por que bolsononaristas e lulopetistas não são democratas (no sentido pleno ou liberal do termo). 

Este pode ser o manual de todo aquele que os populistas (de direita e de esquerda) chamam de “isentão”

Vamos falar a verdade. Bolsonaristas e lulopetistas usam o regime eleitoral, mas não são democratas no sentido liberal ou pleno do termo. Eis aqui as razões, na forma de um decálogo que pode servir como um verdadeiro manual do isentão.

Mas atenção! Isso não vale para simples eleitores de Bolsonaro ou de Lula e sim para militantes das seitas que ambos lideram.

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja de direita ou de esquerda).

➡️ Bolsonaristas se opõem à ditaduras de esquerda (como a Venezuela), mas contemporizam com ditaduras de direita (como a Hungria).

➡️ Lulopetistas, por sua vez, se opõem a ditaduras de direita (como El Salvador), mas contemporizam com ditaduras de esquerda (como Cuba).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas, aliás, contemporizam, ambos, com ditaduras que estão na vanguarda do eixo autocrático (como a Rússia).

2 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas tratam adversários como inimigos, buscando deslegitimá-los como players válidos e destruí-los ou exterminá-los.

3 – Democratas não querem destruir nenhum sistema ou ‘modo de produção’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade.

➡️ Bolsonaristas são reacionários (antissistema) disfarçados de conservadores.

➡️ Lulopetistas são, em boa parte, revolucionários (anticapitalistas) travestidos de progressistas.

4 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas. São o fermento, não a massa.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas se dedicam a arrebanhar massas para seguir um líder salvador do povo (ou do que chamam de democracia).

5 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que os seguem) às elites (ou ao sistema).

➡️ Bolsonaristas são populistas-autoritários (ou nacional-populistas) como Trump, Orbán, Modi, Bukele, Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage.

➡️ Lulopetistas são neopopulistas como Obrador-Sheinbaum, Manoel-Xiomara Zelaya, Petro, Evo-Arce, Lula, Ramaphosa. E defendem populistas de esquerda (ou socialistas) que viraram ditadores como Lourenço, Chávez-Maduro, Daniel-Murillo Ortega.

6 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas dizem-se democratas porque adotam a via eleitoral, mas usam as eleições contra a democracia, não como um metabolismo normal do regime político e sim como instrumento para empalmar o poder e nele se delongar.

7 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais).

➡️ Bolsonaristas acham que o sentido da política é a ordem, por isso querem implantar uma ordem supostamente mais condizente com a natureza, com a natureza humana (seja lá o que for) ou com a vontade divina.

➡️ Lulopetistas também acham que o sentido da política é a ordem, uma ordem mais justa, mais consonante com as leis da história e praticam a política como uma guerra para implantar essa ordem – preconcebida por eles – ex ante à interação.

➡️ Bolsonaristas são iliberais.

➡️ Lulopetistas são não liberais.

8 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alterância, a legalidade e a institucionalidade).

➡️ Bolsonaristas violam as leis escritas e, não raro, são golpistas (querem destruir as instituições que compõem o que chamam de “o sistema”).

➡️ Lulopetistas, quando obedecem às leis escritas, violam as normas não escritas que garantem a legitimidade democrática e, não raro, são hegemonistas (não querem destruir as instituições e sim ocupá-las e fazer maioria em seu interior para colocá-las a serviço de seu projeto de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, o “DNA” da democracia).

9 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (inclusive das minorias políticas).

➡️ Bolsonaristas não priorizam a cidadania, acham que as leis devem ser feitas para a maioria e não respeitam os direitos das minorias sociais e políticas.

➡️ Lulopetistas usam a democracia realmente existente, mas querem construir outro tipo de regime (supostamente) democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora).

10 – Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

➡️ Bolsonaristas são antipluralistas nos sentidos social e político do termo. Almejam um tipo de regime autocrático em que as pessoas não apenas ajam sob comando, mas pensem sob comando segundo valores que consideram conservadores (mas que, na verdade, são reacionários): família (monogâmica), deus (ou religião), pátria (na acepção nacionalista), ordem como sentido da política (e a defesa do pensamento “lei e ordem”), aumento do uso da força policial como solução para o “problema da violência”, anticomunismo, antiparlamentarismo, racismo, misoginia, xenofobia, a volta a um passado (idealizado) onde a vida, supostamente, era melhor.

➡️ Lulopetistas são antipluralistas no sentido político do termo. Querem conquistar hegemonia sobre a sociedade a tal ponto que as pessoas tenham as ideias “certas” sem necessidade de comando explícito segundo valores que consideram progressistas (mas que, em boa parte, são revolucionários: anticapitalistas): a ordem (“mais justa”) – e não a liberdade – como sentido da política, antiliberalismo, estatismo, a crença numa imanência histórica, na existência de leis da história que podem ser conhecidas por quem tem a teoria verdadeira ou o método correto de interpretação da realidade e a luta de classes (ou a luta identitária: a afirmação da diferença convertida em separação) como motor da história, a igualdade (ou a redução da desigualdade) socioeconômica como pré-condição para a liberdade (ou para a igualdade política), a equivalência entre democracia e cidadania (ou a redução da democracia à cidadania para todos) e a fuga para um futuro (idealizado) onde a vida, supostamente, será melhor.

Lula foi machista com Gleisi ou não foi porque é de esquerda?

De todas as declarações machistas que Lula já fez e continua fazendo com uma frequência absurda, essa sobre a beleza de Gleisi Hoffmann é, de longe, a menos ofensiva. Mas, curiosamente, foi a que mais causou frisson entre aqueles que fingiram não ver o machismo do presidente até agora.

A indignação tem duas razões. A primeira é que os ratos estão desembarcando. A mesma turma da “carta pela democracia” e do “governo do amor”, que endossou com entusiasmo a farsa da “primeira-dama feminista” — algo que nunca existiu e nunca existirá —, agora percebeu que o governo naufragou e precisa de uma desculpa para abandonar o barco. O preço dos alimentos disparou, a popularidade de Lula despencou e a estratégia de jogar a culpa nos outros já não cola mais. O machismo de Lula, convenientemente ignorado até agora, virou o pretexto perfeito para essa turma fingir que nunca apoiou nada disso.

Até ontem, essa gente passou pano para Lula dizendo que era “amante da democracia” porque “homem gosta mais da amante do que da mulher”. Fingiu que não viu a misoginia explícita no episódio das “feministas do grelo duro”. Fechou os olhos para a quantidade de mulheres demitidas no governo e substituídas por homens. Mas agora, de repente, um elogio à aparência de Gleisi virou motivo de escândalo. Por quê? Porque a conveniência política mandou.

E aí vem o outro motivo do frisson: o recalque. Muita gente se doeu porque Lula chamou Gleisi de bonita. Mas ele mentiu? Gleisi Hoffmann, objetivamente, é bonita. Aliás, mais bonita hoje do que quando era jovem. Isso, convenhamos, é uma sorte para poucos.

Agora aparece um monte de gente dizendo que ela é feia. Alguns homens parecem muito empenhados em afirmar isso. Se você é um deles, sinto dizer: isso diz mais sobre você do que sobre Gleisi. É como profetizou Ronnie Von, significa. Esforço demais para não gostar de mulher, amigos.

Homem de verdade não liga para vertente política ao olhar beleza de mulher. Aliás, conheço vários que fingem ser esquerdomachos para pegar mulher. Tenho até um amigo que pode ser definido como esquerdomacho de direita, um eterno apaixonado pelo gênero feminino. Obviamente não darei nomes.

O caso é que muita feia ficou ofendida e não foi pela declaração machista. Foi porque jamais serão reduzidas à própria beleza simplesmente porque essa possibilidade não existe. Agora ficam gritando que foi machismo, mas é puro fingimento. Até agora não diziam nada sobre declarações machistas muito mais ofensivas. Foi Lula botar a beleza em pauta que ficaram ofendidas.

Cá entre nós, a política brasileira não tem gente feia, tem gente que não foi passada a limpo. Olhar um palanque político brasileiro é meio como olhar um trem fantasma. Dizer que a beleza de Gleisi é uma vantagem nesse cenário não passa de pura constatação do óbvio.

Foi machista? Foi. E não foi uma escorregada. Mas estou rindo muito ao ver a súbita indignação de quem passou pano para machismo durante anos. Confesso que chego a gargalhar quando o caso em questão é de alguém que jamais será subestimada intelectualmente por ser bonita.

Foto: Reuters/Elizabeth Frantz/File Photo

Trump e o deficit de agentes democráticos nos Estados Unidos

Estamos mergulhados numa terceira onda de autocratização, muito mais tenebrosa do que poderíamos prever ou imaginar. Com Trump alinhando os EUA ao eixo autocrático, a situação se agrava rapidamente e uma escuridão espessa vai se abatendo sobre o mundo.

Como escreveu ontem Francis Fukuyama, no Persuasion (20/02/2025):

“Os Estados Unidos sob Donald Trump não estão recuando para o isolacionismo. Eles estão ativamente aderindo ao campo autoritário, apoiando autocratas de direita em todo o mundo, de Vladimir Putin a Viktor Orbán, Nayib Bukele e Narendra Modi”.

Como Trump, o MAGA e o partido Republicano puderam fazer isso, rompendo uma tradição secular de defesa da democracia dos EUA?

Podemos aventar algumas hipóteses para explicar o fenômeno. A ascensão de Trump (um líder de espírito totalitário) revela que, do ponto de vista da democracia, havia algumas coisas muito erradas com o Estado e a sociedade americanos:

1 – Cultura política discriminatória (e depois antipluralista) dos colonos brancos.

2 – Medo injustificado da ‘tirania da maioria’ (que levou os “pais fundadores” a adotarem um modelo de regime mais inspirado pela república oligáquica romana do que pela experiência democrática ateniense).

3 – Dilapidação acelerada do capital social acumulado nas experiências do ‘network da Filadélfia’ (pró-Independência) e de “governo civil” (tocquevilliano) no século 19 (sobretudo na Nova Inglaterra):

a) centralização excessiva em Washington,

b) recorrência exagerada aos tribunais para resolver dilemas banais da vida coletiva,

c) ereção do complexo científico-industrial-militar, e

d) muitas guerras.

Sejam quais forem as razões históricas que possamos aventar para explicar as mudanças que permitiram essa guinada, uma coisa é certa: isso só aconteceu por defict de agentes democráticos na sociedade americana. Deficit de agentes democráticos dentro do próprio partido Democrata e nas instituições do Estado e da sociedade (universidades, imprensa, organizações civis, corporações etc.). Em outras palavras, o número de pessoas capazes de fermentar a formação de uma opinião pública democrática e resistir aos autoritarismos (e a qualquer populismo) mostrou-se insuficiente. Ora, não há democracia (liberal) sem um número mínimo, crítico, ativo, de agentes democráticos.

Steven Levitsky, em entrevista recente à BBC News Brasil (19/01/2025), respondeu que a eleição de Trump ocorreu porque

“Os políticos foram irresponsáveis, em particular os políticos republicanos, ao nomear um candidato que eles sabiam que era uma ameaça à democracia e deixar essa decisão para os eleitores… Mais uma vez, os eleitores não são cientistas políticos. Cabe aos cientistas políticos determinar se algo é uma ameaça à democracia ou não. Cabe às elites políticas defender a democracia. Não é função dos eleitores”.

Mas não se trata bem disso. Não são apenas os “cientistas” e as “elites”, são as pessoas, embora sempre em minoria, porém ativas, que devem valorizar e defender a democracia. Como escrevi em meu livro mais recente (2023), Como as democracias nascem:

“Uma saída democrática capaz de interromper o processo continuado de erosão da democracia – no Brasil e em qualquer localidade do mundo onde processos de autocratização estão em curso – exige recomeçar de baixo para cima, multiplicando em cada lugar e setor de atividade o número de agentes democráticos ativos. Isso implica não apenas aumentar o número de pessoas que dizem preferir a democracia a outros regimes políticos, mas multiplicar os atores políticos que sejam capazes de reconhecer a presença de padrões autocráticos, de detectar precocemente sinais de envenenamento e de desconsolidação da democracia, mesmo quando esses sinais são fracos ou subterrâneos e de agir consequentemente para configurar novos ambientes democráticos.”

Tenho dedicado minha vida, nos últimos vinte anos, à expandir a aprendizagem da democracia, compreendendo que aqui também, no Brasil, o número de agentes democráticos está abaixo do nível crítico capaz de cumprir as funções mencionadas no parágrafo anterior. Por isso, entre outras razões, nosso regime eleitoral continua parasitado por populismos de esquerda e de direita que se revezam no poder e investem na polarização e na divisão da sociedade brasileira.

A impressão que tenho é que não vamos sair dessa situação, nem facilmente e nem no curto prazo. Será preciso – nos EUA, no Brasil e na maioria dos países – começar de novo, investindo na aprendizagem da democracia, em termos teóricos e práticos, para multiplicar o número de agentes democráticos. Começar de novo, mais um vez: a maldição de Sísifo que paira sobre os democratas de todas as épocas.

Voto crítico no órgão regional do Hemisfério Ocidental pode abrir a porta para a influência da China

Líderes no Hemisfério Ocidental enfrentam escolhas difíceis nos próximos meses enquanto se ajustam a uma nova administração dos EUA que está jogando por suas próprias regras em suas relações com a região. No entanto, uma escolha futura deve ser simples: a eleição de um novo secretário-geral para a Organização dos Estados Americanos em 10 de março.

O resultado da votação influenciará se a América Latina será capaz de conter regimes autoritários, combater o crime organizado e conter a crescente presença da China no hemisfério. Mais amplamente, moldará a capacidade da região de navegar no que está se configurando para ser um período tumultuado nas relações EUA-América Latina.

Após 10 anos sob a liderança do diplomata uruguaio Luis Almagro, a disputa entre o Ministro das Relações Exteriores do Paraguai Rubén Ramírez Lezcano e o diplomata surinamês Albert Ramdin representa mais do que uma transição de liderança de rotina. É um referendo sobre se a OEA manterá seu papel tradicional como defensora da democracia ou mudará para acomodar influências autoritárias na região.

Ramírez enfatiza o papel crítico da OEA no apoio à democracia e direitos humanos e pede esforços mais concentrados contra o crime organizado e lavagem de dinheiro. O Paraguai é o último aliado diplomático da América do Sul de Taiwan e um dos aliados mais próximos de Israel na América Latina, e seu apoio à oposição democrática da Venezuela levou o regime de Maduro a romper relações diplomáticas com o Paraguai em janeiro.

Em contraste, Ramdin defende uma abordagem mais permissiva em relação ao regime autoritário da Venezuela, priorizando o diálogo em vez da responsabilidade democrática. Ramdin conhece bem a organização, tendo atuado como secretário-geral assistente de 2005 a 2015, e sugeriu que o potencial do Suriname como um grande produtor de petróleo o posicionaria para vencer a eleição. Embora o Suriname tenha relações amigáveis ​​com os Estados Unidos, ele é mais próximo da China, que apoia a candidatura de Ramdin. Ramdin falou calorosamente sobre o papel da China no desenvolvimento do Suriname, inclusive por meio da Iniciativa do Cinturão e Rota, à qual o Suriname aderiu em 2018.

Para alguns na região que já veem a OEA como muito amigável aos EUA, a tentação será apoiar o candidato que for menos atraente para Washington. Isso seria um erro. Os países da região estão experimentando uma série de desafios interconectados – insegurança, corrupção e erosão democrática entre eles – que exigem maior resolução coletiva e coordenação. A região precisa desesperadamente superar compromissos ideológicos e encontrar maneiras de se unir, ou corre o risco de se tornar um alvo mais fácil para atores malignos e perder relevância no cenário mundial.

O resultado da votação também importa para os Estados Unidos. A OEA continua a plataforma multilateral mais eficaz para o envolvimento dos EUA com o hemisfério. Ao contrário de outros fóruns, como a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, ou CELAC, onde os EUA não têm um assento à mesa, a OEA geralmente se alinhou com os objetivos dos EUA e promoveu valores democráticos nas Américas.

A estratégia atual do governo Trump de pressão bilateral para enfraquecer o envolvimento da região com a China pode render concessões em alguns casos, mas não é suficiente para a tarefa maior de reconstruir a influência dos EUA na região. A América precisa de uma agenda mais ampla e positiva, e uma OEA forte sob liderança com ideias semelhantes poderia fornecer a plataforma para isso, especialmente em áreas como segurança, estado de direito e desenvolvimento.

Alguns críticos podem argumentar que as limitações da OEA a tornam indigna de atenção séria, mas tal visão é míope. É verdade que a OEA exibe muitas das fraquezas comuns a órgãos multilaterais, com uma ênfase indevida no consenso e capacidade limitada de fazer cumprir decisões. Ela também é cronicamente subfinanciada.

No entanto, apesar de suas imperfeições, a OEA continua sendo um importante baluarte para a democracia na região. Por exemplo, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA documentou vigorosamente os esforços sistemáticos da Venezuela para suprimir a participação da oposição na política, impedir eleições livres e incutir medo entre os venezuelanos. E em agosto de 2024, os estados-membros da OEA votaram para instar a Venezuela a divulgar as contagens eleitorais e fornecer verificação imparcial dos resultados.

A escolha que os estados-membros da OEA enfrentam não é apenas entre dois candidatos — é entre manter o compromisso da organização com a democracia e permitir que a OEA e o hemisfério se dividam ainda mais. Para governos que buscam virar a página da atual instabilidade e deriva democrática na região, apoiar Ramírez é um imperativo.

Foto: Roque de Sá.

O que eu disse ao relator de Liberdade de Expressão da OEA

Na última quinta-feira, participei de uma audiência fechada com o relator de Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Pedro Vaca Villareal, que visitou o Brasil esta semana para produzir um relatório.

Fui ouvida como representante do Instituto Direito de Fala, que fundei para reunir pessoas em defesa da liberdade de expressão após um episódio em que eu fui cerceada. Também participaram representantes de outras organizações como Instituto Brasileiro de Direito e Religião, Instituto Millenium e Instituto Liberal, entre outros.

Cada um de nós teve 5 minutos para sua exposição verbal. Nenhum tema foi proposto ou restrito, todos falamos livremente. Também tivemos a oportunidade de enviar documentos à relatoria para embasar nossos relatos.

Podíamos fazer nossas manifestações em inglês e espanhol normalmente. Quem optasse pelo português precisaria falar pausadamente. Optei pelo inglês. Segue a tradução para o português da minha fala.

Prezado Relator Especial para a Liberdade de Expressão, Pedro Vaca Villareal,

Meu nome é Madeleine Lacsko. Sou jornalista há 28 anos, colunista em O Antagonista, Gazeta do Povo e UOL News, escritora, autora do livro Cancelando o Cancelamento, e fundadora do Instituto Direito de Fala. Já fui assessora da presidência do Supremo Tribunal Federal e da comissão de Direitos  Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo. Fiz parte do time do Unicef que erradicou a pólio em Angola. Dedico minha carreira à defesa da liberdade de expressão e do livre debate, pilares essenciais da democracia.

Fui condenada judicialmente por um suposto ato de “transfobia”, embora este conceito não exista no ordenamento jurídico brasileiro. A decisão foi fundamentada exclusivamente em uma interpretação subjetiva da linguagem, baseada na ideia de que usei uma palavra “indevida” para me referir a um influenciador transgênero.

A expressão “cara” pode ser usada informalmente de forma neutra, mas no contexto específico em que utilizei, tratava-se da forma formal e necessariamente feminina. Ou seja, sequer houve “misgendering”.

A condenação não teve como base a lei brasileira, mas ideologias que dizem buscar justiça social. Isso abre um perigoso precedente para a violação do devido processo legal.

Além disso, o julgamento partiu do pressuposto de que eu teria uma intenção maliciosa ao usar essa palavra, sem que eu sequer tenha sido ouvida pelo Judiciário. Meu último recurso está no Supremo Tribunal Federal.

Além da total ausência de base legal, esse julgamento desconsidera completamente meus direitos como mulher, jornalista e cristã. Como qualquer cidadão em uma democracia, tenho o direito de expressar minha visão sobre a pauta trans e meu conceito de mulher.

Da mesma forma, tenho o direito, como cristã, de professar minha fé, o que inclui a concepção biológica e espiritual do que é ser mulher. No entanto, esses direitos sequer foram levados em conta na decisão, que me trata como se eu não fosse sujeito de liberdade de expressão, de crença e de opinião.

O Instituto Brasileiro de Direito e Religião elaborou um parecer sobre o meu caso porque tem enfrentado desafios semelhantes na área de liberdade religiosa. Há uma tendência crescente de decisões judiciais que ignoram o arcabouço legal, amparando-se em conceitos fluidos que podem ser interpretados de forma arbitrária. Como alerta o parecer do IBDR: “O Judiciário, ao se afastar da legislação objetiva e basear-se em doutrinas ideológicas, coloca em risco não apenas a liberdade de expressão, mas a própria segurança jurídica”.

A tentativa de calar a imprensa não começou agora.

Lembro de um episódio emblemático há 21 anos, quando o presidente Lula tentou expulsar do Brasil o correspondente do New York Times Larry Rohter por não gostar de uma reportagem.

A perseguição vai além da censura direta. No Brasil, é comum que políticos peçam a demissão de jornalistas, promovam campanhas difamatórias e incitem seguidores a hostilizar e ameaçar profissionais da imprensa e suas famílias.

O Poder Judiciário costumava ser o anteparo aos arroubos autoritários dos políticos. Há um ponto de inflexão quando se torna parte dessa engrenagem.

O marco importante é a censura direta à Revista Crusoé, em 2019, pela reportagem O Amigo do Amigo do Meu Pai, acerca de um ministro do STF. Essa decisão marca uma guinada na cultura judicial, consolidando um ambiente onde a censura se tornou ferramenta recorrente. O deputado Marcel Van Hattem já apresentou esse caso à Relatoria, e a própria Crusoé dará seu testemunho.

A censura também se estendeu ao humor. Humoristas como Léo Lins e Danilo Gentili acumulam dezenas de processos judiciais simplesmente por fazerem piadas.

O caso de Léo Lins é especialmente emblemático: ele teve um especial de stand-up banido, suas redes sociais suspensas, foi proibido de deixar o estado de São Paulo e não pode mais fazer piadas com uma lista de temas elaborada pela Justiça. Shows seus foram cancelados mais de 50 vezes porque políticos locais se sentiram ofendidos. Hoje, ele enfrenta cerca de 80 processos, sendo 20 deles criminais.

Há uma tendência crescente e preocupante. Vale ressaltar que a Justiça brasileira tem não apenas o poder de censurar, mas também de aplicar multas de milhares de dólares e bloquear automaticamente contas bancárias dos réus em punições. É um cenário que tem sido muito eficaz no incentivo à autocensura e ao silêncio. Inclusive das vozes dissonantes dentro do próprio judiciário.

Diante desse cenário, fundei o Instituto Direito de Fala. Nosso objetivo é reunir e apoiar aqueles que compreendem que a liberdade de expressão é a base para todas as outras liberdades. Sem ela, não há debate, não há pluralidade, não há avanços sociais.

O que está em jogo não é apenas minha liberdade de expressão, mas o próprio alicerce da democracia brasileira. Quando o Judiciário abandona a imparcialidade para agir como guardião de ideologias específicas, instala-se um regime onde o arbítrio se sobrepõe ao direito, e a intimidação substitui o debate.

Hoje sou eu a condenada por um crime inexistente, mas amanhã qualquer voz dissonante pode ser silenciada da mesma forma. A liberdade não é um privilégio concedido pelo Estado, é um direito inalienável de cada cidadão. Permitir que ela seja corroída pelo medo e pela censura é aceitar a morte da democracia em silêncio.

Muito obrigada

A Estrela Decadente

Parece contraditório, mas o Partido dos Trabalhadores (PT) chegou ao poder pela quinta vez depois de atravessar um longo período de declínio. 

Seu candidato a presidente foi vitorioso na eleição de 2022, não pela força do partido, mas porque o desastre do governo anterior possibilitou a formação de uma ampla frente de oposição.

Certamente, mesmo em declínio, a força político-eleitoral do PT era ainda significativa; e seu candidato, Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo desgastado, não encontrava na oposição nenhum nome que com ele ombreasse em popularidade para enfrentar o então presidente Jair Messias Bolsonaro.

O PT e o presidente Lula não souberam, porém – passados já dois anos, metade do mandato –, aproveitar a reconquista da Presidência da República para recuperarem a força, simbolismo e prestígio que tiveram na aurora do partido. Pelo contrário, retornaram à rota de declínio. 

Todavia, se não é provável, também não é impossível que Lula seja reeleito em 2026; isto porque, se o governo Lula-PT é ruim, a oposição não deixa de ser também uma lástima. 

É tão desoladora a situação que, em lugar de um equilibrado centro-democrático, temos uma coisa chamada “centrão”, aglomerado fisiológico de parlamentares desvairados por dinheiro, o qual abocanham especialmente através de emendas secretas, semi secretas ou escandalosamente abertas.

A redemocratização

Há 45 anos – 1980 –, o Partido dos Trabalhadores nascia como uma estrela fulgurante para a esquerda brasileira, com grande força de atração e equivalente força de propulsão. 

O ambiente era propício para o surgimento de um novo partido de esquerda. A ditadura militar, ainda vigente, estava moribunda. 

Na verdade, não existia mais ditadura: a ‘Anistia Ampla, Geral e Irrestrita’ de 1979, promulgada pelo presidente General Figueiredo, tornara a redemocratização irreversível e as multidões ocupavam as ruas, sem enfrentar repressão, exigindo a realização de eleição para presidente da República, com a campanha das “Diretas já”

Se essa campanha não logrou vitória formal no Congresso Nacional, ao menos instituiu a democracia diretamente no espaço público: nas ruas, praças e botequins. Corria pelo Brasil uma verdadeira euforia democrática. 

Embora tenha derrubado a emenda das eleições diretas para presidente (emenda Dante de Oliveira), o Congresso Nacional viu-se forçado a caminhar para a eleição de um presidente da República civil, tendo o Colégio Eleitoral elegido, em janeiro de 1985, Tancredo Neves (que morreu antes da data da posse, o que levou à posse do vice-presidente eleito, José Sarney.

Lula e o PT

Gestado nesse contexto de lutas contra a ditadura militar brasileira e clima de redemocratização, o PT teve como suporte principal uma forte base sindical montada a partir do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, presidido pelo operário/torneiro mecânico (licenciado por acidente) Luiz Inácio da Silva (ainda sem o famoso apelido acrescido ao nome em cartório). 

A essa base vieram a se unir contingentes expressivos de diversos segmentos sociais contestatórios, com destaque para a esquerda remanescente das lutas estudantis de 1968 e guerrilheiros que sobreviveram aos “anos de chumbo”, assim como comunidades eclesiais de base da Igreja católica e o movimento estudantil, fortemente reativado por essa época.

Quando aconteceu a almejada eleição direta para presidente, em 1989, o PT já estava forte o suficiente para ir ao segundo turno. 

Leonel Brizola (PDT) era tido como favorito naquela eleição, mas cresciam o nome de Lula e de um jovem político de Alagoas, até pouco tempo nacionalmente desconhecido, chamado Fernando Collor de Mello.

Collor venceu, então, a primeira eleição presidencial pós-redemocratização, mas realizou um governo tão estúpido e desastroso que não demorou a ser afastado por impeachment. 

Como se sabe, a persistência petista levaria Lula a Presidência da República na eleição de 2002, quando derrotou José Serra (PSDB).

Petismo, lulismo e marxismo

Com a entrada trepidante de Lula no cenário nacional através da enorme repercussão das greves de fábricas no ABC paulista nos anos 1970, o fato de um operário ser alçado à condição de grande liderança fascinou a intelligentsia marxista brasileira. 

Ainda antes da fundação do Partido dos Trabalhadores, um enxame desses intelectuais passou a cercar o futuro presidente do PT e doutriná-lo com o extrato do pensamento de Marx, Engels e Lênin. 

Pouco afeito à leitura, Luiz Inácio não teria como compreender muito bem a complicadíssima ciência do materialismo histórico e dialético, mas o componente do autoritarismo leninista (bolchevismo) foi bem assimilado. 

É certo que Lula desenvolveu forte simpatia, apego e estima por ditaduras de esquerda; como são os casos notórios da ditadura de Cuba (desde os tempos de Fidel Castro) e da ditadura da Venezuela (desde os tempos de Hugo Chaves), dentre outras. 

Lula não apenas nutriu simpatia por tais regimes, como também os financiou generosamente durante o exercício dos seus passados mandatos.

Fora essa paixão ideológica por ditaduras, Lula é tido e havido como um político pragmático, capaz mesmo de fazer alianças espúrias para se dar bem. 

O dono do PT

Nas pesquisas que andei fazendo para reconstituir o histórico do PT, conversei com alguns militantes dos primórdios do partido, que participaram ativamente da sua fundação em algumas cidades do Nordeste e que tiveram cargos de direção em alguns diretórios estaduais e municipais. 

Explicaram-me eles que, naqueles tempos, havia democracia interna; a democracia partidária era a tônica. 

Lula era, naturalmente, uma liderança respeitada, mas muito longe de ser o autocrata que, segundo alguns ex-petistas com quem conversei, passou a submeter o partido ao seu inteiro talante. 

Como se diz e é comum em outros partidos brasileiros: hoje o PT tem dono. 

Um dos motivos pelo qual o governo Lula vai mal é esse: ele não conta com um partido no qual possa pensar coletivamente, discutir, aprimorar projetos e ideias ou encontrar quem salutarmente o questione. A única instância de discussão de Lula parece ser ele mesmo; e agora Janja.

A corrupção petista

Nos primeiro e segundo mandatos de Lula, o governo petista atolou-se em corrupção. Nos dois mandatos de Dilma Rousseff, o governo petista atolou-se mesmo na incompetência. 

O desastre do segundo mandato de Dilma levou ao seu impeachment. E é preciso frisar bem: foi um legítimo processo de impeachment que afastou a presidente Dilma, não foi um “golpe”, como apregoa a narrativa dos inconformados petistas; do mesmo modo que não foi golpe o impeachment de Collor de Mello.

A corrupção desencadeada nos primeiros governos de Lula geraram processos que o levaram à cadeia após julgamentos referendados pelo Supremo Tribunal Federal (STF); o mesmo Supremo que viria a libertá-lo, mudando suas interpretações e permitindo sua candidatura em nova eleição.

Sem entrar na análise dessas decisões erráticas do STF, fato é que somente um líder com grande carisma e popularidade poderia voltar ao poder, pelo voto, após tamanhos descaminhos.

Todavia, parece-me que Lula e seu partido vão chegando ao fim da linha. Lula, pelos descaminhos políticos e também pela idade. E o PT porque, ao deixar-se submeter à autocracia de Lula e insistir nas ideias autoritárias de uma esquerda que fede a mofo, tende a morrer com ele.

Lula e o Centrão

Lula, hoje, enquanto lida com o seu próprio partido com menosprezo e rigor de autocrata, submete-se, no Congresso Nacional, às artimanhas e chantagens do Centrão.

Os lulistas mais devotos tentam justificar essa pusilanimidade do presidente da República diante dos abusos da ala parlamentar fisiológica com a desculpa de que, sem isso, a governabilidade perece. 

Creio que o PT de outrora, de antes do primeiro mandato corrompido de Lula, teria ocupado as ruas para sustentar seu programa de esquerda, em vez de ceder às chantagens dos congressistas oportunistas de plantão. 

A velha esquerda e a nova esquerda

De um modo geral, a forma mais destacada da política brasileira, nos últimos anos, tem sido a lacração na internet. E esse é mais um motivo do declínio de Lula e do PT: ambos são analógicos. 

Na verdade, a esquerda brasileira é, em sua maioria, velha, analógica e melancólica. Penso que, nessa condição, estão alguns dos esquerdistas mais respeitáveis (nessa categoria de respeitáveis não incluo Lula, que é só velho e analógico; penso aqui em outras personalidades). 

Simpatizo um pouco com a velha esquerda romântica, desiludida e nostálgica, que lutou contra a ditadura, mas antipatizo profundamente com a nova esquerda que hoje faz barulho nas redes sociais. 

A nova esquerda é essa turma woke, identitária, extremista, fanática, meio demente, nutrida por uma estúpida ideologia anti-ocidental.

Enfim, entendo que o PT acabou e que o lulopetismo é uma política em fase de extinção. O que não me entristece. Entristece-me, porém, não ver algo de animador no horizonte. Até o momento, não consigo ver luz no fim do túnel; nem à esquerda, nem à direita.