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Cena de Ainda Estou Aqui. Foto: Alile Dara Onawale

Ainda estou aqui

Eis que chega o dia de escrever meu último artigo do ano. E nesses dias – de festas para alguns, de reflexão para outros, de nostalgia para muitos – senti-me impelida a escrever sobre o filme brasileiro “Ainda estou aqui.”

Não sendo eu crítica de cinema, não escrevo como especialista, apenas como espectadora. E, como tal, já antecipo meu juízo de valor: o filme é bonito, é bem feito, é comovente.

É surpreendente que seja assim, uma vez que o tema da ditadura brasileira já foi tão explorado nas telas que se tornou um clichê pouco atrativo. O referido longa-metragem, porém, teve o grande mérito de tratar o tema sem distorções, sem tornar a arte serva da política.

Daí minha surpresa ao ler, em um desses sites mais à direita, uma crítica superficial e rasteira cujo título é “apesar de badalado pela mídia, ´ainda estou aqui não vale a ida ao cinema.” A referida crítica, maldosa e mal escrita, faz aquilo que injustamente acusa o filme de fazer: deixa a ideologia falar mais alto.

“Ainda estou aqui” não deixa transparecer em nenhum momento qualquer traço de servilismo ideológico. Apesar do pano de fundo político, a pretensão não é fazer proselitismo de esquerda; o filme é um drama, não um panfleto.

Claro que há um componente político, claro que uma mensagem política é passada, mas ela é passada com êxito porque flui naturalmente como algo que se vai depositando em nosso cérebro enquanto nossa emoção está envolvida com sentimentos universais.

O longa-metragem dirigido por Walter Salles, como muitos já sabem, é uma adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva e conta a história de sua mãe, Eunice Paiva (interpretada magistralmente por Fernanda Torres), uma mulher com cinco filhos que teve a vida bruscamente modificada após o sequestro e assassinato de seu marido (Rubens Paiva, interpretado por Selton Mello) por agentes do regime militar.

Uma longa parte do filme é bem gasta retratando “a poética cotidiana na casa da família, que vai sendo gradativamente interrompida pela escalada do autoritarismo”, como bem notou o cineasta Josias Teófilo, em sua resenha na Crusoé.

De repente, seguem-se cenas intermináveis de tensão e a narrativa passa a focar a força de Eunice, a forma como ela passa a conduzir com coragem e firmeza de ânimo a sua vida e a dos seus filhos.

Há um tema que corre em paralelo que, a meu ver, dá o tom especial do filme: o tempo. O tempo em suas várias expressões: o tempo que passa, as memórias que ficam, as memórias que se vão ou que se escondem no fundo da alma, presa no corpo já velho e cansado que sucumbiu ao mal de Alzheimer.

É tocante a aparição de Fernanda Montenegro como Eunice. Aquela que foi a fortaleza moral da família e a protagonista durante todo o filme, aparece, em uma tomada de vídeo, em plano secundário, no canto da mesa, alheia ao burburinho, à azafama do entorno, absorta em si mesma.

O filme, em suma, faz jus ao sucesso. É delicado e profundo. E quisera eu parar por aqui meu comentário, apenas atestando a sua excelência. Mas, assim como apontei a insensatez de um crítico de direita, não me furtarei a apontar o absurdo das críticas da militância da esquerda identitária.

De modo geral, militantes identitários criticaram o filme porque ele abordou o tema da ditadura pelo recorte de uma família branca, abastarda, burguesa, moradora do Leblon.

Foi constrangedor ver o já bastante esquerdista Marcelo Rubens Paiva (filho de Eunice e autor do livro que embasou o filme) ter que dar satisfação sobre isso, no programa Roda Viva, confrontado com a crítica de “questão de classe” e “recorte racial” de um tal youtuber chamado “chavoso da USP”, que viralizou nas redes sociais.

Esse processo autofágico da esquerda por meio do identitarismo é assunto longo, ao qual pretendo voltar em artigo posterior. De momento, chamo atenção para algo que não me sai da cabeça: todo esse drama que os brasileiros enfrentaram entre 1964 e 1985 e que hoje rememoram através da arte é a realidade atual dos nossos irmãos venezuelanos.

Quem se compadece verdadeiramente das vítimas da ditadura brasileira deveria se compadecer igualmente das vítimas da atual ditadura venezuelana. Que uma ditadura tenha sido de direita e que a outra seja de esquerda, pouco importa. Já passa da hora de amadurecermos como nação democrática e livre. Livre de ideologias perversas que justificam tais aberrações e atrocidades.

Há muitos “Rubens Paivas” sendo mortos pelo regime de Nicolás Maduro; há muitas mulheres como Eunice, suportando a dor da perda de seus maridos e seus filhos sequestrados, torturados e assassinados por esse cruel regime, que já se vai tornando pior do que uma ditadura e se transformando em um Estado totalitário.

Aos que criticam os negacionistas da ditadura militar brasileira e que, com razão, combatem os reacionários que pretenderam reinstaurá-la, fica o meu apelo para que condenem toda e qualquer ditadura, inclusive aquela que se diz socialista.

Só a matemática e o antidoping salvarão o Brasil

Só a matemática e o antidoping, juntos, podem ser a salvação do Brasil. Não há outra explicação para as discussões que estamos vendo em torno da reforma tributária. Ou a pessoa não entende matemática básica, ou está dopada. Aliás, em muitos casos devem ser as duas coisas ao mesmo tempo.

A prova disso é a bagunça geral. Até sites de fofoca, que normalmente se dedicam a flagrar traições de famosos ou criar polêmicas sobre a vida alheia, resolveram entrar no tema da reforma tributária. Para quê? Para bater no deputado Nikolas Ferreira, que está contra a proposta. Dá pra acreditar?

Fico pensando: será que não tem uma separação de casal para noticiar? Nenhuma atriz resolveu falar que faz algo ousado no sexo só pra chamar atenção? Nenhum famoso foi flagrado traindo? Não. O jeito foi recorrer à reforma tributária e ao Nikolas Ferreira. Jamais sugeriria que o PT estaria instrumentalizando artistas e sites de fofoca para reforçar sua narrativa, né? Nunca. Só parece que tá faltando fofoca no Brasil mesmo.

Voltemos ao problema da reforma tributária: o mais grave de tudo é que estamos a caminho de pagar o maior imposto do mundo. O Brasil aceita isso como se fosse normal. E pra quê? Pagar o maior imposto do mundo deveria significar viver em um país onde o serviço público funciona impecavelmente. Mas o que temos em troca? A segurança pública é uma tragédia, saúde e educação básicas precisam ser pagas no setor privado, e andar com celular na rua virou risco de vida. Qual o retorno? O que justifica pagar tanto?

Ainda assim, é importante saber que há um outro lado da questão. Alguns dizem: “não é o que a gente queria, mas é melhor do que nada.” A reforma é mais ou menos como uma Novalgina para alguém atropelado por uma betoneira. Não resolve o problema, não coloca o paciente de pé, mas é melhor do que nada. E, no Brasil, onde o caos tributário é a regra, só a perspectiva de saber exatamente quanto imposto estamos pagando já é um avanço. Hoje, a maioria das pessoas não faz ideia de quanto paga. Isso só é possível porque o país não ensina matemática de forma eficiente. Se soubéssemos calcular, talvez houvesse protestos diários nas ruas.

O que a reforma traz, de fato, é mais clareza. Muitos dizem que, ao verem com mais nitidez o tamanho da carga tributária, as pessoas talvez comecem a reagir. Mas será que isso basta?

Lula não cansa de falar que sempre sonhou com uma reforma tributária que tire dos ricos para dar aos pobres. Mas uma coisa é certa: a reforma Robin Hood, redistributiva, nunca vai chegar com o PT. Lula é quem mais governou o país neste milênio, três vezes. O PT teve outros dois mandatos. Se não fez a tal reforma quando a economia estava em alta, não vai fazer bem agora, quando está arrastando o país para o buraco.

Foto: Ali Haj Suleiman

O lamento da esquerda pelo fim da ditadura de Bashar Assad

Em várias cidades da Síria, multidões fizeram festa para celebrar o fim da ditadura de Bashar Assad. Especialmente em Damasco, a capital, milhares de pessoas ocuparam ruas e praças para expressarem alegria e júbilo pela destruição de uma tirania brutal que, passando de pai para filho, já durava mais de 50 anos.

Tais manifestações foram registradas, com abundantes imagens que percorreram o mundo pelos canais de TV e pela internet. Não obstante, parte da esquerda desprezou o povo sírio, declarou a derrota de Assad como trama pérfida do imperialismo e derramou-se em desalentado pranto pelo fim de uma das mais ignóbeis ditaduras da história.

Certamente, não foi toda a esquerda: existem correntes de uma esquerda moderada, como o trabalhismo e a social-democracia, que conservam o juízo e honram a convivência democrática. Todavia, é a estridente esquerda sul global que se vem fazendo ouvir mais intensamente.

Essa esquerda autoritária, inimiga declarada da civilização ocidental, fez opção preferencial pelas autocracias e chora a ditadura que agora se foi.

Saydnaya, “matadouro humano”

As perversidades do regime sírio estão agora em foco, com destaque para Saydnaya, prisão militar ao norte de Damasco, um local de tortura e matança do regime de Bashar Assad.

Qualificada como um “matadouro humano” por organizações de direitos humanos, essa prisão foi construída pelo pai de Bashar, o então ditador Hafez Assad. Desde então, tornou-se esconderijo de atrocidades, onde milhares de pessoas foram detidas, torturadas e executadas:

“Numa das salas, os corpos dos presos eram esmagados numa prensa…”; “Depois do esmagamento, segundo relatos dos rebeldes, o que sobrava dos cadáveres era dissolvido em ácido”, diz o trecho de uma reportagem da Euro News.

A mesma matéria denuncia uma verdadeira política de extermínio em Saydnaya: “Entre 2011 e 2015, 13 mil pessoas foram enforcadas nesta prisão, de acordo com a Anistia Internacional – várias dezenas de execuções por enforcamento foram ali consumadas todas as semanas.”

Pepe Escobar e Jeffrey Sachs

Nada disso, porém, comove a hipócrita esquerda sul global, cujo discurso tem se concentrado em apontar participação da Otan e de Israel na campanha contra o regime deposto e em lamentar a queda de Bashar Assad como uma derrota na “luta anti-imperialista”.

Pepe Escobar, por exemplo, “jornalista” brasileiro, inflamado defensor da tirania de Putin na Rússia e da tirania dos aiatolás no Irã, definiu a queda de Assad, em entrevista à TV 247, como “um dos espetáculos mais tristes da história” e lamentou o fim da ditadura de Assad como “uma derrota estratégica enorme para a Rússia e para o Irã”.

Já o economista norte-americano Jeffrey Sachs, que se tornou querido da extrema esquerda por sua predisposição contra Israel e os EUA, escreveu o seguinte, em artigo no site progressista Common Dreams: “[…] Sem dúvida, Assad muitas vezes cometeu erros e enfrentou um descontentamento interno severo, mas seu regime foi alvo de colapso por décadas pelos EUA e Israel.”

Como podemos ver, Jeffrey Sachs concede, en passant, que Assad cometeu erros e enfrentou descontentamento. Porém, esta miserável concessão diante dos horrores de mais de 50 anos de atrocidades dos Assad é apenas um cisco em meio a um rio de lágrimas vertidas em honra da ditadura morta ao longo do referido artigo.

O futuro da Síria

Não sendo possível a quem tem bom senso negar a importância do fim de uma tirania de meio século, ainda assim, há reais motivos de preocupação com o futuro da Síria.

Como já amplamente divulgado, as forças rebeldes vitoriosas são compostas por facções heterogêneas que vão de grupos moderados até fundamentalistas islâmicos radicais.

A facção principal, o grupo Hay’at Tahrir Sham (HTS) é uma organização política e paramilitar jihadista. O líder desse grupo, Abu Mohammed Jawlani foi chefe de uma antiga afiliada da organização terrorista Al Qaeda.

Porém, desde que abriu dissidência da sua antiga organização, Al Jolanne passou a dar vazão a um discurso mais moderado e tenta mostrar abertura para o diálogo; se há fortes motivos para preocupação, não é, porém, descabido que se alimentem esperanças.

O presidente Joe Biden mandou mensagem afirmando que os EUA querem colaborar para levar adiante o processo de transição para uma Síria independente e soberana; porém, marcando a posição de continuar lutando contra o Estado Islâmico.

Países europeus como França, Espanha, Inglaterra, Polônia, Itália e Alemanha mandaram mensagens semelhantes, enfatizando a construção da soberania Síria e alertando contra o perigo dos extremismos.

Enfim, querem ajudar. Já os esquerdistas sul globalistas querem atrapalhar. Se pudessem, retornariam com o ditador Assad e reativariam a prisão de Saydnaya.

Parlamentarismo Envergonhado

O Brasil que Lula encontrou ao chegar ao Planalto em 2023 é muito diferente daquele país visto do terceiro andar do Planalto em 2003. Mais do que isso, a relação do governo com o parlamento mudou consideravelmente. O Congresso Nacional acumulou poderes que mudaram de forma profunda o equilíbrio de forças dentro da política, tornando a tarefa de governar algo muito diferente de duas décadas atrás.

Ao longo dos anos, o Congresso Nacional se apropriou do orçamento federal, criando uma espécie de independência em relação ao governo. Se no passado os parlamentares dependiam dos ministros para liberação de emendas, o jogo havia mudado. Agora, nesta nova configuração, os congressistas possuem parcelas significativas das verbas federais em suas mãos, dependendo única e exclusivamente de seu relacionamento legislativo e especialmente um bom trânsito com os comandantes da Câmara e Senado.

Esta mudança atingiu a dinâmica do presidencialismo de coalizão em sua essência, ou seja, a barganha entre parlamentares e governo. A troca de emendas por apoio perdeu seu apelo, algo que tornou os congressistas mais independentes e autônomos. O Presidente da Câmara, até então líder dos parlamentares, agora divide poder com o Planalto, como uma espécie de Primeiro- Ministro informal, controlando o destino de recursos e agenda de votações.

Fato é que o Brasil caminhou, desde a gestão de Eduardo Cunha, a passos largos na direção de um modelo que flertava claramente com uma espécie de parlamentarismo, consolidando-se neste caminho na gestão Rodrigo Maia e aprofundando de forma definitiva este processo nos anos de Arthur Lira no comando da Câmara dos Deputados. Se no início era o orçamento impositivo, depois surgiram as emendas de relator, as famosas RP9 e finalmente a consolidação do poder nas mãos dos parlamentares. O resultado foi a menor taxa de renovação da história do Congresso em 2022.

Na verdade, ao fim e ao cabo, as mudanças realizadas pelo Congresso Nacional desde 2015 sepultaram aos poucos o Presidencialismo de Coalizão, tornando o Brasil um país que possui um sistema presidencialista apenas em sentido formal. Isto significa que na prática, atualmente, vivemos um semipresidencialismo, onde o presidente partilha o Poder Executivo com um primeiro-ministro e um conselho de ministros, sendo os dois últimos responsáveis perante o Poder Legislativo.

A distorção gerada por este sistema criou uma espécie de Chefe de Governo no comando da Câmara dos Deputados que não possui qualquer responsabilidade sobre as ações ou resultados de gestão governamental. Do outro lado, sem mecanismos reais de poder, acabamos com governos fracos, sem força de negociação, responsáveis em última instância pelos resultados da administração.

Diante da manutenção deste modelo, talvez seja momento de discutirmos a introdução real de um sistema parlamentar, deixando com o Congresso Nacional, além do seu poder tradicional, a responsabilidade de arcar com os desgastes de governar, afinal de contas, em 1988 o legislador optou por um texto constitucional parlamentarista. Se não for este o caminho, seria prudente restabelecer o presidencialismo tal qual decidido de forma soberana pela população no plebiscito de 1993. Hoje, divididos entre dois sistemas, vivemos uma espécie de parlamentarismo envergonhado que atrasa os rumos do país.

Trump quer seu rosto no Monte Rushmore

A escolha de Donald Trump como personalidade do ano pela revista Time não poderia ser mais óbvia. Qualquer outro nome em seu lugar seria trocar os fatos por uma decisão editorial enviesada pela ideologia. A Time, ressalte-se, nunca fez boa avaliação do presidente eleito dos Estados Unidos. Esnoba-lo, entretanto, ainda mais diante de uma vitória tão contundente, resultaria em perda de reputação. Em comunicado, a revista justificou a definição do prêmio para Trump “por liberar um retorno de proporções históricas, por conduzir um realinhamento político único em uma geração, por remodelar a presidência americana e alterar o papel dos Estados Unidos no mundo”.

Imaginava-se que depois da derrota eleitoral de 2020 e as investigações movidas contra ele, Trump estaria morto na política americana. Mas o magnata manteve o controle das bases republicanas avançando para isolar os integrantes tradicionais que lhe fizeram frente em 2016 e durante seus quatro anos de mandato. O movimento Make America Great Again (MAGA) cresceu de tal forma que as “prévias” do partido foram figurativas. Ele as venceu sem mover uma palha, e escolheu como vice alguém completamente leal e comprometido com sua visão de mundo.

O caminho para o retorno triunfal de Trump à Casa Branca passa por uma série de fatores, sendo o mais importante o desastrado governo Joe Biden. O eleitorado médio foi convidado a fazer uma escolha plebiscitária entre os dois modelos de governo, uma vez que a eleição de 2024 seria uma reedição da de 2020, novamente com Trump e Biden na disputa. Mas a busca de reeleição do atual ocupante da Casa Branca se revelou um erro político medonho dos Democratas, já que ele dava sinais evidentes de declínio cognitivo, o que se acentuou no trágico debate entre os dois.

A incapacidade de Biden resultou na troca burocrática pela vice Kamala Harris, uma figura insossa e rejeitada. Mesmo com toda a mobilização da máquina Democrata, não houve meios de lhe maquiar algum carisma. À medida que sua exposição aumentou, se evidenciaram suas fraquezas. Trump surfou em cima da inabilidade de Harris, colando-a nos erros da administração rejeitada de Biden. Nesse meio tempo, Trump sobreviveu a não uma, mas duas tentativas de assassinato.

Além do contexto político e econômico, Trump explorou até a vitória sobre a morte, materializada na poderosa foto em que surge com o punho cerrado de sangue, cercado de agentes do serviço secreto e sob a sombra da bandeira americana. Uma imagem destinada a entrar para os livros de história.

Trump é tudo, menos imodesto. Quer, como Churchill, “caminhar com o destino”. Se pudesse, ele mesmo mandaria esculpir sua face no Monte Rushmore ao lado de Abraham Lincoln, George Washington, Thomas Jefferson e Theodore Roosevelt. Para tanto, terá de ser bem sucedido nos múltiplos objetivos que traçou. Dentre suas ambições está a de recolocar a economia americana nos trilhos e acabar com a guerra da Ucrânia usando sua capacidade nata de realizar acordos. Sendo bem-sucedido, melhor para seu ego, e também o mundo.

Foto: REUTERS/Orhan Qereman

A Queda de Assad, o ditador da Síria

Tiririca estava enganado. Pior do que está fica sim. E o brasileiro precisa aprender essa lição, ainda que ela se repita exaustivamente diante dos nossos olhos. É verdade que estamos longe das tragédias de proporções inimagináveis como as da Síria, um país que vive uma realidade de devastação completa. Mas será que aprendemos com a experiência? Ou continuamos na perigosa prática de querer “tirar tudo que está aí” sem refletir sobre o que colocar no lugar?

A Síria é um exemplo doloroso do que pode acontecer quando as mudanças são feitas sem rumo ou estratégia. Décadas de ditadura brutal dos Assad deixaram um legado de destruição, sofrimento e um fluxo migratório que supera os grandes desastres das últimas décadas, como o genocídio de Ruanda. Países vizinhos como o Líbano receberam tantos refugiados sírios que hoje uma em cada cinco pessoas no país é parte desse êxodo. No Brasil, as histórias dos refugiados que chegam são de cortar o coração, relatos de famílias destruídas, vidas desfeitas, um trauma humano que não se apaga.

Com a queda do regime de Assad, muitos celebram o fim de um ciclo de horror. Mas comemorar o fim não significa ter certeza de que o futuro será melhor. O que virá a seguir? Um grupo islâmico radical no poder? Uma guerra interna entre facções rebeldes? Talvez, na tentativa de sobreviver, o novo governo suavize seu discurso para manter alianças estratégicas com Rússia e China. A verdade é que ninguém sabe. Mesmo diante da barbárie, ainda pode haver um subsolo de terror, um degrau mais baixo no que a humanidade é capaz de fazer em crueldade e destruição.

E aqui no Brasil, o que temos? Não enfrentamos guerras ou terrorismo, mas convivemos com uma prática política desastrosa: trocar o ruim pelo pior. O brasileiro, cansado – e com razão – das mazelas do presente, frequentemente abraça soluções precipitadas e pensa pouco no que vem depois. O mantra de “tirar tudo o que está aí” tem sido recorrente, sem a preocupação de avaliar se o que será colocado no lugar resolverá, de fato, os problemas. E isso não é exclusividade de uma eleição ou de um partido. É um padrão.

O aprendizado que deveríamos tirar de exemplos como a Síria é simples, mas profundo: mudanças precisam de foco e planejamento. Não basta eliminar algo ruim, é preciso saber o que colocar no lugar. Nós não estamos em guerra nem lidamos com o terrorismo. Se realmente quisermos, conseguimos planejar mudanças.

Pense nisso. As escolhas de hoje determinam o futuro de 2026 e além. Se não formos cuidadosos, o Tiririca terá sua frase eternamente contestada pela nossa própria realidade. Pior do que está fica. E sempre pode ficar ainda mais.

A nova Rota da Seda e a armadilha da dívida externa

Em novembro último, durante a cúpula do G20, no Rio de Janeiro, os governos da China e do Brasil assinaram 37 acordos em diversas áreas, como agricultura, mineração, comércio, infraestrutura, ciência & tecnologia etc. A China importa do Brasil minério de ferro, soja, carne e petróleo, entre outras commodities, indispensáveis para a suas indústrias e a sua segurança alimentar. Ela é o nosso principal parceiro comercial, e somos um dos poucos países do mundo com superávit na balança comercial bilateral.

A caminho do Rio, Xi Jinping participou de outra cúpula, a da Apec (Cooperação Econômica Ásia/Pacífico), na capital peruana, lá aproveitando para inaugurar a primeira etapa de construção do Porto de Chancay, distante 70 quilômetros ao norte de Lima. Esse será, dentro de pouco tempo, o primeiro complexo portuário sul-americano, cujo controle é 100% da estatal marítima chinesa Cosco Shipping Co. As obras foram iniciadas há oito anos, e os investimentos totais estão calculados em 3,4 bilhões de dólares. Chancay faz parte da Nova Rota da Seda (NRS), estratégia de interconectividade infraestrutural — transportes, logística, telecomunicações etc — destinada a ajudar a China a se transformar na maior potência mundial. Pelo novo Porto, navios mercantes chineses descarregarão uma infinidade de produtos manufaturados e levarão de volta matérias-primas preciosas como o lítio, o cobre e, também, a soja, inclusive aquela cultivada no Brasil. O complexo em construção permitirá aos cargueiros da China uma economia de tempo (12 dias) e muito dinheiro. Hoje, as mercadorias sul-americanas precisam subir até o México para transbordo em portos como o de Manzanillo antes de serem embarcadas rumo ao “Império do Meio”. A essa vantagem locacional, junta-se outra, igualmente valiosa: o grande calado (profundidade) da baía de Chancay possibilita a ancoragem de supercargueiros com capacidade para 24 mil contêineres.

Em toda a América Latina, a China vem fazendo negócios bilionários e influenciando pessoas importantes, o que deixa preocupados os Estados Unidos, cuja hegemonia na região nunca tinha sido seriamente contestada. Não é de hoje que políticos americanos como o senador Marco Rubio, Republicano da Flórida, que acaba de ser escolhido por Donald Trump para comandar o Departamento de Estado, procuram alertar o establishment e a opinião pública do seu país para o crescimento da influência da República Popular da China — e de sócios menores desta, como a Rússia —, com riscos para o interesse nacional dos Estados Unidos.

Em 2019, na primeira administração Trump, o então secretário de Estado Mike Pompeo acusava a China de usar os projetos e obras da NRS para expandir sua influência não só na América Latina, como também na Ásia, na África e até em países da Europa Ocidental, como a Itália.

Da parte dos governos latino-americanos, considero, à primeira vista, legítimo buscar parcerias econômicas extracontinentais com a finalidade de minimizar carências históricas (materiais e sociais) às quais Tio Sam raramente se sentiu solidário na prática. Ainda assim, penso que a aproximação entre governos latino-americanos e Pequim mereceria ser avaliada com o devido cuidado, uma vez que são cada vez mais frequentes as notícias a respeito de consequências negativas que vários projetos da NRS estão acarretando para os interesses e a própria soberania de outros países.

Laos

O já citado Pompeo declarara que o regime comunista chinês utiliza práticas opacas, predatórias e corruptas de modo a forçar parceiros economicamente mais fracos a contrair dívidas impagáveis, ameaçando-lhes a segurança mediante o controle de infraestruturas críticas (ferrovias, rodovias, portos e usinas de energia elétrica). Pequim, segundo Pompeo,  seleciona prioritariamente como seus ‘alvos’ governos que terão dificuldade para honrar os empréstimos concedidos pelos grandes bancos estatais chineses, o que acaba obrigando os inadimplentes a ceder seus ativos aos credores.

O exemplo do Laos, no Sudeste da Ásia,  já ficou mundialmente conhecido. Ali, os investimentos totais chineses somam 6,7 bilhões de dólares. Desejoso de modernizar sua precária infraestrutura, o regime comunista daquele pequeno país recorreu ao Eximbank chinês para a construção de uma ferrovia ligando a cidade de Boten, na China, a Vientiane (capital laociana). Paralelamente, o governo tomou empréstimos no valor de 600 milhões de dólares para a construção de usinas hidrelétricas ao longo do rio Mekong. Em 2020, com dificuldade para saldar o financiamento, o Laos teve que ceder 90% das ações de sua empresa estatal de transmissão de energia à China. Hoje, se quiser, Pequim poderá cortar o abastecimento de luz e força a todos os domicílios e empresas laocianos.

Sri Lanka

O governo do veterano ex-presidente e ex-primeiro ministro Percy Mahendra “Mahinda” Rajapaksa foi obrigado a renunciar diante de violentos protestos populares motivados pelo descontrole inflacionário. No poder, Rajapaksa obtivera financiamento do Eximbank da China em valor superior a 1 bilhão de dólares para a construção do porto de Hambantota. Antes disso, o governo da Índia e o Banco de Desenvolvimento Asiático (ADB) tinham sido sondados, mas ambos recusaram a solicitação do Sri Lanka por duvidarem da viabilidade econômica do projeto. Os chineses toparam a empreitada, mas os cingaleses tiveram que aceitar taxas de juros anuais de 6,3%, muito mais elevadas que as de 3% a. a. do ADB.

A passagem do tempo confirmou as previsões pessimistas quanto à rentabilidade da obra. Em 2017, durante período em que Rajapaksa não estava no governo, o Sri Lanka arrendou Hambantota à China Merchant Port Holdings por 99 anos. Com o 1,12 bilhão de dólares recebido pelo arrendamento, o governo cingalês pagou suas dívidas para com credores ocidentais, mas não conseguiu saldar seus compromissos com a China.

Malásia

Durante a década passada, o então primeiro-ministro Najib Razak teve que recorrer à assistência financeira chinesa para cobrir o desfalque bilionário que Razak e seus parceiros deram contra o fundo soberano 1MDB. Os megaprojetos que o governo malaio de então ofereceu à China incluíam o Anel Ferroviário da Costa Oriental (ECRL); a ferrovia de alta velocidade Bangkok (Tailândia)/Kuala Lumpur (capital da Malásia); um oleoduto; um gasoduto; e a exploração de um território federal com o objetivo de transformá-lo em hub turístico e financeiro.

Pequim, com sempre, quis se aproveitar da frágil situação malaia impondo pesadas condições na negociação dos contratos. A população, cada vez mais descontente com essas condições, com a prática chinesa de importar grandes contingentes de mão de obra patrícia para trabalhar nos projetos e também com as seguidas revelações de corrupção, foi às ruas para exigir a destituição de Razak e a suspensão ou anulação de vários contratos.

O portal independente “BRI Monitor”, que publica dados e informações atualizados sobre as falhas de transparência, regulação e governança dos projetos da NRS, foi a minha principal fonte para este artigo.

Em suas investidas diplomáticas que visam reescrever as regras liberais do sistema econômico e político internacional até hoje sustentado pelo poderio dos Estados Unidos, Pequim usa e abusa de uma retórica pró-desenvolvimento soberano das nações do chamado “Sul Global”. Casos como os que eu acabo de relatar revelam a NRS como estratégia tão-somente voltada a redirecionar a dependência desses países, deslocando-a do Ocidente para a China no comando de um ‘eixo revisionista’ também integrado por Estados párias como Rússia, Irã e Coreia do Norte. Que isso sirva de advertência ao Brasil e a nossos vizinhos latino-americanos hoje hipnotizados pelo vislumbre dos ‘negócios da China’.

Barbas de Molho

O ditado “colocar as barbas de molho” é uma expressão que significa a necessidade de paciência, cautela e prudência, algo que se aplica de forma perfeita em relação aos últimos acontecimentos na Síria. Ao se despedir de Bashar al-Assad, o país está livre de um ditador brutal. Entretanto, nada garante que o futuro seja auspicioso, especialmente sob o domínio de Abu Mohammed al-Jolani, chefe do grupo islamista HTS, uma dissidência da Al-Qaeda que assumiu o controle do país.

A Síria é formada pela confluência de etnias e grupos religiosos de difícil concertação, dentre eles muçulmanos xiitas, sunitas e alauítas, drusos, além de cristãos e judeus. Cerca de metade dos habitantes do país é de origem árabe, 15% são alauítas, 10% curdos, aproximadamente 10% são levantinos e os 15% restantes pertencem a diversos outros grupos étnicos, como nusairis, armênios e assírios. Um mosaico étnico-religioso de difícil equilíbrio, especialmente em uma região de constante conflito.

A formatação atual nasceu com o fim da Primeira Guerra Mundial, que repartiu o espólio do Império Otomano mediante o acordo Sykes Picot. Esta divisão arbitrária dos antigos territórios otomanos tem sido, desde então, fonte de instabilidade e conflitos na região. O território atual da Síria e Líbano ficou a cargo da França. O mandato francês se iniciou em 1923 e foi até 1946.

A lógica do Império Otomano, que tolerava etnias, povos diversos, tribos, clãs, sistemas de governança de todos os tipos e valores, com a única obrigação de pagar tributos ao Sultão, havia sido extinta. Se durante quatro séculos, cristãos, judeus, xiitas, sunitas, coptas, drusos, gregos ortodoxos, conviviam dentro das fronteiras do Império sem maiores conflitos, existia agora a perspectiva de criação de um país, onde repousavam diversas nações. Uma receita perfeita para o caos.

A lógica francesa acabou por dividir a Síria em seis territórios, Damasco, Alepo, Estado dos Alauitas, Jebel Druzo, Halay e Sadnjak de Alexandreta, uma divisão que tentava, dentro dos limites possíveis, manter a autonomia étnico-religiosa das regiões. O risco da sobreposição de um grupo em detrimento de outros sempre fez parte da história do país e se tornou um perigo contínuo, porém se transformou em uma palpável realidade com a chegada de Hafez al-Assad ao poder em 1971.

O mosaico étnico-religioso do passado é uma realidade ainda mais intrincada no presente, com ainda sérios agravantes, como o enorme êxodo de sírios que buscou refúgio em outros lugares do mundo. O risco está em o país se tornar mais um protetorado islâmico radical como o Afeganistão ou um novo Iraque. O país, defendido por anos por milícias, detentor de bases russas e aliado preferencial do Irã na região, está mergulhado na incerteza e na possibilidade real de guerra civil ou mesmo o massacre de alguma das minorias que fazem parte deste intrincado jogo de poder.

A queda de Bashar al-Assad é certamente o fim de um ciclo de terror, porém, é também o encerramento de um governo laico que conseguiu durante cinco décadas manter os pilares de unidade de um país fraturado. O futuro pode guardar um governo com traços teocráticos, alianças perigosas e a manutenção dos porões de um regime ditatorial. Como disse, a queda de Assad deve ser celebrada, mas é momento de colocar as barbas de molho.  

Zeitgeist: o espírito do (nosso) tempo

“Um espectro ronda a Europa: o espectro do comunismo”, escreveu Marx, em 1848, na abertura do Manifesto Comunista. Após causar muito terror e desgraça, esse espectro foi, num certo sentido, exorcizado. Mas ele, assim como o nazismo, foi apenas a manifestação de outro espectro mais difícil de afastar: a inclinação humana ao coletivismo e a tendência ao totalitarismo.

O espectro do totalitarismo voltou. Isto já deveria estar claro para uma mente mais alerta. O ódio difuso e mal dissimulado, o resgate de velhas fórmulas de preconceito, o medo arraigado de perder o próprio bem-estar (como se o bem-estar fosse um valor supremo), o delírio febril em torno de líderes e o pouco apreço ao indivíduo real que sofre, vítima do infortúnio ou do ódio de desajustados de pendor autoritário são alguns sintomas desse retorno.

O espírito do nosso tempo requer uma análise mais psicológica do que política. O analista político não alcança as sutilezas do movimento interno das massas.

Psique coletiva

Se considerarmos toda a história da humanidade, a civilização é ainda uma novidade, de modo que não deveríamos nos espantar tanto quando pessoas se comportam de um modo primitivo.

Há duas formas, porém, de nos relacionarmos com o primitivo: atualizando-o psiquicamente por meio da manifestação de seus símbolos e engrandecendo a personalidade pela assimilação de alguns dos elementos dispersos do inconsciente coletivo ou nos deixando subjugar inconscientemente pela sua força.

A psique coletiva compreende as partes inferiores das funções psíquicas, por conseguinte, como explica Carl Gustav Jung, o indivíduo que incorporar inconscientemente a psique coletiva preexistente ao seu próprio patrimônio ontogenético estenderá de modo ilegítimo os limites de sua personalidade, inflando-a, intensificando a importância do ego e levando o indivíduo a uma patológica vontade de poder.

O desenvolvimento da personalidade exige sua diferenciação da psique coletiva a fim de evitar uma nefasta fusão do individual no coletivo e o cultivo espiritual dessa personalidade pelo processo de autoconhecimento é condição para que indivíduos não sucumbam às suas próprias sombras e, sucumbindo, abram as portas para a sombra coletiva.

O nazismo só foi possível porque um enorme número de indivíduos espiritualmente embotados, psiquicamente fragilizados tornaram possível aquela terrível psicose em massa.

Islamismo, identitarismo e o tribalismo anti-universalista

Infelizmente vivemos hoje algo parecido. O massacre perpetrado contra judeus em território israelense em 7 de outubro de 2023 deu uma amostra do que o ódio bestial como sombra projetada pela psique coletiva do Islamismo é capaz de fazer e o suporte que parte do Ocidente deu aos perpetradores daquele massacre deu uma amostra do tipo de violência que a adoecida psique ocidental é capaz de justificar.

Apesar de ser uma religião mais nova que o judaísmo e o cristianismo, o islamismo se expressa como uma religião primitiva, tribal, fechada. Suas práticas, seus cultos, mas principalmente sua moral é incompatível com uma sociedade aberta e em constante evolução. Por isso mesmo encontram nela guarida milhões de almas entorpecidas e ainda imaturas, incapazes de assumir as altas responsabilidades que cabem a um indivíduo autônomo e consciente de si.

Do lado ocidental, o primitivismo aflora na política como sentimento de apego a grupos identitários. Como explica Antônio Risério no seu livro “Identitarismo”, a esquerda atirou longe o marxismo para se associar “tanto ao totalitarismo terceiro-mundista quanto ao obscurantismo religioso dos aiatolás da morte, ao antissemitismo e ao neorracismo”.

Após o vazio ideológico gerado pela crise do comunismo, a nova esquerda “elege o muçulmano ou o negro como arquétipo do “oprimido” e sucedâneo do “proletariado”: “A ditadura iraniana pode prender e matar mulheres, o fanatismo muçulmano pode incendiar homossexuais vivos na Nigéria, os ex-comunistas chineses podem promover campanhas genocidas contra os uigures. E tudo bem: não existe pecado fora dos limites geográficos tradicionais do Ocidente. […] O identitarismo, em seu tribalismo antiuniversalista, conduz-se como se não tivesse absolutamente nada a ver com isso”.

Ocidente e democracias liberais

A cultura ocidental não é superior em um sentido absoluto, pois cada povo e cada civilização tem sua contribuição a dar à humanidade. Mas há de se reconhecer que, do ponto de vista político, mais vale uma sociedade regida pelo direito e pelo respeito à liberdade individual do que sociedades regidas pela sharia ou pelo despotismo oriental.

A superioridade política do Ocidente está na liberdade dada ao indivíduo sob parâmetros éticos universais. Não se chegou a isso de uma hora para outra. Sua conquista, tanto no sentido das lutas concretas, quando dos esforços intelecto-morais para concebê-la, confunde-se com o próprio desenvolvimento civilizatório.

É um pouco nesse sentido que penso deva ser lido o clássico de Francis Fukuyama, “O fim da história”, ou seja, não no sentido de um fim concreto da história ou da perenidade de uma forma muito específica de regime político, mas como a intuição de que o impulso moral que está na base das democracias liberais não pode ser eliminado porque há algo de essencial nessa concepção política ocidental que é a democracia.

Paradoxalmente, sua essência é sua própria incompletude ou abertura, como explica o filósofo francês Henri Bergson, para quem o ideal democrático é originalmente religioso, é o eco político do apelo à fraternidade lançado pelo cristianismo. O apelo é definitivo, a resposta a ele depende da humanidade.

Homem primitivo e sociedade fechada

A democracia é, segundo Bergson, de todas as concepções políticas, a mais distante da natureza, a única que transcende, ao menos em intenção, as condições da sociedade fechada. Atribuindo ao homem direitos invioláveis, ela pede também ao homem uma fidelidade inalterável ao dever, uma capacidade de ser livre e autônomo, legislador e sujeito, um cidadão ideal, tal como queria Immanuel Kant.

Mas o homem, infelizmente, está mais perto da natureza do que do seu ideal. E o recrudescimento para o primitivismo das sociedades fechadas é uma ameaça constante que não pode ser menosprezada.

A sociedade fechada é aquele onde seus membros são indiferentes ao resto dos homens, estão sempre prontos a atacar ou a se defender, restritos a uma atitude de combate. Para ela, faz-se necessário um chefe que estabeleça, de um lado, o comando absoluto e, de outro, a absoluta obediência.

Autoridade, hierarquia e fixidez são as marcas de uma sociedade primitiva, que se reproduzem em sociedades não-democrática de qualquer época. A sedução que uma tal estrutura social ainda provoca em muitos é uma prova de que, por trás do verniz civilizatório, o instinto primitivo ainda pulsa em nós. Há “um instinto profundo de guerra que recobre a civilização”, explica Bergson.

A força do indivíduo

Estamos, então, condenados à fatalidade da guerra, ao retorno ao primitivismo das sociedades fechadas? Não, se aprendermos a lidar com as disposições da espécie que subsistem no fundo de cada um de nós.

Talvez devêssemos levar a sério a máxima da psicologia analítica segundo a qual algo interno que não se torna consciente acontece no mundo externo como uma sina. Somos nós que fazemos a nossa própria época. “Todo o futuro, toda história do mundo, brota fundamentalmente como uma gigantesca somatória das forças escondidas nos indivíduos”, escreveu Carl Gustav Jung

Deveríamos, pois, exigir de nós mesmos e dos políticos, maior consciência psicológica em vez de projetarmos coletivamente nosso primitivismo.

O avanço tecnológico não nos salvará, se não nos salvarmos de nós mesmos. “A humanidade geme, meio esmagada sob o peso do progresso que realizou”, escreveu Bergson no último parágrafo de seu último livro. “Ela não sabe o suficiente que seu futuro depende dela…”.

A queda da categoria “extremista”

Os democratas comemoram a queda do governo Assad.

Os tolos, os analfabetos democráticos e os infectados pela realpolitik, dizem: “Depois do Assad virão os extremistas. Vai piorar”.

Ora, isso pode acontecer mesmo. Mas é difícil. Veja por quê.

A dinastia Assad não era extremista, no sentido exato do termo: não queria romper as regras do jogo, não queria derrubar o regime. Só que o jogo desse regime, mantido há meio século por Hafez e Bashar, era tenebroso: ditatorial, sanguinário, assassino. 

É improvável que o HTS e outros rebeldes extremistas, se instalando no poder, consigam chegar perto das 800 mil pessoas que sucumbiram sob os governos dos carniceiros Assad (pai e filho). 

Sim, vejam a resposta do Grok, IA do X:

“Sob o governo de Hafez al-Assad, que governou a Síria de 1971 até sua morte em 2000, estima-se que cerca de 300.000 pessoas foram mortas, particularmente durante eventos como a repressão à Irmandade Muçulmana na década de 1980, incluindo o massacre de Hama em 1982.

Sob o governo de Bashar al-Assad, desde que assumiu o poder em 2000, a guerra civil que começou em 2011 resultou em um número significativamente maior de mortes. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) reportou que até março de 2021, o conflito havia causado a morte de pelo menos 388.652 pessoas, com uma estimativa total de quase 500.000 mortes até 2021.

Portanto, combinando as estimativas, pode-se dizer que sob os governos de Hafez e Bashar al-Assad, o número total de mortes pode chegar a aproximadamente 800.000 pessoas, considerando os dados disponíveis e as estimativas de mortes em contextos de conflito e repressão”.

Isso é mais uma evidência de como a categoria “extremista” é inadequada. Ditadores não extremistas podem causar mais prejuízos à humanidade do que rebeldes extremistas

Bastam dois exemplos. A rigor, Stalin e Mao não eram extremistas – não depois que chegaram ao poder. 

Durante o governo Stalin morreram 10 a 20 milhões de pessoas por execuções diretas (durante a Grande Purga dos anos 1930, em campos de trabalho ou Gulags), por fome (especialmente durante a Holodomor na Ucrânia entre 1932-1933, onde milhões pereceram) e por deportações forçadas e outras formas de repressão.

Durante o governo de Mao Tsé-Tung entre 30 a 45 milhões de pessoas foram mortas por fomes (principalmente no Grande Salto Adiante, onde políticas agrícolas desastrosas levaram a uma das piores fomes da história humana), execuções e perseguições políticas (durante a Revolução Cultural e outras campanhas, muitos foram mortos ou morreram devido à tortura ou condições de trabalho nos campos de reforma) e em campanhas de repressão (como as campanhas “Cinco Antis” e “Três Antis”).

Está simplesmente errado dizer todo mal que assola a humanidade vem dos “extremistas”. Putin não é extremista. Xi Jinping não é extremista. Seus alinhados nas democracias parasitadas por populismos, como Obrador e Cláudia, Manuel e Xiomara, Petro, Evo e Arce, Lula e Ramaphosa, não são extremistas. E, no entanto – juntamente com outras ditaduras, como a de Canel, de Maduro, de Ortega e Murillo, de Kim, de Khamenei e Assad (até ontem) – compõem hoje o eixo autocrático: a maior coalizão antidemocrática (contra as democracias liberais) já articulada no planeta em toda a história.

Então estamos “comemorando” não apenas a queda da brutal ditadura de Assad, mas a queda da noção de “extremismo” como categoria de análise.