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Foto: Bruno Peres / Agência Brasil.

Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil

Atenção! Uma farsa está em curso. Querem transformar uma tentativa de golpe de 2022 em uma espécie de ameaça presente. Que os culpados sejam punidos. Mas não podemos polarizar ainda mais a sociedade insinuando que há ameaça atual de golpe de Estado no Brasil quando não há.

A manipulação das notícias sobre o atentado meia-bomba do suicida Tiü França em Brasília e as tentativas de dizer que as articulações de um golpe militar tramado durante o governo Bolsonaro continuam ocorrendo, são tão grosseiras, as versões divulgadas por uma mídia chapa branca tão combinadas e as interpretações de seus analistas tão enviesadas, que só alguém muito idiotizado ou polarizado não percebe uma clara intenção de instrumentalização política do ocorrido.

Não há nenhum risco de golpe no Brasil atual. Nenhuma ameaça crível de abolição do nosso Estado democrático de direito. Atos tresloucados de fanáticos, frustrados com as promessas vãs e as tentativas mal-sucedidas de golpes passados, não são mais uma ameaça real ao regime democrático. A maioria da população, a maioria dos parlamentos e governos e das demais instituições, do Estado e da sociedade, em todos os níveis, não querem isso. Por exemplo, os partidos de centro (como o PSD e o MDB) que venceram as eleições de 2024 – navegando por fora da polarização – não querem isso. Nem o chamado “centrão” quer isso, pois acabaria com seu ganha-pão.

O que pode haver é uma derrota eleitoral do atual governo, como vimos em 2024 e poderemos ver novamente em 2026. Mas isso faz parte da democracia. Tirar o PT dos governos e derrotá-lo nos parlamentos, por meios legais e eleitorais, não é golpe.

Claro que os que, no passado, tentaram dar um golpe de Estado, devem ser processados pela justiça, observado o devido processo legal – o que, infelizmente, parece não estar ocorrendo. Transplantar para o presente uma ameaça passada parece ter o objetivo de justificar procedimentos judiciais de exceção, como decretar sigilo e adotar medidas de força. Além disso, um ministro da suprema corte que teria sido vítima de uma articulação passada não pode ser juiz do caso, sobretudo se não há ninguém com foro privilegiado envolvido.

O que não se pode é criar um clima de resistência com base na hipótese de que há um golpe em curso. Houve, embora muito desarticulada. Não há mais. Os que deveriam resistir naquela época, não o fizeram. Não aderiram nem a um movimento pelo impeachment de Bolsonaro, preferindo correr o risco de mantê-lo para derrotá-lo mais facilmente nas urnas – o que conseguiram, mas com altíssimo risco, por apenas 1,8% de vantagem. Sem a ajuda dos eleitores situados no centro do espectro político, fora da polarização, não teriam conseguido.

Repetindo. Não haverá nenhum golpe de Estado no Brasil, vindo da direita ou da esquerda. O que haverá é um investimento continuado na polarização e um desgaste crescente até 2026. O governo Lula e o PT sabem que é grande o risco de uma derrota eleitoral nas próximas eleições. Então têm que manter viva a “defesa da democracia” contra os golpistas que “ainda estão aí” – e que vêm a ser todos aqueles que não votarão em Lula ou em quem ele mandar. Eles não hesitarão em continuar usando os veículos profissionais de comunicação como assessoria de imprensa e tentarão aprovar uma regulamentação das mídias sociais que corte o oxigênio de quem discorde. Isso poderá acelerar o processo de autocratização do nosso regime democrático, mas não será um golpe em termos clássicos.

Desgraçadamente, porém, estaremos cada vez mais longe de ser uma democracia liberal ou plena.

Guinada Conservadora

É um lugar comum acreditar que eleições municipais são um termômetro para a disputa presidencial. Costumo me descolar desta posição, uma vez que os grandes vencedores de pleitos municipais (assim como seus padrinhos) raramente conseguem relevância no pleito nacional subsequente. Vimos isso em 2012, 2016, 2020 e tudo leva a crer que o cenário deve se repetir em 2024.

Considerando os resultados que emergiram das urnas municipais, entretanto, surge um indício claro de como será o próximo Congresso Nacional a partir de 2027. Isso se explica porque prefeitos e deputados federais vivem uma relação de simbiose completa diante dos mecanismos de funcionamento do sistema político. Deputados precisam dos votos dos prefeitos na mesma medida que estes precisam de suas emendas e nesta dinâmica, a mágica acontece.

Isto se torna ainda mais real diante do protagonismo assumido pelo Congresso Nacional em tempos recentes, tomando o controle do orçamento, seja com emendas de relator, impositivas, secretas ou de qualquer ordem. Ao mudar as regras de efetivação das emendas, o parlamento passou a depender infinitamente menos do governo do que no passado. Se tempos atrás, os parlamentares viviam do acesso e bom relacionamento com os ministérios, hoje a lógica se inverteu. Deputados e Senadores são os senhores de milhões de reais de emendas que dependem exclusivamente de sua decisão.

Nesta nova correlação de forças, as emendas alimentam prefeitos, que em troca canalizam votos para os deputados. Um mecanismo que passa ao largo do governo federal e tem capacidade de reconduzir indefinidamente muitos parlamentares por diversas legislaturas, reelegendo grupos políticos em seus currais eleitorais no comando das prefeituras, a exemplo de como sempre funcionou a chamada “velha política”. O resultado impactou nas urnas: em 2022 vimos uma das menores taxas de renovação da história do parlamento.

Isto significa que os resultados das eleições municipais ainda não respondem quem possui chances de chegar ao Planalto em 2026, porém, fornecem sinais claros sobre que tipo de parlamento que teremos no próximo ciclo. Estaremos diante de um Congresso Nacional de mesmo corte político dos prefeitos eleitos, ou seja, de centro, com perfil ideológico de inclinação à direita.

Este movimento explica o fato de a esquerda, que controla a máquina federal, vencer em apenas uma capital, Fortaleza, e ainda de forma apertada. Em todas as outras onde foi para o segundo turno, foi derrotada. Foram revezes em Cuiabá, Porto Alegre, Natal, Aracaju e São Paulo e ainda em muitas cidades médias. Há um claro descolamento do discurso da esquerda da realidade vivida pelo eleitor, um modelo que não soube se modernizar e perdeu conexão com a população.

Estamos diante da evolução de um quadro que começou a ser desenhado com as manifestações de 2013, passou pela Lava Jato, impeachment e a eleição de Bolsonaro. As eleições municipais de 2024 foram mais um episódio deste processo que tem potencial para inverter o estado atual da realidade de poder em 2026.

Bolsonaro teve medo de peitar Marçal, e Malafaia decidiu atacar os dois

A disputa entre Silas Malafaia, Pablo Marçal e Jair Bolsonaro é muito mais do que um simples confronto de personalidades, é uma manobra estratégica de poder. No mesmo culto em que assumiu a “missão dada pelo Espírito Santo” de derrubar Marçal, Malafaia expôs uma realidade política que muitos ignoram: ele sabe que o cenário mudou e que tanto Bolsonaro quanto Lula já não são os reis indiscutíveis do jogo político.

Malafaia, há muito calejado na política, percebeu que os líderes populistas não têm mais o mesmo impacto que antes. Eles não garantem automaticamente vitórias para seus apoiados mas, ao mesmo tempo, os candidatos não podem se dar ao luxo de falar mal deles. Em São Paulo, Bolsonaro ficou em cima do muro, com “um pé em cada canoa”, enquanto Lula ficou praticamente ausente da campanha de Boulos, mas o efeito foi o mesmo: os candidatos caminharam sozinhos.

Bolsonaro hesitou em apoiar Marçal abertamente, temendo perder apoio de sua base fiel. O presidente preferiu manter distância em várias disputas, como em Curitiba, onde Cristina Graeml concorria e ele não quis tomar partido claro para não prejudicar alianças com outros grupos políticos. Malafaia, experiente em detectar fraquezas, viu essa hesitação como um sinal claro de que Bolsonaro não está disposto a sacrificar nada pelo seu apoio incondicional.

O que ficou evidente para Malafaia é que o verdadeiro peso político dos líderes populistas, como Lula e Bolsonaro, mudou. Seus nomes continuam importantes, mas sua influência direta nas urnas está em declínio. Basta aos candidatos de direita não criticar abertamente Bolsonaro, e o mesmo vale para os de esquerda em relação a Lula. Ninguém quer brigar com eles, mas também não precisam desesperadamente de seu endosso público.

Ao perceber essa mudança, Malafaia se reposiciona de forma contundente, tentando reivindicar um espaço de poder que, segundo ele, é seu por direito. Ele entende que, para muitos, a simples ausência de crítica já basta, e que a era em que o apoio explícito de Bolsonaro ou Lula era essencial pode estar acabando.

Seu ataque calculado a Marçal e sua crítica a Bolsonaro revelam um movimento estratégico para reafirmar sua relevância no cenário político. Malafaia tenta deixar claro que, mesmo em um campo onde todos hesitam, ele está disposto a fazer o jogo pesado.

O lulopetismo vai afundar com suas ditaduras amigas

A ideologia marxista – ou marxista-leninista – já não existe em lugar nenhum do mundo em sua forma original, tendo-se repartido por formas peculiares de esquerdismo; umas mais brandas, outras mais extremas e nefastas.

Algumas dessas ramificações ideológicas vão se prolongando para além dos seus fundadores, como é o caso do castrismo em Cuba ou do chavismo na Venezuela.

No Brasil, a principal ideologia de esquerda ainda é o lulopetismo. Por sobre o respaldo do embasamento sindical do seu início, essa sub-ideologia estendeu seus tentáculos pela sociedade com confessado objetivo gramsciano de hegemonia cultural.

Nesse objetivo, avançou bastante: uma parte da Igreja católica brasileira, vinculada à teologia da libertação, é francamente lulopetista; nas universidades o lulopetismo herdou o intenso ativismo político das décadas de 60 e 70 do século passado; na imprensa há lulopetistas confessos, inconfessos e mesmo os que o são inocentemente, sem nem se dar conta; no ambiente artístico e cultural dá-se o mesmo.

A força arraigada do lulopetismo manteve a viabilidade eleitoral de Lula mesmo quando ele esteve preso. Naquele momento, se fosse elegível, seria eleito mesmo dentro da cadeia.

Em tese, com a eleição de Lula em 2022, o lulopetismo, vitorioso, deveria se fortalecer. Mas é o contrário que está acontecendo; ele hoje definha e se esgarça.

O terceiro governo Lula tem decepcionado muitos entusiastas dos mandatos anteriores. Trata-se de um governo fraco e ruim; sofrível, quando muito. No PT, Lula é forte e age como autocrata; no governo, submete-se às chantagens dos fisiológicos do centrão e é mais governado do que governa.

Lula está desconstruindo rapidamente a tal frente ampla que o elegeu. Nessa desconstrução, aliás, o presidente conta com a peçonha transbordante das alas extremistas do lulopetismo, que atacam com furor qualquer pessoa ou entidade que apresente alguma discordância.

Se ele realmente for candidato à reeleição, a nova frente lulista avançará apenas do PT para as franjas mais extremistas da esquerda; as mesmas que, no meu entender, estão catalizando repulsas que levarão ao esgotamento do próprio lulopetismo.

Visão tosca, primitiva e retrógrada

Convém notar que a frente ampla que elegeu Lula não era uma frente pró-Lula propriamente dita, mas uma frente pró-democracia. A ameaça reacionária representada pelos aloprados bolsonaristas foi entendida, naquele momento, como mais perigosa para a democracia do que o retorno de Lula ao poder.

Por mero pragmatismo e não por convicção democrática, Lula aparenta internamente algum respeito às instituições. Isso porque ele sabe que não contaria com o apoio da sociedade se explicitasse seu ranço autoritário e empreendesse abertamente alguma manobra inconstitucional.

Restou para ele, então, admirar e bajular aqueles que conseguiram estabelecer, lá fora, em seus países, a ditadura que ele não logrou estabelecer aqui. Da Venezuela a Rússia, passando pelo pelo Irã, Lula aproximou o Brasil do que há de mais contrário à civilização, aos direitos humanos, à liberdade e à democracia.

Como corretamente afirmou o professor Denis Rosenfield, em recente artigo, “a sua convicção antidemocrática transparece principalmente em sua visão das relações exteriores”. 

William Waack também foi no ponto quando asseverou que Lula acredita estar do lado certo, inevitável e vitorioso da história, aquele que vai destruir o “imperialismo americano” com ajuda da China e da Rússia.

Lula e sua assessoria internacional, segundo Waack, “entendem a grande ruptura geopolítica atual em linha com um determinismo no sentido de que é inevitável o triunfo do ´Sul´ (os pobres, os emergentes, os espezinhados pela hipocrisia Ocidental) conduzido pela China. Essa visão de mundo parte da premissa de que valores como democracia ou direitos humanos são mero pretexto de países ocidentais para avançar seus interesses, sobretudo econômicos. E que sanções não passam de ferramentas para atrapalhar os contestadores dessa ordem. É uma visão tosca, primitiva e retrógrada.

As ditaduras latinas amigas

A fraude eleitoral na Venezuela foi escandalosa e a violência anunciada é praticada pelo ditador Maduro e seus esbirros sem nenhuma cautela ou pudor; mesmo diante de práticas tão abjetas, o lulopetismo extremista realça a “democracia” chavista e enaltece o ditador Maduro.

Tal discurso, expresso sem rodeios, esfrangalha a capa democrática com que o lulopetismo tradicional tentou se cobrir; e sem essa capa o lulopetismo torna-se imprestável e inviável.

No caso da Nicarágua, as violências da ditadura de Daniel Ortega contra o povo do seu país vieram a ter alguma resposta do governo brasileiro apenas quando a perseguição contra o clero católico chegou ao ponto de o próprio Papa Francisco pedir para Lula intervir.

Como se sabe, a ala progressista da Igreja Católica no Brasil é ponto de apoio do Partido dos Trabalhadores desde a sua fundação. Mesmo que se deva considerar a reação tardia do governo brasileiro aos abusos perpetrados pelo regime nicaraguense, resta patenteada a ferocidade de um ditador que Lula defendeu por muito tempo e que o lulopetismo extremista continua a defender.

O presidente Lula e a ala do PT na qual restou algum juízo já dão mostras de perceber o potencial de desgaste devido ao acovardamento e a cumplicidade diante das tiranias latinas. Apenas por isso começam a esboçar reações diplomáticas um pouco mais condizentes com a bela tradição da escola do Barão do Rio Branco.

Ainda assim, são reações eivadas de cinismo. Celso Amorim, por exemplo, declarou em recente entrevista à GloboNews que não tem confiança nas atas disponibilizadas pela oposição venezuelana. Falta-me a paciência quando leio na imprensa que isso é prudência diplomática. Não é. É maldade, cara de pau, falta de caráter e hipocrisia.

A estratégia de conquista de hegemonia do neopopulismo no Brasil

A “fórmula” descrita neste artigo é a do neopopulismo ou do populismo de esquerda que floresceu, sobretudo na América Latina, no dealbar do presente século, com Hugo Chávez na Venezuela, Lula e Dilma no Brasil, Rafael Correa e Moreno no Equador, Evo Morales e Arce na Bolívia, Fernando Lugo no Paraguai, Cristina Kirchner e Fernández na Argentina, Maurício Funes e Cerén em El Salvador, López Obrador no México, Manuel Zelaya e Xiomara em Honduras, Gustavo Petro na Colômbia – além de Nicolás Maduro na Venezuela e Daniel Ortega na Nicarágua, que viraram ditadores. E além, é claro, de uma exceção, por não ser propriamente populista: o ditador castrista Miguel Díaz-Canel, de Cuba, uma remanescência marxista-revolucionária do século passado.

Mas o que se comenta a seguir vale, mutatis mutandis, para qualquer processo de conquista de hegemonia (inclusive, em parte, pelos intentados pelo populismo-autoritário, dito de extrema-direita) em regimes democráticos eleitorais (e até, como exceção, em regimes liberais).

Antes, porém, é necessário chegar a um acordo sobre os conceitos de hegemonia e populismo, tal como serão empregados neste artigo.

Hegemonia

Hegemonia – na acepção em que o termo é empregado aqui – não é a capacidade de mandar nas pessoas, exigindo e obtendo o cumprimento de ordens. É não precisar mandar. A perfeição é alcançada quando as pessoas pensam sob comando, não apenas quando agem sob comando; ou seja, quando as pessoas obedecem porque acham que é a coisa natural ou normal a ser feita ou assentem sem se incomodar porque se simpatizam com a entidade hegemônica. Por isso o objetivo de todo organismo hegemonista é converter extensos setores da população (no limite, toda a população) em simpatizantes do organismo, ou do seu líder – führer, duce ou condottiere.

Populismo

O termo populismo designa aqui um comportamento político que surgiu no século 21 e que se caracteriza pela divisão da sociedade com base em uma única ou dominante clivagem (povo x elites ou povo x establishment), o encorajamento de uma polarização política a partir dessa divisão (a política praticada como guerra do “nós” contra “eles”) e a ideia (majoritarista) de que é preciso fazer maioria em todo lugar, acumulando forças para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido (ou de um grupo ideológico que faz as vezes de partido). Cabe notar que os populismos contemporâneos não têm muito a ver com os populismos tradicionais do século 20, caracterizados por demagogia, assistencialismo, clientelismo, irresponsabilidade fiscal: embora tais características permaneçam nos novos populismos do século 21, elas não são mais dominantes. Além do estatismo, que já estava mais ou menos presente no populismo antigo, surgiram (ou acentuaram-se) características como o majoritarismo (ou o hegemonismo), o antipluralismo e a formação de entidades tribais em permanente disputa antipolítica. Os populismos contemporâneos são modos de parasitar democracias eleitorais degenerando a política como guerra (eleitoral), para consumir e estiolar substância liberal (sendo, portanto, iliberais ou contra-liberais). Seja para transformar as democracias eleitorais em autocracias eleitorais, seja para impedir que democracias eleitorais avancem no sentido de se transformar em democracias liberais. Existem hoje o populismo-autoritário ou nacional-populismo (Farage, Salvini, Bannon e Trump, Orbán, Le Pen, Wilders, Ventura, Abascal, Alexander Gauland e Alice Weidel, Bolsonaro etc.), dito de extrema-direita e o neopopulismo, dito de esquerda – que será particularmente focalizado no presente artigo.

A CONQUISTA DE HEGEMONIA PELO NEOPOPULISMO NO BRASIL

Vamos descrever a estratégia de conquista de hegemonia comentando o seguinte diagrama que  focaliza, particularmente, o caso do neopopulismo lulopetista no Brasil.

Advertências

Mas é necessário fazer duas advertências antes de começar. A primeira advertência é que, embora possa parecer assim, para alguns, não se trata de uma conspiração e sim de uma co-inspiração. As peças não se encaixam a partir de um plano diretor concebido nas sombras por um grupo secreto ou clandestino e nem se encaixam antes de as possibilidades práticas se manifestarem. Padrões autocráticos que remanesceram no subsolo da consciência de diversos setores considerados de esquerda ou progressistas, em algum momento de sintonizaram e se sinergizaram. Então a estratégia de conquista de hegemonia foi se conformando por composição de partes cognatas ou afins. Isso é o que significa co-inspiração. O PT jamais anunciou uma estratégia pronta e acabada. Mas é possível conectar suas concepções e práticas, propostas, medidas ou tentativas de aplicá-las, de sorte a compor um retrato dessa estratégia.

segunda advertência é que a estratégia de conquista de hegemonia examinada aqui não é extremista (usamos a palavra, embora esse conceito de ‘extremista’ seja inconsistente como categoria de análise), não quer destruir as instituições do Estado de direito e sim ocupá-las e hegemonizá-las, fazendo maioria em seu interior. Não prevê golpes de Estado, muito menos insurreições revolucionárias ou guerras populares – embora auto-golpes possam acontecer ao se configurarem ambientes favoráveis à quebra da ordem constitucional por parte de um governo neopopulista (como ocorreu na Venezuela e na Nicarágua). Mas isso pode ser considerado um desvio da estratégia original, que prevê um tratamento homeopático, não alopático. Para fazer um paralelo com os procedimentos dos velhos alquimistas, é uma via úmida, não uma via seca. Difícil é, porém, para quem não está realmente convertido à democracia (liberal), resistir à tentação de encurtar o caminho quando a correlação de forças se constela francamente favorável.

Um esquema descritivo

No diagrama abaixo estão os elementos principais da estratégia de conquista de hegemonia. É um desenho mais descritivo do que analítico.

A diagram of a diagram of the government

Description automatically generated with medium confidence

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1 – O PAPEL DO LÍDER POPULISTA

Apadrinhar e mesmerizar

Um líder com alta gravitatem é fundamental para dar um curto circuito nos mecanismos de proteção da democracia contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. Ele deprime o sistema imunológico da democracia ao estabelecer uma ligação direta com as massas, bypassando as mediações institucionais, inabilitando seus sistemas de freios e contrapesos. A popularidade do líder é função da sua capacidade de apadrinhar as pessoas (identificando-se com elas e vendendo a ideia de que será capaz de resolver os seus problemas por elas) e de mesmerizar as massas, criando poços de potencial que deformam o campo interativo da convivência social. É como um buraco negro que suga todas as energias da sociedade, sulcando creodos e causando anisotropias nesse campo.

No caso do Brasil, no campo neopopulista, a partir do início deste século, esse papel de apadrinhar e mesmerizar é cumprido pelo líder Luis Inácio Lula da Silva.

O lider populista substitui o povo ao se apresentar como a síntese do povo. Encarnando-se como uma espécie de substituto do povo, o líder populista torna o povo desnecessário. E, pior, todos que dele discordam deixam de ser o (verdadeiro) povo.

Como afirmou o próprio Lula, em fevereiro de 2018, no Twitter:

“Eles estão lidando com um ser humano diferente. Porque eu não sou eu, eu sou a encarnação de um pedacinho de célula de cada um de vocês”.

E isso foi repetido por ele no final de junho de 2024, na mesma mídia social (já no exercício do seu terceiro mandato e quinto do PT):

“Eu não sou só um presidente da República que está junto do povo. Eu sou o povo na presidência da República”.

O último tweet é uma variação do “L’État c’est moi” do monarca absolutista Luis XIV, com um passo adiante: “Je suis le peuple”.

Mais recentemente (em 06/07/2024), Lula declarou em um comício oficial:

“Quando eu estiver fazendo uma coisa errada, ao invés de vocês falarem ‘o Lula está errando’, vocês têm que falar “eu tô errando, porque o Lula é o nosso povo na presidência”.

A principal perturbação causada no campo interativo pelo líder populista é polarizar. Vamos analisar isso do ponto de vista das redes sociais (a referência aqui é à fenomenologia da interação entre pessoas, não às mídias sociais, como Facebook, X ou ex-Twitter, Instagram etc.). A polarização é chamada de afetiva (ou de emocionares – como disposições para a ação, independentemente de concordâncias ou discordâncias entre diferentes escolhas racionais) porque o campo interativo foi deformado. Como foi dito, mas vale repetir, a melhor coisa para deformar um campo é a presença de centros de alta gravitatem envolvidos em uma disputa adversarial (como é próprio dos populismos) que sugam as energias da sociedade parasitando o fluxo interativo da convivência social e sulcando caminhos, aqui chamados de creodos. Tornam-se espécies de buracos negros, onde tudo se abisma. O parasitismo pode, em alguns casos, tornar-se obsessor, quase um vampirismo. Então as pessoas escorrem por esses creodos sem fazer quaisquer juízos sobre suas qualidades e características.

2 – O PAPEL DO PARTIDO HEGEMONISTA

Defender e atacar

Então a primeira providência para conquistar hegemonia – além de dispor de um líder com as características descritas acima – é constituir um organismo vocacionado à hegemonia (ou seja, o organismo deve ser, ele mesmo, hegemonista) composto por militantes habilitados à praticar a política como continuação da guerra por outros meios, dirigidos estes, por sua vez, por um líder populista identificado com o próprio organismo. Ao fazer guerra, defendendo (seus integrantes e aliados) e atacando (seus oposicionistas, dissidentes e inimigos), os militantes tribalizam a política, obrigando todas as demais forças políticas a fazer o mesmo: os sem-tribo ficam completamente inabilitados para interagir no cenário político. E o fato dos outros também se tribalizarem reforça a degeneração da política como guerra do “nós” contra “eles” (ou seja, todos que não são “nós” ou não estejam subordinados à nossa direção).

A manutenção do organismo é sempre o maior imperativo. Organismos desse tipo, uma vez conformados, adquirem certa autonomia em relação às circunstâncias nas quais foram erigidos. Eles criam uma réplica do mundo, como percebeu Hannah Arendt (1951) estudando o totalitarismo (em Origens do Totalitarismo), para dar “a impressão de que todos os elementos da sociedade estão representados em seus escalões”. Porque seu fim último é “organizar” toda a população “como simpatizante”.

A conquista da hegemonia se dá primeiramente na sociedade e só depois no Estado. Uma vez tendo controlado o Estado, o organismo hegemônico avança em direção ao seu propósito de transformar a população em simpatizante da sua causa.

Os militantes então buscam estabelecer sua hegemonia nas mídias, nos partidos (da coalizão hegemonista), nas universidades e escolas, nas corporações (sindicais e assemelhadas), nos movimentos sociais e ONGs (que passarão a atuar como correias de transmissão do organismo hegemônico) e nos órgãos estatais.

Sem um partido com tais características (com “cabeça, tronco e membros” – como disse Lula, revelando que há uma diferença de status organizativo entre a “cabeça” e os “membros” -, ou seja, dirigentes, estrutura vertical de comando profissionalizada – o tronco; e os militantes) não é possível implementar uma estratégia de conquista de hegemonia. No caso do Brasil, os dirigentes e militantes do PT estão construindo e reforçando, pelo tempo de quase duas gerações (44 anos), esse organismo. Sim, isso não surge da noite para o dia, mas requer uma longa e árdua caminhada sujeita a vários percalços (derrotas sucessivas em eleições presidenciais em 1989, 1994, 1998; condenações e prisões dos principais dirigentes partidários por corrupção ativa e passiva, lavagem de dinheiro, associação criminosa ou formação de quadrilha, nos processos do Mensalão e do Petrolão; impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016; prisão de Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, por 580 dias, de abril de 2018 a novembro de 2019).

A seguir uma pequena descrição de como os dirigentes e militantes atuam:

Nas mídias. Os dirigentes e militantes do PT criaram uma rede suja de sites e blogs para vender versões favoráveis ao partido (em 2014 já existiam: Brasil247, Forum, DCM, Opera Mundi, Carta Capital, Pragmatismo Político, O Cafezinho, Viomundo, Tijolaço, Rede Brasil Atual, Plantão Brasil, Outras Palavras, Carta Maior, Caros Amigos, Brasil de Fato, Mídia Ninja etc.). Com o advento das mídias sociais, criaram os MAVs (núcleos de militantes chamados de Mobilização em Ambientes Virtuais) e, mais recentemente, uma espécie de tropa de assalto, o “Gabinete da Ousadia” (por imitação ao chamado “Gabinete do Ódio” do governo Bolsonaro). Com a chegada ao governo (nos mandatos anteriores de Lula e Dilma, mas sobretudo no mandato atual de Lula), o PT passou a comprar a boa vontade dos grandes, médios e pequenos meios profissionais de comunicação com verbas de publicidade, conseguindo transformar alguns deles (inclusive canais de TV) naquilo que se chamava de “imprensa chapa-branca” ou assessoria de comunicação paralela (oficiosa) do governo. Militantes do PT viraram jornalistas e passaram a parasitar as redações de jornais, revistas e TVs. Em geral os oriundos de cursos universitários de jornalismo, de inclinação claramente esquerdista, formaram uma espécie de infantaria partidária. Antigos críticos passaram por uma conversão miraculosa e deram uma volta de 180 graus em sua orientação política (trânsfugas da democracia, de jornalistas, viraram propagandistas). Outros perderam a verve crítica ao poder que caracterizou seu comportamento nas últimas décadas. Outros, ainda, passaram a fazer jornalismo de fofoca, recebendo em tempo real pelo celular, enquanto estão no ar, informações de coxia plantadas por dirigentes partidários.

Nos partidos aliados. Na coalizão de partidos aliados, o PT, desde que surgiu, sempre foi amplamente hegemônico, satelizando as demais agremiações ditas de esquerda (PCdoB, PSOL, PDT, PSB etc.). O PT sempre atuou no campo de seus aliados ideológicos para ser uma espécie de “Central Única da Esquerda”. Internamente abrigou e estimulou uma profusão de tendências com o objetivo de impedir que essas forças políticas se estruturassem como organizações autônomas (e, também, mas não menos importante, para educar os seus militantes na luta interna, preparando-os para a prática da política como continuação da guerra por outros meios – e isso só se consegue configurando o ambiente partidário como um campo de luta interna permanente, quase uma associação de “inimigos íntimos”).

Nas universidades. Nas universidades o PT atua, inclusive por procuração, usando seus aliados satelizados (como o PCdoB), nas organizações estudantis (como a UNE). Mas, sobretudo nas áreas de humanas das universidades federais, o PT tem ampla hegemonia (no exato sentido em que a palavra é definida neste artigo), nos corpos docente e discente. Isso não caiu do céu. Foi construído lentamente – durante décadas seguidas – por um estamento sacerdotal (de professores) para os quais o marxismo, de profissão de fé, virou profissão mesmo para ganhar a vida (e para excluir ou cancelar os que não professavam as mesmas crenças dessa religião laica).

Nas corporações. As corporações sindicais foram o berço do PT – ou um dos berços: os outros dois foram a esquerda marxista-leninista sobrevivente da ditadura militar e a chamada igreja da libertação, que abraçou a ideologia – chamada de teologia – da libertação. O papel principal, porém, foi desempenhado pelo chamado sindicalismo autêntico do ABC paulista e, em seguida, da CUT – Central Única dos Trabalhadores. Em vários períodos da história recente houve tal confusão entre sindicatos, centrais sindicais e partido, que os próprios militantes se confundiam, sem saber direito em que ambiente estavam. Era tudo, para efeitos práticos, a mesma coisa. Delúbio Soares, por exemplo, oriundo do meio sindical, virou dirigente partidário, mantendo o mesmo comportamento de sindicalista (ou seja, guiando-se pela máxima do “manda quem banca” e do uso privado – partidário – de recursos coletivos). Eles diziam – entre eles – que “sindicato é fonte de receita e partido é fonte de despesa”. Não apenas muitos candidatos foram extraídos do movimento sindical, mas boa parte das suas campanhas eleitorais (e aqui entra a maioria dos velhos dirigentes do PT) foi feita com recursos de toda ordem desviados do movimento sindical.

Nos movimentos sociais. Cabe dizer, preliminarmente, que a expressão ‘movimentos sociais’ é incorreta. Em geral são organizações hierárquicas, não movimentos. Organizações que, tais como os sindicatos, atuam como correias de transmissão do partido na sociedade e, inclusive, no Estado. O melhor exemplo é o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (de João Pedro Stedile) e o MTST (de Guilherme Boulos). O MST é uma organização política marxista-revolucionária, abrigada (e escondida) dentro de um movimento social, surgido em 1984. O MST tem direção estratégica e todas as demais características de uma organização revolucionária à moda antiga. Mas – atenção – o MST não é um mero aparelho do PT. As relações estratégicas do MST com o PT existem, mas com o “Partido Interno” (a referência aqui, para quem não se recorda, é ao 1984 de George Orwell). Cabe destaque também para o MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, que é uma espécie de clone urbano do MST, surgido em 1997.

Nas ONGs. Sob o reinado petista as ONGs passaram, como brincou certa vez Manuel Castells, de organizações não-governamentais à organizações neo-governamentais. Sobretudo depois que chegou ao governo central, o PT passou a financiar as ONGs amigas, que dele ficaram dependentes. Cabe destacar aqui, pelo seu papel pioneiro, a ABONG – Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais, criada em 1991, abrigando, em parte, antigos dirigentes e militantes ou simpatizantes de organizações revolucionárias (algumas clandestinas) que ficaram sem seus aparelhos após a repressão da ditadura militar. Parte desses militantes tinham, inicialmente, uma visão crítica do PT, mas acabaram cedendo diante da expectativa do poder com a ascensão de Lula como principal líder da esquerda brasileira e, depois, com sua eleição e reeleição para a presidência da República.

Nos órgãos estatais. Chegando ao Estado, inicialmente pela eleição de parlamentares e executivos municipais e estaduais e, depois, ao governo federal, há uma mudança clara na correlação de forças. Ocupar o governo e estabelecer maiorias nos parlamentos (por qualquer meio, legal ou ilegal, legítimo ou ilegítimo – alugando parlamentares por meio de mesadas em dinheiro, da liberação de verbas para emendas legislativas ou da nomeação de seus apaniguados para cargos públicos) de sorte a poder conduzí-lo é fundamental para conseguir aparelhar a administração pública, as empresas estatais e os órgãos de controle, até – se for possível – as forças armadas e policiais e controlar o judiciário, seja por meio de nomeações legais, seja através de um processo de sedução ou de captura envolvendo, em alguns casos, a oferta de benesses indiretas e, em outros, a chantagem não declarada, mas insinuada, de revelar segredos comprometedores dos não-alinhados. O PT chegou a propor, por decreto (Decreto nº 8.243 de 23 de maio de 2014), durante o governo Dilma Rousseff, a participação assembleísta e conselhista arrebanhada e controlada por “movimentos sociais” que atuam como correias-de transmissão do partido para cercar a institucionalidade vigente e subordinar a dinâmica social à lógica do Estado aparelhado (sim, o lulopetismo aparelhou o Estado com seus militantes em uma proporção jamais vista até então).

3 – O PAPEL DA IMPRENSA CHAPA-BRANCA

Interpretar e disseminar

O tema já foi tratado parcialmente acima, nos comentários sobre o papel dos militantes nas mídias (a infantaria petista nos jornais e TVs). Mas merece ser aprofundado mais um pouco. A chamada imprensa (os meios profissionais de comunicação) cumpre tarefas fundamentais aointerpretar e disseminar notícias favoráveis à estratégia de conquista de hegemonia; ou melhor, ao disseminar suas próprias interpretações como se fossem notícias.

Transformando opiniões em fatos pela repetição e difusão exaustivas, veículos profissionais de comunicação passaram a fazer parte, para efeitos práticos, de uma espécie de “partido ampliado”. Alguns canais de TV – mesmo incorporando alguns comentaristas críticos do governo (contados nos dedos de uma mão) – viraram centrais de abastecimento de munições para militantes e simpatizantes do partido oficial.

Há pesquisas mostrando que os militantes petistas se informam principalmente pela TV, ao contrário dos bolsonaristas, que preferem as mídias sociais e os programas de mensagens. Os petistas nunca abandonaram o sonho de ter um canal próprio de TV (tipo uma TV Pravda). Não deu certo com a antiga TV Lula, nem com as tentativas mais recentes de ter um canal partidário. Agora eles acham que deu certo com a Globo News e adotaram esse canal como se fosse seu próprio espaço de discussão. Por isso ficam tão indignados e intolerantes quando surge alguém na emissora que, destoando da média dos comentaristas, ousa criticar o governo e suas políticas nacionais e internacionais.

Então, quando aparece um analista emitindo opiniões destoantes daquelas legitimações chapa-branca proferidas por outros comentaristas alinhados ao governo Lula, os militantes iniciam imediatamente uma campanha de cancelamento dos primeiros chamando-os de fascistas para baixo (e aqui vêm os palavrões e as ofensas de todo tipo). Parece uma coisa menor, mas não é. Deve-se sempre olhar os sinais, os sinais fortes e os sinais fracos. O processo de autocratização começa sempre assim, ceifando uma flor singular num canto do jardim…

Se a emissora se deixar capturar por essa patrulha do abafa, que visa a espancar a pluralidade, virando uma espécie de Jovem Pan antiga com o sinal trocado, estará prestando um desserviço ao jornalismo e à democracia. A imprensa é uma instituição fundamental do regime democrático. Pode até, eventualmente, ser favorável a um governo, mas jamais pode aceitar ser parte orgânica do seu sistema de governança – como parece ser o caso.

Foi necessário que um contingente ponderável (idealmente majoritário) de analistas e jornalistas políticos interpretassem e disseminassem (broadcasting) versões favoráveis às visões e propósitos do organismo. Mídias comerciais, em alguns casos, transformaram-se em plataformas de lançamento para a guerra nas mídias sociais (ao mesmo tempo em que passaram a ser pautadas por essas últimas). Aproveitando a lição aprendida com os populismos-autoritários, o PT descobriu a importância de infestar as mídias sociais (e os programas de mensagens) com milícias digitais capazes de promover swarm attacks baseados em fake news, para destruir ou chantagear os meios de comunicação tradicionais ou profissionais que não se alinham às diretivas do organismo hegemonista, cancelar os considerados inimigos e reescrever a história a partir da repetição de versões pós-verdadeiras.

É significativo que o PT sempre tenha defendido o controle partidário-governamental (disfarçado de social ou civil) dos meios de comunicação e da internet. Mais recentemente, passou a insistir na proposição de leis (ou de reforma de leis aprovadas no parlamento por intervenção política do Supremo Tribunal Federal) que, a pretexto de coibir fake news, criam simulacros de “ministérios da verdade”).

Não se pode esquecer aqui dos papeis dos institutos de pesquisa de opinião e das agências de checagem de notícias. É evidente que parte dessas instituições é simpática ao partido oficial. No caso dos institutos, para dar um exemplo, basta acompanhar a série histórica de pesquisas de intenção de voto de empresas como o IPEC, sempre com resultados fora (acima) da curva favoráveis ao candidato Lula em 2002 – o que ficou patente após o resultado oficial do pleito. Isso não significa necessariamente fraude, falsificação grosseira dos resultados das pesquisas, mas é operado de modo mais sutil, escolhendo uma base de dados mais favorável, o momento azado para a realização de um levantamento, a ordem das perguntas, o modo como estão formuladas e encadeadas etc. No caso das agências de checagem é a mesma coisa: boa parte delas focaliza mais os adversários do que os aliados do partido hegemonista.

Ainda deveriam ser mencionadas organizações como o Sleeping Giants, supostamente dedicadas a combater discursos de ódio e desinformação, que articulam o boicote (na verdade, a chantagem) a patrocinadores tentando sufocar financeiramente opositores do governo – em muitos casos até com justificadas razões. Mas é inegável que seus alvos são escolhidos seletivamente.

4 – O PAPEL DOS JURISTAS PARTIDÁRIOS

“Legalizar” e legitimar

Foi necessário que um contencioso de juristas estivesse pronto para “legalizar” e legitimar as ações do organismo e do seu líder. O principal papel dos juristas é reduzir problemas políticos a problemas legais, com isso evitando juízos políticos desfavoráveis ao organismo e ao seu líder, posto que, de pontos de vista estritamente legais (em geral procedimentais-formais), sempre há uma maneira de defender que não houve delito. Assim, se um julgamento foi anulado por erros processuais, por decurso de prazo ou pela idade avançada do réu, isso passa a significar que o réu foi absolvido e, portanto, que é inocente.

Exemplos de juristas partidários ou a serviço do partido hegemonista são hoje, no Brasil, o chamado Grupo Prerrogativas e várias associações de juizes, procuradores e advogados pela democracia. O Prerrogativas merece destaque. Não se sabe bem qual é a sua natureza jurídica, se tem CNPJ, se é um “movimento social”, se é uma organização da sociedade civil (uma ONG, como a Transparência – esta última, aliás, alvo de seus ataques). O Prerrogativas não apenas “legaliza” e legitima tudo que Lula faz de ilegal e ilegítimo, mas trabalha também para coonestar – com alegações claramente falsas – comportamentos ofensivos à democracia cometidos por organizações revolucionárias, como o MST (outra entidade de natureza misteriosa). Para todos os efeitos se comporta como uma organização para-partidária: seus membros são petistas ou fizeram campanha para o PT. Se mete em assuntos do poder legislativo: militou contra CPIs (como a do MST). Se mete em assuntos do poder judiciário: fez a defesa do ministro Dias Toffoli na imprensa (para incriminar a Transparência Internacional). Recentemente, o coordenador do grupo, para “legalizar” o que fez Lula em comício pró-Boulos, disse que pedir voto em palanque antecipadamente não afronta a lei pois é liberdade de expressão.

5 – O PAPEL DOS FAMOSOS, ARTISTAS E INFLUENCERS

Empatizar e mitificar

O PT foi o primeiro partido a entender que, no âmbito da sociedade, é necessário que diferentes plantéis de famosos, como os artistas de todas as áreas (atores e diretores de novelas e filmes, cantores, compositores e músicos, desportistas etc.), admirados por extensas parcelas da população, contribuam para aumentar a empatia com o organismo e com seu líder, chegando ao ponto de mitificar este último. Entenda-se bem: todas essas celebridades têm o direito, numa democracia, de apoiar um candidato ou o governo de um partido que julgam mais progressista, mais afeito à proteção dos direitos humanos, mais incentivador do mundo dos espetáculos (sobretudo com verbas oficiais) ou mesmo um representante mais fiel dos pobres. Mas não é disso que se trata aqui e sim do resultado de uma ação coordenada. Tudo isso, que deve parecer espontâneo é, em grande parte, organizado – pelo menos inicialmente – pela força política hegemonista. Ultimamente, passaram também a cumprir importante – e decisivo – papel os chamados influencers, como Felipe Neto.

O papel dos famosos, artistas e influencers, como foi dito, não é só gerar empatia pelo líder (Lula) e obter votos para ele quando se candidata, mas também mitificá-lo. Lula seria mais do que uma espécie de líder genial dos povos, seria a própria síntese do povo, semelhante a um demiurgo ou uma quase-divindade. E o próprio Lula, como vimos acima, insiste em alimentar esse mito.

6 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES DO JUDICIÁRIO

Nomear e controlar

Todos os neopopulistas tentam controlar o poder judiciário, em especial as supremas cortes de justiça dos regimes que parasitam. Alguns regimes, que já viraram ditaduras (como os da Venezuela e da Nicarágua), destruiram completamente a independência da justiça e passaram a demitir juízes de carreira ou contrários às suas investidas e a indicar seus esbirros para ocupar os tribunais. Mas outros governos neopopulistas, que parasitam regimes que ainda são considerados democracias (como a Bolívia e não se sabe em que medida o México e Honduras) também intervêm no poder judiciário. Em geral, os objetivos são legalizar a acumulação de mandatos falsificando a rotatividade democrática para se delongar nos governos e, em seguida, reformar as decisões parlamentares contrárias aos seus interesses.

O PT também nomeia membros que lhe são simpáticos no poder judiciário (sobretudo no STF, TSE e STJ) e, inclusive, militantes, como fez com o ex-advogado do partido (Dias Toffoli) e de Lula (Cristiano Zanin) para a suprema corte. Mas vai além. Atualmente (2023-2024), verificando-se minoritário no parlamento, nas mídias sociais e nas ruas, o PT busca compensar essa correlação de forças que lhe é desfavorável “governando” com o STF, ou seja, reformando, no “tapetão”, decisões do Congresso que prejudicam sua estratégia.

No Brasil, particularmente, há um perigo ainda maior: a normalização da atuação política do poder judiciário. Dada a constatação de que não basta não violar as leis para proteger a democracia, abrem-se dois caminhos. O primeiro, liberal, é um pacto social, mesmo que tácito, de respeito às normas não escritas. O segundo, não-liberal, é retomar a perigosa ideia de democracia militante, sobretudo no judiciário. As formulações de ‘democracia militante’ e de ‘soldados da democracia’, são um ataque frontal ao coração da democracia. Sim, são necessários agentes democráticos, mas eles são polinizadores, fermentadores, netweavers – não combatentes. Não podem existir milícias democráticas. A política democrática não é guerra e sim evitar a guerra.

O problema é que vai crescendo, entre membros do poder judiciário, a ideia autoritária de “democracia militante” para combater – preemptivamente – ataques à democracia. Se a Justiça vira militante, ela se ideologiza. Deixa de ser imparcial ao esposar uma interpretação particular. E fica então vulnerável a ser controlada, direta ou indiretamente, por um partido.

7 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES NO PARLAMENTO

Eleger e conduzir

Aqui se trata de eleger o maior número de pessoas para os parlamentos, sobretudo para o Congresso Nacional. O objetivo é fazer maioria nas casas legislativas. Como isso é difícil de ser obtido com força própria ou com forças do próprio campo populista de esquerda e como um partido hegemonista é avesso à alianças (ou melhor, faz alianças quando está fraco para ficar mais forte e, ficando mais forte, mata seus aliados ao final), a tarefa de conduzir o parlamento usa todos os tipos de recursos para aprovar suas pautas e para eleger os presidentes das mesas legislativas. Na história recente do PT temos o exemplo do Mensalão (uma espécie de contribuição regular, não obrigatoriamente mensal, para alugar representantes fisiológicos ou corruptos de outras siglas levando-os a votar com o governo). Recentemente o uso de expedientes como esse ficaram mais difíceis no Brasil com o aumento do poder do parlamento sobre o orçamento (as emendas compulsórias e o chamado orçamento secreto).

8 – O PAPEL DOS MILITANTES E SIMPATIZANTES NO GOVERNO

Eleger e aparelhar

Eleger governantes (executivos) – para ter o poder de nomear e demitir – é central na estratégia do neopopulismo lulopetista. O neopopulismo chega ao governo pelo voto e depois tenta se prorrogar no governo por tempo suficiente para conquistar os centros de decisivos de poder. Aparelhar tudo com militantes e simpatizantes partidários é fundamental: na administração direta, nas estatais, nos órgãos de controle e, se for possível, nas forças armadas e policiais.

É por isso que um partido hegemonista é tão avesso a autonomia de órgãos de Estado, como o banco central, as agências reguladoras e outros órgãos de controle, pois são uma restrição ao seu poder de mandar (nomear e demitir), governamentalizando e partidarizando instituições que deveriam ser de Estado e não de um governo particular. A estratégia do neopopulismo prevê uma privatização partidária da esfera pública.

Uma vez controlando o governo e os órgãos chaves do Estado, o processo de conquista de hegemonia volta-se novamente para a sociedade. Caberá então ao Estado, controlado pelo organismo hegemonista, educar a sociedade para estabelecer sua hegemonia de longa duração sobre ela.

Educar é tudo em um processo de autocratização não-disruptivo (ou seja, que não adote as vias do golpe de Estado ou do auto-golpe, da insurreição ou da guerra popular). Platão, o patriarca do pensamento autocrático ocidental, lançou os fundamentos dessa ação na sua distopia (ou retropia) totalitária, incorretamente intitulada ou traduzida como A República. Não havia, em Platão, um projeto propriamente político e sim um projeto pedagógico, um projeto de educação.

Está certo! Quem quer conquistar hegemonia não se dedica propriamente à política. Seu objetivo é extra-político. Hannah Arendt (1951), em obra ja citada aqui, estudando as maiores experiências autoritárias do século 20, concluiu que “um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe”. Só um movimento totalitário que consiga se materializar como governo totalitário pode obter, ainda que temporariamente, os resultados de uma autocratização total. Mas isso não significa que movimentos, governos e regimes autoritários mais brandos não contenham alguns (ou muitos) dos traços que caracterizam os totalitarismos.

Limitações da estratégia neopopulista de conquista de hegemonia

A estratégia de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar “por dentro” o “DNA” da democracia, tem muitas limitações.

Os populistas contam com a sua capacidade de permanecer nos governos que conquistam eleitoralmente, violando a rotatividade ou alternância democrática. Eles têm razões para acreditar nessa resiliência. Nenhum partido populista, seja considerado de direita (nacional-populista) ou de esquerda (neopopulista), sai facilmente do poder apenas pelo voto. Os exemplos são fartos.

À direita. o partido de Viktor Orbán não saiu: ele foi reeleito. O partido de Recep Erdogan não saiu: ele foi reeleito. O partido de Narendra Modi não saiu: ele foi reeleito. O partido de Vladimir Putin não saiu: ele foi reeleito. No campo do populismo-autoritário o partido de Donald Trump é uma das poucas exceções: saiu, mas deslegitimou a vitória de Joe Biden e está tentando voltar à presidência dos EUA com amplas chances de vitória.

À esquerda. O partido de Daniel Ortega, na Nicarágua, não saiu: ele foi reeleito n vezes. O partido Hugo Chávez e Nicolás Maduro, na Venezuela, não saiu: o primeiro faleceu e o segundo, seu sucessor, foi reeleito n vezes. O partido de Rafael Correa, no Equador, não saiu: ele foi reeleito e emplacou seu sucessor Lenin Moreno. O partido de Evo Morales, na Bolívia, não saiu: ele foi reeleito n vezes até que sofreu um contra-golpe parlamentar em reação à sua tentativa de auto-golpe e, depois, elegeu seu sucessor Luis Arce (do mesmo Movimento ao Socialismo) com o qual se desentendeu. O partido de Manuel Zelaya, em Honduras, não saiu: ele foi preso, mas em seguida elegeu sua mulher Xiomara Castro. O partido de Lula e Dilma Rousseff, no Brasil, não saiu: Lula foi reeleito e fez sua sucessora Dilma, que sofreu impeachment. O partido de Fernando Lugo, no Paraguai, não saiu: ele sofreu impeachment. O partido de Maurício Funes, em El Salvador, não saiu: ele fez seu sucessor, Salvador Cerén, da mesma Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional. À esquerda, Cerén é a única exceção (já que Cristina Kirchner, na Argentina, não conta muito ao não ter conseguido emplacar Daniel Scioli seu sucessor, talvez porque ainda estivesse em transição do velho populismo peronista para o neopopulismo contemporâneo; mas ela voltou ao poder como vice de Alberto Fernandez cujo candidato a sucessor, Sérgio Massa, perdeu então as eleições para Javier Milei).

Com as exceções, mencionadas acima, que confirmam a regra, nenhum partido que abrigava esses populistas saiu do governo normalmente apenas pelo voto.

Mesmo assim, essa estratégia é de difícil implantação. Em primeiro lugar, porque ela é muito longa; ou seja, prevê um caminho difícil e arriscado, sujeito a imprevistos de toda ordem: legais e extra-legais, eleitorais ou não.

Por exemplo, um líder populista pode não ser reeleito, quebrando a continuidade da estratégia. Pode sofrer impeachment (como ocorreu com Fernando Lugo, no Paraguai, em 2012 e com Dilma Rousseff, no Brasil, em 2016). Seu principal líder pode ser preso por corrupção e outros crimes (como ocorreu com Lula, no Brasil, do início de 2018 ao final de 2019, ficando impedido de concorrer novamente). Pode ser vítima de um golpe ou contra-golpe em resposta a uma tentativa de auto-golpe (como ocorreu com Evo Morales, na Bolívia, em 2019). Pode não conseguir fazer seu sucessor (como ocorreu com o candidato de Cristina Kirchner, Daniel Scioli, na Argentina, em 2015); ou seu sucessor pode não conseguir fazer seu sucessor (como ocorreu com o sucessor de Maurício Funes, Salvador Cerén, em El Salvador, em 2019). Pode se desentender com seu sucessor (como ocorreu com Rafael Correa, no Equador, que entrou em disputa com Lenin Moreno, em 2018 e com Evo Morales, na Bolívia, que se desentendeu com Luís Arce recentemente).

Em segundo lugar, é uma estratégia que coloca desafios quase insuperáveis em países em que a democracia está minimamente consolidada. Depois da chegada eleitoral ao governo, o líder populista precisa ampliar a duração de seu mandato (o que as leis costumam proibir). Para tanto, tem que intervir no judiciário (em geral nas supremas cortes), substituir juízes (ou ministros) por militantes ou simpatizantes de seu partido (o que também não pode ser feito sem violar as leis vigentes). Não havendo – como no caso do Brasil – correlação de forças favorável que permita uma quebra do arcabouço legal, rasgando-se a Constituição, a solução é eleger sucessores do mesmo partido por tempo suficiente para alterar a composição das cortes de justiça lentamente (um por um) – o que leva à primeira dificuldade apontada acima (a extensão característica desse caminho).

Consideradas essas duas primeiras dificuldades, é explicável que partidos e líderes neopopulistas tenham cedido à tentação de converter seus regimes em ditaduras encurtando o caminho para a tomada do poder (como aconteceu na Venezuela de Chávez e Maduro e na Nicarágua de Ortega).

Outro desafio, que pode ser quase insuperável em algumas circunstâncias, é conseguir o controle das forças armadas e policiais. Em países – como, novamente, o Brasil – em que essas forças são antipáticas às ideias e práticas populistas de esquerda, isso requer também um longo caminho de intervenção legal nas listas de promoção de oficiais superiores, de mudança dos currículos da formação militar e de troca dos professores ou instrutores encarregados dessa atividade. A direção nacional do PT chegou a colocar a necessidade dessas providências, mas não teve força suficiente para levá-las a cabo.

Há ainda o desafio de conseguir recursos de monta, suficientes para financiar as operações dos militantes em todos as áreas de atividades, na sociedade e no Estado. Isso, em geral, abre um flanco legal (criminal). Não por acaso, muitos populistas de esquerda foram acusados de corrupção ativa e passiva, peculato, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha (ou de organização criminosa), sendo então processados, condenados e presos. Não aconteceu somente no Brasil, onde todos os principais dirigentes petistas – sobretudo presidentes, ex-presidentes e tesoureiros da organização – acabaram encarcerados.

Por último, há o desafio de montar uma coalizão internacional de apoio. No âmbito da América Latina isso foi feito com o Foro de São Paulo e várias outras iniciativas oficiais (tipo Unasul), ou mesmo oficiosas ou informais. Com a ascensão de um eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã, provavelmente Turquia, Hungria, Síria e outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, talvez Bharat, Cuba, Venezuela e Nicarágua), ficou mais fácil alcançar tal objetivo, inclusive via BRICS (uma articulação política escondida sob a fachada de bloco econômico, coalhada de ditaduras e regimes eleitorais parasitados por populismos em que não figura nem uma democracia liberal) ou via o delírio chamado Sul Global (um substituto do velho terceiro-mundismo anti-imperialista), mas abre um flanco político perigoso que afasta os regimes eleitorais parasitados por governos neopopulistas (México, Colômbia, Honduras, Bolívia, Brasil, África do Sul etc.) do concerto dos países democráticos, sobretudo das democracias liberais (EUA, União Europeia, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá, Barbados, Costa Rica, Suriname, Chile, Uruguai, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia). Ou seja, os países que tomam esse caminho perdem o discurso de que são democráticos ou de que estão defendendo a democracia ao polarizar seus ambientes políticos internos sob o pretexto de combater o populismo-autoritário (convertendo falsamente todos os que não estão subordinados às suas diretivas em extrema-direita, com o objetivo de impedir o surgimento de oposições democráticas).

É na política externa que o lulopetismo revela claramente o seu caráter não democrático – o que vale também para seus homólogos no campo do populismo de esquerda. Todas essas vertentes populistas: são contrárias (ou indiferentes) ao fortalecimento da União Europeia; discordam do apoio político, financeiro e militar à Ucrânia invadida pela Rússia; não apoiam as sanções a Putin; não apoiam a democracia isralense (não se fala aqui de apoiar o governo populista-autoritário de Netanyahu e sim de defender a único regime democrático do Oriente Médio); não condenam claramente o terrorismo do Hamas, do Hezbollah e do IRGC (a Guarda Revolucionária Iraniana ou Pásdárán); não repudiam o antissemismo (quando disfarçado de antissionismo); não defendem Taiwan contra as ameaças de invasão e anexação da ditadura chinesa; não defendem as democracias liberais contra as investidas do eixo autocrático; e não recusam o anti-americanismo (pelo contrário, o reforçam). Esses posicionamentos, de verificação bem prática, são suficientes para definir um caráter político avesso à democracia.

O fato de o nacional-populismo ou populismo-autoritário, dito de extrema-direita, ser uma ameaça (social) de curto prazo, mais agressiva e boçal à democracia, não normaliza, nem minimiza, a ameaça (política) de médio e longo prazos, do neopopulismo dito de esquerda.

REUTERS/Amanda Perobelli

A luz e a lama no Rio Grande do Sul

Por mais que tentemos escrever sobre solidariedade, as palavras não são suficientes para expressar a beleza de um gesto humano no momento em que o semelhante mais precisa.

O que fica de uma tragédia como essa, que atingiu os nossos irmãos do Rio Grande do Sul, além da lama, da aflição e do medo? Fica o gesto de quem estendeu a mão, de quem entregou um cobertor, de quem arriscou a própria vida, de quem cedeu seu tempo, de quem juntou alguns pertences para doação no intuito singelo de colaborar, o mínimo que fosse.

Diante de uma tragédia, o que se mostra além do caos, é o ato genuíno de compaixão, que nos lembra daquilo que nos foi ensinado em parábolas cristãs mas que pouco sentido fazia até que nos deparamos nós mesmos com o bom samaritano que cada um pode ser quando a frieza do seu coração se dissipa diante do sofrimento do seu próximo.

O que podemos fazer também em respeito à dor dos gaúchos é limitar nossos comentários maledicentes, educar nossa língua ferina, refrear nossa necessidade infantil de apontar o dedo para este ou aquele político em especial, como se houvesse um único culpado para uma catástrofe ambiental na qual todos estamos enredados.

Tampouco é pertinente insistir em teorias ideologizadas que utilizam as mudanças climáticas para justificar radicalismos que nada têm a ver com a questão ambiental.

O que nos falta é coragem para enxergarmos que estamos todos juntos em um mesmo barco que afunda. Somos partícipes de erros e irresponsabilidades coletivas, mas somos, sobretudo, responsáveis pelos nossos próprios atos.

Cada um de nós tem um papel a realizar nesse ensaio cacofônico para que ele se torne uma sinfonia. Cada um de nós é um instrumento que pode se afinar e se harmonizar a fim de ser utilizado por Deus para soerguimento da terra convulsa. Isso pressupõe liberdade e responsabilidade.

Não é livre aquele cujo pensamento está subjugado à ideologia da hora ou cujas ações têm por móbil somente o autointeresse, desconsiderando o apelo ao bem comum, ao cuidado com o outro.

A solidariedade não se submete a partidarismos; a luz que brota do coração humano quando ele se vê fortemente inclinado em direção ao próximo que necessita de ajuda não se confunde com o holofote que jogam sobre si aqueles que se aproveitam das calamidades públicas para a autopromoção.

Todos os políticos deveriam olhar hoje para o Rio Grande do Sul e se envergonhar. Não porque sejam diretamente culpados pelo evento trágico, mas porque aquilo que podem fazer é mínimo diante da catástrofe. E isso mostra quão ridícula é a sua soberba, quão fantasiosa é a sua presunção de que o Estado pode mais do que o povo unido em torno de um objetivo comum.

Tudo o que o Estado brasileiro representa hoje está em descrédito. A opulência, as regalias, as emendas bilionárias, os orçamentos secretos, os desvios por corrupção, os fundos partidários, a ineficiência: tudo isso fica mais gritante diante do cenário de guerra que se avista no Rio Grande do Sul. É como se a lama na qual o estado gaúcho submerge materializasse a lama moral da qual a política brasileira jamais se limpou.

Já passa da hora de acenarmos um adeus para todos aqueles que parasitam a máquina estatal para o seu próprio benefício.

O mundo dá sinais de convulsão: pandemias, guerras, catástrofes ambientais, terrorismo, fanatismo, histerias coletivas: tudo isso soa como uma espécie de trombeta do apocalipse para os mais impressionáveis. Mas, mesmo para os céticos e para os incrédulos, parece prudente aceitar que o momento pede um pouco de reflexão para reajuste.

Aceitemos a nossa falibilidade, paremos um pouco com a nossa intolerância e com a disseminação de um ódio difuso. Voltemos um pouco para o nosso próprio eu a fim de investigarmos onde temos errado e como podemos redirecionar a conduta a fim de nos tornarmos mais úteis. Tragédias como essa deveriam, pelo menos, trazer o espanto filosófico que leva a um minuto de circunspecção e silêncio.

A Vez da Argentina

A eleição de Javier Milei representa um movimento importante da sociedade argentina que resolveu romper com a política tradicional e apostar em algo novo. A tentativa da população representa em síntese uma novidade, porém o agente da mudança é tão importante quanto o movimento, pois indica se estamos diante de uma mudança real ou de apenas mais um aventureiro que conseguiu angariar votos para ser eleito.

Estamos diante de uma onda que já varreu muitos países ao redor do globo. Uma realidade que se estabelece basicamente pelo desgaste da política tradicional e sua incapacidade de prover soluções reais para as demandas da população. O Brasil viveu este ciclo potencializado pelos casos de corrupção expostos pela Lava Jato e a Argentina pela inflação galopante que serviu para despachar mais uma vez o peronismo do poder.

Porém, como disse acima, tudo depende do tipo de líder levado ao poder pela onda antissistema. Os americanos levaram Trump, os salvadorenhos entregaram o poder a Bukele, os britânicos optaram pelo Brexit e os colombianos levaram de forma inédita a esquerda para o poder. Os resultados de cada um deles depende do seu estilo e também dos resultados alcançados no exercício do poder.

Milei é um candidato libertário. Está muito além da leitura rasa de que estamos diante de um candidato (agora Presidente eleito) de extrema-direita. As semelhanças com seu paralelo brasileiro, Bolsonaro, param por aqui. Enquanto Bolsonaro era um deputado corporativista e patrimonialista que jamais teve protagonismo em quase três décadas de presença no parlamento, Milei representa realmente a figura do outsider. Enquanto Bolsonaro passou por oito partidos e não hesitou em se aliar ao centrão e aos conchavos para permanecer no Planalto, Milei fundou sua agremiação e nada indica que vá se aliar a banda podre da política para permanecer no poder.

O Presidente eleito argentino também possui uma forte agenda libertária nos costumes, diametralmente oposta ao conservadorismo social profetizado pelo bolsonarismo. Na economia possui crença fortemente liberal, ao contrário do liberalismo de aparências dos anos Bolsonaro, que vacilou em realizar reformas e especialmente em privatizar. Por fim, parece disposto realmente a enfrentar o perigoso apetite chinês em seu país, iniciativa que ficou apenas no discurso de Bolsonaro e jamais se tornou prática real.

Estas diferenças mostram que estamos diante de um líder de características distintas daquele que a política brasileira produziu e os resultados podem ser diametralmente opostos, com Milei colhendo êxitos e resultados positivos. Porém, o argentino possui diante de si um desafio que nenhum Presidente pós-democracia conseguiu vencer em terras argentinas: resistir ao caldeirão de pressão do peronismo entranhado em todos os setores organizados da sociedade. Fato é que a inabilidade da política tradicional em trazer resultado levou a vitória do antissistema. A onda que varreu o mundo chegou até Buenos Aires. Resta saber se o agente da mudança irá se consolidar ou apenas será parte de mais um capítulo da instabilidade presidencial que se estabelece na Casa Rosada sempre que o país flerta com a mudança.