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Foto: Anton Vaganov/Reuters.

Aliança Washington-Moscou

A atual iniciativa de aproximação dos Estados Unidos com a Rússia,  adversário tradicional, não é um padrão   novo na diplomacia norte-americana. Ações diplomáticas surpreendentes e bruscas já ocorreram anteriormente. Devemos recordar que no pós-segunda guerra mundial houve a reversão das alianças, quando os inimigos, a Alemanha, a Itália e o Japão, países derrotados no conflito mundial, passaram a ser considerados pela diplomacia americana como aliados, receberam apoio para reconstrução e se transformaram em baluartes da nova ordem mundial, liderada pelos EUA.

Essa  nova organização estratégica internacional foi, no entanto, confrontada pela União Soviética e tivemos o período da Guerra Fria, no qual o mundo se dividiu em dois blocos antagônicos. A Guerra Fria caracterizou-se pela confrontação entre os blocos liderados pelos Estados Unidos e pela União Soviética, que disputavam a primazia nos campos ideológico, econômico, tecnológico e geopolítico. Tratava-se de um ”zero sum game ” em que ao ganho de um jogador correspondia direta e simetricamente a perda do outro, mas não havia confrontação militar direta entre os líderes dos dois blocos, os Estados Unidos e a então União Soviética, mas sim por meio de interpostos países.

No entanto, mesmo nesse cenário internacional rígido, o governo americano assumiu em 1972 o risco diplomático de uma aproximação com a China, então parte do bloco sovietico, na forma de uma viagem do Presidente dos Estados Unidos a Pequim, articulada secretamente por Henry Kissinger.

Essa viagem, que procurava causar uma fissura no quase monolítico bloco sovietico da época da Guerra Fria, mostra que há importantes precedentes nas atitudes aparentemente superficiais do atual governo dos EUA. A existência de terras raras e outros minerais estratégicos no território ucraniano ajuda a  explicar a atual ambição americana em ter acesso à Ucrânia. 

A aproximação entre Washington e Moscou causa enorme preocupação na Europa e na Aliança Atlântica, que se sente vulnerável à continuação da agressão russa As populações da Europa Central e do Leste europeu, que estiveram sob o domínio da União Soviética, têm grande temor da Rússia.

O Reino Unido e França têm liderado uma tentativa de reação à iniciativa americana. O Primeiro-Ministro do Reino Unido patrocinou reunião de emergência em Londres com líderes europeus e da OTAN, incluindo Canadá. Nessa reunião ficou clara a decepção com a atitude americana e se iniciou a montagem de preparação de uma estrutura militar independente dos Estados Unidos que possibilite a Europa defender-se da Rússia autonomamente. 

Uma força militar autônoma da OTAN tem como precedente a relação da França com a Aliança Atlântica. Em 1966, em plena Guerra Fria, a França retirou suas forças do comando integrado da organização em busca de independência em relação aos Estados Unidos. Recorde-se que a França desejava principalmente manter suas armas atômicas, a “force de frappe”, força de dissuasão nuclear, sob seu controle. Foi só em março de 2009 que as forças francesas voltaram ao comando da Aliança Atlântica. Durante a guerra na Ucrânia, os europeus reforçaram a OTAN com a adesão da Suécia e Finlândia, países lindeiros com a Rússia, que ficou cercada pela Aliança. 

Os americanos têm considerado a China seu principal adversário  estratégico e tendem a reforçar seu esquema de alianças e seu  “containment” contra Pequim. No entanto, os Estados Unidos mantêm ativas  áreas de interesses comuns com a China principalmente no campo da tecnologia avançada como a produção de semicondutores. Trata-se de um relacionamento com áreas de convergência e divergência entre as maiores potências industriais comerciais e tecnológicas do mundo  A aproximação americano-russa prejudica a China, que tem apoiado, e reforçado, sua aliança com a Rússia durante a guerra na Ucrânia, ajudando-a em relação às sanções europeias e americanas impostas por causa da invasão da Ucrânia.

A OTAN, além de  ter reforçado sua composição com a adesão da Finlândia e da Suécia, tem aumentado também seus investimentos em defesa. No entanto, depois de tantos anos de dependência dos Estados Unidos, sua indústria militar encontra-se fragilizada e necessita investimentos maciços para recuperar sua capacidade, inclusive em relação a munições, setor extremamente dependente do fornecimento americano.

De sua parte, a Europa considera a Rússia seu inimigo estratégico, contra o qual deve se preparar, unir-se e armar-se, sem contar mais com os americanos.

Importante registrar que a ordem mundial inaugurada em 1945 com o fim da Segunda Guerra, que foi patrocinada pelos Estados Unidos e a chamada ” Pax Americana ” deixam de existir e uma nova ordem mundial deve começar. A ordem internacional do pós-guerra tinha como pilares o multilateralismo, ONU, FMI, Banco Mundial, OMC,  OEA, a firmeza americana no compromisso com seus aliados.

Se a suspensão da assistência militar dos EUA à Ucrânia mostra o desmantelamento da atual estrutura de poder mundial, outro golpe na ordem vigente no pós-guerra é a imposição de tarifas unilateralmente pelo governo americano às importações do Canadá e México, países aliados e fronteiriços, além da China. Esses países reagiram imediatamente com tarifas retaliatórias. A imposição unilateral de tarifas destrói o que resta das tentativas de organizar e liberalizar o comércio mundial depois da Segunda Guerra, como por meio do GATT e depois da OMC, que perdeu importância e pode se dizer que está hoje agonizante. 

É interessante registrar que esse novo desenho da realidade internacional apresenta desafios  para a Europa, que se deve defender com seus próprios meios contra a ameaça russa. Ademais, devemos registrar que a OTAN é hoje  extremamente dependente da estrutura de informacao (ou inteligência ) americana. Ainda não se sabe se a organização conseguirá conter a Rússia sem  ajuda americana, mas os sinais são de que a Europa deve tentá-lo, mesmo porque não há alternativas.

A aproximação russo-americana, o recuo militar dos EUA na Europa, e a imposição unilateral de tarifas, representam fissuras, ou abalos, em uma ordem internacional em declinio.

Foto: Getty Images

Nova Ordem Global

Para além das leituras tradicionais, os desdobramentos da visita de Volodymyr Zelensky a Washington sugerem algo mais profundo. Podemos estar diante de uma mudança de fundo na dinâmica da política internacional que tem potencial para mover os pilares da estabilidade global construída no pós-guerra. Este novo equilíbrio representa o retorno ao mundo de competição e equilíbrio entre grandes potências que prevaleceu antes da Segunda Guerra Mundial. É menos um mundo novo e corajoso do que um retorno a uma velha e perigosa dinâmica de poder.

A realidade imposta à Ucrânia representa a quebra de um paradigma importante que pode selar o futuro de diversas nações que depositaram no exterior a responsabilidade por sua defesa. Desde os acordos de Budapeste, que garantiram as fronteiras ucranianas em troca de sua desnuclearização, passando pela garantia da defesa da Europa na forma de um consórcio internacional, a OTAN, e desaguando na dinâmica de segurança de nações como o Japão, Taiwan e Coreia do Sul, jamais a estabilidade global atravessou período de tamanha turbulência e incerteza.

Nesta nova realidade estamos diante da possível consolidação de três pilares, liderados por Estados Unidos nas Américas, Rússia como pivot euroasiático e a China com influência decisiva no Pacífico, caracterizado por um novo balanço de poder. Os custos deste novo concerto seriam altíssimos nas mais diversas frentes, reordenando o equilíbrio global, entretanto, na visão de seus atuais líderes, alinharia seus interesses econômicos, geográficos e políticos. O mundo que lide com isso.

Este novo desenho de poder parece tomar forma na medida que diversos governos estão sendo impulsionados por uma onda populista, possivelmente idealizada, nascida, financiada e construída de forma artificial nas salas de um edifício neobarroco com fachada de tijolos amarelos nos arredores de Moscou, chamado de Lubyanka. Uma estratégia que encontrou simpatizantes dentro de partidos europeus e em líderes políticos nas Américas. Um modelo exportado pela Rússia, mas que sempre foi presente nas autocracias euroasiáticas e no autoritarismo chinês.

A alternativa ao novo desenho de mundo que pode emergir deste reordenamento de forças reside atualmente, única e exclusivamente, na capacidade de resiliência europeia, especialmente no que tange a defesa da Ucrânia, de maneira firme e decisiva. A Europa está diante de seu mais importante desafio desde a Segunda Guerra, aquele que definirá o seu futuro com desdobramentos profundos na geopolítica internacional, inclusive mediante reflexos na soberania dos países asiáticos, na existência de Taiwan como uma nação soberana diante das garras de Pequim, mas também na independência do Japão e na autonomia da Coréia do Sul. Os pilares da estabilidade internacional moveram-se profundamente e a ascensão de um inédito concerto entre as grandes nações tornou-se uma possibilidade real. Se tal movimento se concretizar, a discussão no Salão Oval passará de um simples incômodo diplomático a um marco histórico que pode ter sinalizado o surgimento de uma nova ordem global.

Foto: Sergei Bobylev/Sputnik.

Xeque Mate

Estamos diante de uma partida de xadrez no tabuleiro internacional e Moscou vem trabalhando com foco no longo prazo, com a preparação de jogadas e armadilhas com vistas a atingir seus propósitos. Tudo indica que vem logrando êxito, especialmente diante dos últimos acontecimentos.

Desde que assumiu o poder, Putin tem um grande objetivo, que é a reconstrução do império russo por meio das fronteiras perdidas diante da desintegração da União Soviética em 1991. Em discurso em 2005, pontuou que o colapso da URSS foi “a maior catástrofe geopolítica do século” e que “para o nosso povo, isso se tornou um drama de verdade. Dezenas de milhões de nossos cidadãos se viram fora de nossa Federação”. Reconstruir este espaço se tornou sua obsessão.

Duas décadas depois, a Europa se tornou dependente do gás russo e o país abriu a porta dos conselhos de suas empresas para políticos europeus. Passou a investir em uma máquina de propaganda e desinformação por meio de canais oficiais e não oficiais no exterior, envenenou opositores e encarcerou dissidentes do regime, além de manipular eleições no exterior, seja pelo apoio financeiro ou por meio de estratégias de seus canais de comunicação e informação. 

Isso significa que o Kremlin vem desenhando este caminho há tempos. Uma estratégia como esta é algo preparado de forma meticulosa no longo prazo e agora vem colhendo resultados reais. O enfraquecimento da Otan, a ascensão de governos populistas ao redor do mundo, assim como a consolidação de um eixo autocrático está dentro dos planos traçados por Moscou. Nada, até o presente momento, fugiu do script.

A ação militar sobre a Ucrânia, com a sua invasão, é apenas mais um capítulo desta história. Agora, que tudo se encaminha para um acordo onde o leste do país ficará sob a tutela de Moscou (que já havia tomado a Criméia), será uma questão de tempo para que o Kremlin avance por todo o país. Um aperitivo do que pode vir depois, colocando em risco o Báltico e o Cáucaso antes de ampliar ainda mais seu espectro.

Em 1904, o geógrafo inglês Halford Mackinder desenvolveu a teoria do Heartland. Ele situou esta região na zona territorial que abrange os continentes europeu e asiático, que recebe a denominação de Eurásia. Pela profundidade do território e suas riquezas, aquela nação que controlasse esta faixa de terra e suas saídas marítimas estratégicas, dominaria o mundo. Poucos entendiam de geopolítica como Mackinder, entretanto, ao ler seus ensinamentos, é possível antever cada um dos passos dados por Vladimir Putin. Em face de seu objetivo, claro e bem traçado, vemos que os movimentos do Kremlin estão espalhados em várias frentes, são coordenados e pensados no longo prazo, inclusive incluindo suas alianças e criação de novos fóruns internacionais. Uma arquitetura de poder que vem corroendo as estruturas democráticas do mundo ocidental nos seus valores, lideranças, eleições e decisões, por meio da desinformação, financiamento e infiltração. Se o Ocidente não reagir, o xeque-mate será inevitável.   

Desafios da Geopolítica

Estamos diante de um inédito movimento de abalo das placas tectônicas da estabilidade internacional construídas no pós-guerra. Os níveis de democracia nunca foram tão baixos e governos antidemocráticos nunca foram tão robustos. O risco de mudança real no equilíbrio de forças mundial nunca foi tão presente, em grande parte pelo perfil das lideranças que comandam importantes nações, e a reorganização gerada pelos recentes conflitos. Todo este contexto se tornou peça central para entender o mundo e seu desenho geopolítico em tempos recentes.

No Oriente Médio, uma reação em cadeia desencadeada pelo ataque do Hamas a Israel em 7 de outubro de 2023 impulsionou um ano de mudanças impressionantes. Israel enterrou o Hamas sob escombros, degradou a rede regional de representantes não estatais dos aiatolás, demoliu as próprias defesas de Teerã, e, inadvertidamente, preparou o cenário para que rebeldes islâmicos derrubassem a ditadura de meio século da família Assad na Síria.

Na Ásia, onde a China compete com os Estados Unidos e seus aliados pela primazia, os pontos críticos no Mar da China Meridional, as águas e os céus ao redor de Taiwan e a Península Coreana parecem cada vez mais desafiadores. O ataque da Rússia à Ucrânia é, a julgar pelas ameaças do presidente Vladimir Putin, parte de uma luta para revisar os arranjos pós-Guerra Fria, e ameaça levar a um confronto mais amplo na Europa.

Em outros lugares, uma onda de conflitos — incluindo a guerra civil de Mianmar, uma rebelião apoiada por Ruanda no leste da República Democrática do Congo, uma tomada de poder por gangues que deixou milhões de haitianos em condições de guerra, além da devastação no Sudão — está aumentando a contagem global de pessoas mortas, deslocadas e famintas devido aos combates, que é maior do que em qualquer outro momento em décadas.

Estamos também diante de blocos antidemocráticos mais unidos. Falar de um eixo formal entre China, Rússia, Coreia do Norte e Irã pode soar exagerado. Porém, é preciso pontuar que estamos falando de governos que cada vez atuam em cooperação estreita. Armas iranianas e norte-coreanas, componentes de uso duplo da China, e agora tropas norte-coreanas ajudam a sustentar a ofensiva do Kremlin na Ucrânia. O pacto de defesa que Putin assinou com o líder norte-coreano Kim Jong Un em novembro, vincula Pyongyang, e potencialmente a segurança peninsular, à guerra na Europa.

Aconteça o que acontecer, a queda para a ilegalidade parece destinada a continuar. Os beligerantes darão ainda menos atenção ao sofrimento civil. Outros líderes podem testar se podem tomar pedaços do território de um vizinho. A maioria das guerras de hoje parece destinada a continuar, talvez em alguns casos pontuadas por cessar-fogo que duram até que os ventos geopolíticos mudem ou surjam outras oportunidades para acabar com os rivais.

À medida que o ritmo da mudança acelera, o mundo parece se movimentar para uma nova mudança de paradigma. A questão é se isso acontecerá na mesa de negociações ou no campo de batalha.

Trump e o nó ucraniano

Os eleitores dos Estados Unidos deram uma vitória incontestável ao candidato republicano Donald Trump e ao movimento político que o cerca, conhecido pela sigla MAGA do slogan Make America Great Again usado pela primeira campanha de Trump. Em sua campanha Trump prometeu pacificar a Ucrânia no dia primeiro de sua gestão, descartando as hipérboles naturais de uma campanha eleitoral como se desenha, até o momento, a política do futuro governo para a Ucrânia.

É preciso ter em mente que a solução para a guerra na Ucrânia, ainda que negociada, não será uma reedição das conferências de Yalta e Potsdam nas quais os nascentes superpoderes decidiram os destinos de muitas nações ao findar da Segunda Guerra Mundial. E, qualquer construção negociada terá que balancear uma miríade de interesses alimentados por inúmeras correntes de opinião em cada um dos atores envolvidos. Em outras palavras, Trump e sua equipe terão que lidar com interesses internos de vários grupos nos EUA, com outros atores, incluindo aí, os aliados europeus e a China, além dos cálculos de Putin. E isso tudo sob forte escrutínio da imprensa, da opinião pública e das casas legislativas dos Estados Unidos.

Além de complexa, a situação ucraniana é dinâmica, ou seja, os interesses vão se adaptando aos movimentos dos atores e outras fontes de tensão extra-regional que influenciam e limitam a capacidade de ação dos envolvidos. A gestão Biden, por exemplo, teve dificuldade de implementar uma política de rápida ajuda militar para Ucrânia, uma vez que isso envolve o envio de equipamentos militares, em uso, ou da reserva das Forças Armadas Americanas, o que gera uma série de embaraços e reações no Congresso e na própria máquina burocrática.

A escassez de material bélico, por sua vez, propiciou a manutenção do lento e custoso, em termos de vidas humanas, avanço da Rússia e deu tempo para que o gigante eurasiático encontrasse maneiras de enfraquecer e subverter o isolamento internacional e as sanções. Construindo, por exemplo, seu acordo com a Coreia do Norte, para importação de armas e o envio de soldados.

Há relatos de múltiplas fontes sobre a concentração de forças russas na Ucrânia mostra que pode haver uma ofensiva russa de inverno, se as condições climáticas forem brandas, que deixa claro que para os russos a percepção é que um momento positivo nos esforços de guerra. No front interno a sociedade russa não dá sinais de inquietação e protestos massivos, mesmo com as elevadas perdas humanas e seu sistema econômico tem conseguido se manter funcionando. No contexto regional, a Europa não mostra sinais de compromisso em aumentar sua capacidade industrial bélica e todos esses fatores juntos apontam para uma Rússia, muito pouco disposta a negociar alguma resolução pacífica para a guerra.

O tema paz na Ucrânia tende a ocupar muito da agenda internacional do início de mandato de Trump e pode ser afetado por sua política comercial que tenciona aumentar tarifas dificultando as relações com aliados europeus e com a China, que muitos em seu movimento veem como o verdadeiro adversário estratégico dos EUA no mundo atual.

Diante desse cenário, não obstante uma eventual participação russa em fóruns, conferências e negociações bilaterais, esses esforços só obterão um acordo de paz, que preserve a independência ucraniana, se as circunstâncias pressionarem Putin a escolher a paz revertendo o cenário descrito acima, e esse é o nó que Trump precisa desatar.

Democracia sob Ataque

Como ponto mais alto da agenda política em 2024, a disputa pela Casa Branca deixou recados relevantes, sendo o mais importante delineado pela enorme polarização que tomou conta do país. A realidade vivida nos Estados Unidos não é diferente a qualquer outra nação democrática em tempos recentes e já passou do momento de avaliarmos quais mecanismos vem contribuindo para este movimento de corrosão da democracia.

O 5º relatório do centro de análise de ameaças da Microsoft (MTAC) do ciclo de eleições presidenciais de 2024 revelou que Rússia, Irã e China intensificaram esforços para interferir nas eleições americanas por meio de operações de influência online. O relatório fornece detalhes sobre o uso de vídeos aprimorados por inteligência artificial, desinformação em mídias sociais, ataques cibernéticos para atingir candidatos e mecanismos para interromper o processo eleitoral. Como podemos perceber, este não é um trabalho realizado por grupos isolados, mas por atores que agem em sinergia e sincronia para atingir seu objetivo.

Contas vinculadas à Rússia em plataformas como X, Telegram e YouTube têm espalhado alegações falsas, incluindo vídeos, como aquele gerado por IA acusando Kamala Harris de caçar ilegalmente animais ameaçados de extinção na Zâmbia. Também circularam deepfakes da democrata zombando de uma tentativa de assassinato de Donald Trump e alegações infundadas de abuso sexual contra seu companheiro de chapa, Tim Walz. Como podemos perceber, são conteúdos fortes, com acusações graves que fogem aos parâmetros conhecidos de ataques de uma campanha política.

Grupos iranianos, se passando por americanos, procuraram encorajar eleitores a boicotar a eleição como forma de protesto contra o apoio dos EUA a Israel. Além disso, atores cibernéticos iranianos ligados ao Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica conduziram reconhecimento cibernético em sites eleitorais de estados indecisos no início deste ano e tiveram como alvo os principais veículos de comunicação dos EUA. Um processo meticuloso e calculado com o objetivo de desacreditar o sistema eleitoral.

Grupos de trolls ligados à China concentraram seus esforços de desinformação em candidatos republicanos que criticaram o Partido Comunista Chinês. Os senadores republicanos Marco Rubio e Marsha Blackburn, juntamente com os deputados, também republicanos, Barry Moore e Michael McCaul, foram alvos de falsas acusações de corrupção. McCaul enfrentou falsas acusações de uso de informação privilegiada e abuso de poder, especialmente após sua viagem a Taiwan, levando-o à lista negra do governo chinês. Marsha Blackburn, que lançou um anúncio de campanha mostrando-a “quebrando a China” para salvar os EUA, foi falsamente associada a doações eleitorais de fabricantes de opioides – uma operação realizada por robôs diretamente da China.

Este é um processo que certamente não está restrito aos Estados Unidos. O ataque de regimes autocráticos e autoritários ao redor do mundo com objetivo de enfraquecer e controlar democracias é denso, profundo e perigoso. Estamos diante de um mecanismo que opera nas sombras para manipular a opinião pública, destruir reputações e desacreditar sistemas eleitorais de forma direta e indireta. Certamente a beligerância e polarização encontradas em democracias como Brasil e agora os EUA não são mera coincidência. Enquanto a democracia estiver sob ataque, a nossa liberdade corre sérios riscos.

O Encolhimento da População: Desafio Mundial

Para _baby boomers_ como eu, que cresceram lendo nos jornais ou ouvindo os comentaristas da TV vaticinarem que a “explosão demográfica” representaria a maior ameaça ao futuro da civilização — comparável ou quiçá mais tenebrosa que uma guerra nuclear —, o recente artigo do demógrafo e economista americano Nicholas Eberstadt em _National Affairs_ (novembro/dezembro de 2024) soa como uma retumbante ‘implosão’….

Segundo Eberstadt, pela primeira vez na história da humanidade desde a Peste Negra do século XIV, “a população do planeta irá declinar” (o número de óbitos superando o de nascimentos). Só que agora não mais por causa de uma doença mortal transmitida pelas pulgas que infestam os ratos, mas, sim, em razão de “escolhas” humanas.

A nova tendência de despovoamento do mundo segue-se a um longo e impressionante período de crescimento populacional: nos 700 anos posteriores à Peste Negra a população da Terra se multiplicou por 20, tendo quadriplicado no século passado. Agora, sociedades e governos precisam correr contra o relógio para adaptar suas políticas a um contexto de acelerado encolhimento (e envelhecimento) demográfico.

Olhando no retrovisor da história contemporânea, a ‘explosão’ que inquietava nossos pais e avós se devia menos ao aumento do número  de nascimentos por mulher (“taxa de fertilidade”) do que à melhora das condições gerais de higiene e saúde, o que reduziu drasticamente os índices de mortalidade infantil e esticou as expectativas de vida mesmo nos países subdesenvolvidos.

Dos anos 1960 em diante, então, a fertilidade mundial simplesmente despencou. Em 2015, a fertilidade planetária já era a metade da de 1965, fenômeno verificado em praticamente todos os países. Hoje, a imensa maioria dos seres humanos vive em países cuja taxa de fertilidade é inferior ao nível mínimo de reposição populacional (2,1 filhos por mulher nas nações desenvolvidas, ou um pouco mais do que isso naquelas mais pobres, caracterizadas por maior mortalidade infantil ou evidentes desequilíbrios entre os números de meninos e meninas).

Sempre de acordo com os dados coligidos por Eberstadt, em 2019, pouco antes da pandemia da Covid19, dois terços da população global viviam em países cuja taxa de fertilidade se situava abaixo do nível de reposição. Mais recentemente, essa tendência ganhou ainda mais velocidade.

Na Ásia do Pacífico, outrora um caldeirão fervilhante em matéria de crescimento demográfico, hoje, o Japão está 40% abaixo da taxa de reposição; a China, 50%, Taiwan, 60%; e a Coreia do Sul, 65%. Na Tailândia, o número de óbitos já supera o de nascimentos. A Índia, atualmente com a maior população do planeta, também registra significativo declínio de  fertilidade, assim como seus vizinhos Nepal, Sri Lanka (Ceilão) e Bangladesh.

A China, que recentemente perdeu o campeonato demográfico mundial para a Índia, deverá ter sua atual população de 1,4 bilhão de habitantes reduzida à metade daqui a meio século.

Na América Latina, a mesma coisa. Em cidades como Bogotá, capital da Colômbia, e a capital do México, a fertilidade já é inferior a um nascimento por mulher. Enquanto isso, em Cuba (1,1% de fertilidade), o número de mortes já supera o de partos. No Uruguai e no Chile, as taxas de fertilidade são de 1,3% e 1,1%, respectivamente.

Até mesmo no Norte da África e no Oriente Médio, a queda da fertilidade desafia as exortações pró-natalistas do Islã. Em Istambul, na Turquia, a taxa de 1,2 filho por mulher é inferior à de Berlim.

Rússia: desde a queda do comunismo, já houve 17 milhões de óbitos a mais que nascimentos. Em média, os países membros da União Europeia estão 30% abaixo do nível de reportagem (em 2022, a proporção foi de quatro mortes para cada três nascimentos). No mundo rico, os Estados Unidos sobressaem por uma taxa de fertilidade comparativamente elevada: 1,6 bebê por mãe no ano passado. Ainda assim, o birô do censo projeta para o ano de 2080 o início de um contínuo declínio da população americana.

A única exceção à essa tendência global de encolhimento demográfico é a África ao sul do Saara (em média 4,3 filhos por mulher). Contudo, lá também a taxa de fertilidade está 35% abaixo daquela registrada no final da década de 1970.

Se atualmente um quarto do planeta já enfrenta declínio populacional, computando um número de óbitos superior ao de nascimentos, não demorará para que o restante do mundo siga no mesmo rumo.

Variados são os fatores explicativos desse generalizado fenômeno: acesso ampliado aos métodos contraconceptivos, aumento do nível educacional/redução do analfabetismo, crescente incorporação das mulheres ao mercado de trabalho. Mas, até mesmo, nos países menos desenvolvidos, a tendência à despopulação se faz presente: Myanmar (antiga Birmânia) e o Nepal já estão abaixo do nível de reposição. Subjacentemente a tudo isso, como assinala Eberstadt referindo-se à descoberta do economista americano Lant Pritchett, um fator ainda mais fundamental: a opção das mulheres por menos filhos, ou mesmo por nenhum, não importa o que pensem ou queiram seus parceiros ou familiares.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a mulher se situa na  vanguarda de um novo estilo de vida que, em escala mundial, privilegia a autonomia,  a autorrealização acadêmico-profissional, a maternidade ou paternidade  tardia e a preferência de muitas pessoas por se manterem ‘descasadas’, acentuando o declínio de tradicionais valores e normas religiosos e comunitários.

Eberstadt reconhece que são grandes e complexos os desafios de um mundo menos populoso e mais idoso. Um mundo que contará com cada vez menos trabalhadores empresários e inovadores e cada vez mais aposentados, pensionistas e pessoas dependentes de assistência social. Há vinte anos, menos de 425 milhões pessoas em todo o mundo tinham alcançado os 65 anos de idade; daqui a 25 anos, ou menos, esse mesmo número de habitantes do planeta terá 80 anos! Em 2050, a previsão para a Coreia do Sul é de que o país terá três óbitos para cada nascimento; no mínimo, um sexto da população estará com 80 anos de idade ou mais; e haverá 1,2 pessoa em idade de trabalhar para cada idoso.

Esses encargos se afigurarão ainda mais pesados para aqueles países que até hoje não acumularam riqueza suficiente para financiar a avalanche de despesas com bem-estar social. Envelhecerão sem terem se tornado prósperos….

Os deslocamentos geopolíticos condicionados pelo novo panorama demográfico tampouco podem ser desconsiderados. Para ficar num único exemplo, como China, Rússia, Irã e, provavelmente também, a Coreia do Norte, hoje empenhadas em consolidar um eixo de contestação à hegemonia global dos Estados Unidos, poderão concretizar suas ambições a longo prazo se enfrentam profunda e acelerada retração populacional?

Apesar de tudo, Eberstadt conclui seu ensaio numa chave de otimismo moderado e realista. Ao menos, ele acredita que grande parte dos políticos e tecnocratas do mundo inteiro já sabem o que precisam fazer. Por toda parte, os sistemas previdenciários deverão ser reformados, de maneira a prolongar o tempo das pessoas no mercado de trabalho e retardar sua aposentadoria; as estruturas de incentivos (principalmente a tributação) terão que mudar a fim de privilegiar a poupança e o investimento a longo prazo; as famílias, cada vez menores e mais atomizadas, necessitarão contar com suporte do Estado e da comunidade a fim de assegurar conforto e dignidade aos seus idosos; políticas de imigração requererão alterações profundas para garantir suprimento suficiente de capital humano àquelas nações cujo funcionamento econômico estará comprometido pelo predomínio de idosos sem condições de permanecer na força de trabalho.

Acima de tudo, uma macrotransição demográfica capaz de evitar o agravamento das desigualdades e da pobreza em escala global demandará o compromisso de governantes e governados do mundo inteiro com o aumento da produtividade do trabalho (melhorar quantitativa e qualitativamente a produção de bens e serviços por trabalhador, num contexto de baixa disponibilidade de mão de obra). E a chave para esse futuro é uma educação de qualidade, estimuladora da curiosidade, da criatividade, do talento, da iniciativa e da cooperação das crianças e dos jovens — recursos humanos cada vez mais escassos e preciosos. Infelizmente, muitos sistemas escolares, sobretudo em economias   de renda média (a exemplo do Brasil) ou baixa, ainda não conseguem transmitir e fomentar  competências básicas, como a habilidade de ler, escrever e fazer cálculos. Para essas nações, portanto, o futuro de despovoamento e envelhecimento se traduz num cenário sombrio e ameaçador.

Arquivo/Estadão Conteúdo - 20/10/2020

Crônica do fracasso anunciado da esquerda

A esquerda brasileira foi vastamente derrotada nas eleições municipais de 6 de outubro de 2024. Essa derrota já era esperada, pois vinha sendo construída abertamente pelo presidente da República e seu partido. Lula, autocrata do PT, domina de cabo a rabo a esquerda brasileira; podendo-se dizer que o rabo é constituído por minúsculos partidos de extrema-esquerda que acham ainda insuficiente o apoio de Lula ao ditador da Venezuela, muito discreta sua afeição ao tirano russo invasor da Ucrânia e tímida sua agressividade contra Israel.

O referido fracasso político-eleitoral no âmbito municipal indica para breve um novo e mais grave fracasso: Lula provavelmente não será reeleito e a tendência é que uma aliança democrática mais à direita eleja um novo presidente da República em 2026.

Não que a esquerda vá morrer – o que não seria nada saudável para uma democracia – mas a torcida da esquerda democrática deve ser para que a esquerda lulopetista se afogue no charco da sua própria irrelevância.

Antes de seguir na exposição da construção do fracasso anunciado da esquerda brasileira, convém uma rápida exposição – como que um gancho – da história da esquerda e do fracasso histórico do marxismo.

A promessa do paraíso e o inferno do poder

A Revolução Francesa de 1789 inaugurou duas amplas correntes políticas que, em recorrentes enfrentamentos mais ou menos agudos, passaram a dominar o cenário político internacional: “la gauche” (esquerda) e “la droite” (direita).

A esquerda é, portanto, anterior e bem mais ampla que o marxismo. Todavia, vendendo-se como ciência em uma época galvanizada pelo cientificismo, o marxismo avassalou a esquerda mundial desde o início do século 20 e, com a Revolução de 1917, na Rússia, avançou internacionalmente por meio de expansão imperialista da sua feição leninista-stalinista lá implantada ou por replicadas revoluções.

Em todo esse avanço, que chegou a dominar metade do mundo, o marxismo se sustentou na promessa de construção do paraíso na terra; tendo embora o cuidado de afirmar a necessidade de uma fase transitória infernal chamada de ditadura do proletariado. Tal ditadura – que nunca foi do proletariado, mas do partido marxista ocasionalmente no poder –, não conseguindo construir o prometido paraíso proletário, tratou de garantir o paraíso de poder dos dirigentes.

Autoritário desde sua elaboração teórica e desde suas primeiras ações na Liga Comunista e na Primeira Internacional Comunista – como denunciado pelo anarquista Bakunin, colega de Marx na Primeira Internacional –, o marxismo, quando vitorioso, quando colocado em prática, degenerou até a perversidade tirânica do leninismo-stalinismo.

A social democracia

Deve-se, no entanto, registrar que marxistas destacados repudiaram tais práticas autoritárias; como foi o caso do alemão Eduard Bernstein, que fez a primeira revisão do marxismo, e de Rosa Luxemburgo, que desde o início da implantação do regime leninista na Rússia o denunciou como sendo não uma ditadura do proletariado, mas uma ditadura sobre o proletariado.

Cabe também registrar que a Segunda Internacional (Internacional Socialista) – de origem marxista, que teve Engels entre seus fundadores – abandonou, a partir da revisão de Bernstein tanto o autoritarismo da fase de transição quanto a promessa do fim paradisíaco, deixando de lado o fanatismo revolucionário para defender os interesses dos trabalhadores no âmbito da democracia e do reformismo.

O fim é nada, o caminho é tudo”; essa frase, encontrada na obra de Monteiro Lobato, resume bem o ideário da esquerda reformista social-democrata. Creio que deva ser sempre relembrada, especialmente pelos inescrupulosos maquiavélicos que dizem que o fim justifica os meios.

Foto: Natalia KOLESNIKOVA AFP.

Imperialismo Autoritário

O imperialismo é um conjunto de ideias, medidas e mecanismos que, sob determinação de um país, procuram efetivar políticas de expansão, domínio territorial, econômico ou cultural sobre outras regiões geográficas. Apesar do conceito de imperialismo, derivado de uma prática assente na teoria econômica, ter somente surgido no início do século XX, sua prática é recorrente ao longo dos séculos por muitas nações, civilizações e mais recentemente por Estados-nação.

Existem alguns países que possuem o imperialismo como elemento norteador de suas ações, um verdadeiro traço de suas personalidades como nação. Este elemento está claramente presente no pivot da Ásia, a Rússia, que ao longo dos séculos foi palco de políticas expansionistas. É possível identificar este elemento no domínio soviético em países da Ásia Central e do Leste da Europa, tornando-se suas repúblicas. Em tempos mais recentes, este elemento está presente na tentativa de domínio econômico, político e cultural dos mesmos países, agora independentes, atingindo seu ápice com a invasão territorial da Ucrânia ordenada pelo Kremlin.

O imperialismo também sempre foi presente na Ásia, seja na Mongólia, o maior império de terras contíguas da história, mas passando também pelo Império Khmer, atualmente o Camboja, pela ascensão do poderio nipônico na expansão e domínio do Japão pelo continente e mais recentemente em escala local e global pela China, que passou a ser governada pelo Partido Comunista desde a Guerra Civil que terminou em 1949, levando o antigo líder, Chiang Kai-shek, a viver no exílio, em uma ilha conhecida como Taiwan.

Assim como a Rússia, que ainda sente o gosto amargo do fim do império soviético, quando possuía duas dezenas de repúblicas, hoje países independentes, na sua esfera de influência e domínio, a China também custa a aceitar a realidade de que ao longo de décadas Taiwan se tornou um país independente. Pequim se expandiu para o Tibete e outras regiões da península asiática, porém jamais conseguiu controlar Taiwan, um desejo antigo que mexe com as placas tectônicas da geopolítica internacional.

Isso se explica porque Taiwan se tornou um país independente de fato e de direito ao longo dos anos, adotando todos os passos necessários para firmar-se como economia relevante, parceiro comercial confiável, uma democracia plena e centro vibrante na área de inovação e tecnologia, com índices altíssimos de educação. O país que produz hoje cerca 66% da produção mundial de chips, com 56% destes semicondutores saindo da lavra da TSMC, possui em torno de si um chamado “escudo de silício” que o protege, uma vez que um abalo econômico causado por uma guerra na região seria algo devastador para a economia de todo o planeta.

O imperialismo tornou-se um risco no atual plano das relações internacionais, pois tem sido usado de forma sistemática por regimes antidemocráticos para consolidar e ampliar o poder de líderes autoritários. Os casos são vários e começam pelos aqui já citados, ou seja, pelo avanço da Rússia pela Ucrânia, das ameaças chinesas em direção a Taiwan, porém também nas ameaças da Venezuela à Guiana, do expansionismo iraniano no Oriente Médio, da instabilidade causada pela Coréia do Norte em direção ao Seoul. O gene do autoritarismo, uma prática que se tornou popular em tempos recentes, carrega consigo os riscos do imperialismo, colocando o mundo em situação cada vez mais instável e perigosa em tempos recentes.

Uma enorme falsificação está em curso

O conceito de extrema-direita está sendo usado para promover uma enorme falsificação. Quem for contra Lula, o PT e seu governo, é logo classificado como extrema-direita. Pior, quem for a favor da resistência ucraniana à invasão do ditador Putin e contra o terrorismo do Hamas é suspeito de ser de extrema-direita. Quem for contra o eixo autocrático (a articulação das ditaduras de Rússia, China, Irã e seus braços terroristas, Coréia do Norte, Síria, Cuba, Venezuela e Nicarágua) é olhado como extrema-direita. Quem for contra o BRICS e o “sul global” é acusado de ser de extrema-direita.

A extrema-direita está sendo construída como o inimigo universal e único, às vezes chamado de “internacional fascista”. Com isso se esconde as ameaças do eixo autocrático às democracias liberais e as alianças espúrias de quem promove essa falsificação com as maiores ditaduras do planeta.

Mas são duas – e não apenas uma – as principais ameaças globais contemporâneas à democracia liberal.

Sim, existe de fato uma ameaça de extrema-direita às democracias, juntando ditadores e populistas-autoritários que se articulavam ou se articulam no The Movement e no CPAC e em outras iniciativas. Dela participam ou participaram Putin, Grillo e Casalégio (5 Stelle), Salvini e Meloni, Le Pen, Orbán, Trump e Steve Bannon, o pessoal do Brexit, Wilders, Chrupalla, Weidel e Gauland, Abascal, Ventura, Bukele e Bolsonaro.

Mas ela não é a única ameaça, nem a mais forte, às democracias. Ditadores e neopopulistas de esquerda, articulados no BRICS e no “sul global”, são uma ameaça muito mais premente. Ela reúne ditadores como Putin (novamente), Xi Jinping, Kim Jong-un, Khamenei e a Guarda Revolucionária Iraniana, pelo menos treze grupos terroristas do Oriente Médio (com destaque para o Hamas e o Hezbollah), da Ásia, da África e da América Latina (Canel, Maduro, Ortega). Mas o mais grave é que a esse bloco se alinharam ou estão se alinhando neopopulistas como Kirchner, Funes, Zelaya, Lourenço, Obrador, Petro, Evo e Arce, Correa, Lula, Widodo e Subianto, e Ramaphosa. Esse eixo autocrático em ascensão é, objetivamente, o grande interessado na falsificação de dizer que a extrema-direita é o (único) inimigo universal.

Aliados ao eixo autocrático – sobretudo no Brasil, o PT, mas no plano global todos os que se denominam antifascistas – estão fazendo um carnaval com essa história do bicho-papão da “internacional fascista” de extrema-direita. Caberia perguntar-lhes: quer dizer que Kim Jong-un não é de extrema-direita? E Xi Jinping? E Vladimir Putin? E o aiatolá Khamenei? E o genocida Assad? E o Yahya Sinwar (Hamas)? E o Nasrallah (Hezbollah)? E o Canel, o Maduro e o Ortega? Não são, eles responderão. Afinal, todo esse pessoal é antifascista. Então tudo bem?

E que tal examinarmos os antifascistas presentes no BRICS? Ali não figura nenhuma democracia plena (segundo a The Economist Intelligence Unit 2023). Nenhuma democracia liberal (segundo o V-Dem 2024). Quais os regimes que comparecem nesse arranjo autoritário? Segundo o V-Dem 2024: Brasil – democracia eleitoral, flawed ou regime eleitoral parasitado por populismos; Rússia – autocracia eleitoral; Índia – autocracia eleitoral; China – autocracia fechada; África do Sul – democracia eleitoral, flawed ou regime eleitoral parasitado por populismo; Egito – autocracia eleitoral; Etiópia – autocracia eleitoral; Irã – autocracia eleitoral; Arábia Saudita – autocracia fechada; Emirados Árabes Unidos – autocracia fechada. E ainda querem colocar no bolo mais três ditaduras: Venezuela, Nicarágua e Síria.

Todo esse contingente, por ser antifascista, supostamente não ameaça a democracia? Ora, isso é uma falsificação grosseira. Se ditaduras não ameaçam a democracia, seremos obrigados a intercambiar os conceitos de ditadura e democracia. Quem sabe teremos de colocar os trinta regimes piores colocados no ranking do V-Dem 2024, classificados pelo Índice de Democracia Liberal (LDI), no topo da lista.

Quais são esses países? Em ordem de autocratização crescente são: Guiné, Catar, Irã, Uzbequistão, Emirados Árabes Unidos, Gaza, Haiti, Sudão do Sul, Azerbaijão, Rússia, Burundi, Cuba, Guiné Equatorial, Cambodja, Venezuela, Bareim, Síria, Iemem, Chade, Arábia Saudita, Sudão, Tadjiquistão, China, Belarus, Turcomenistão, Afeganistão, Nicarágua, Mianmar, Coréia do Norte, Eritreia. Vários desses, note-se, são países do eixo autocrático atualmente em guerra contra as democracias liberais.

E teremos de colocar no final da lista as cerca de trinta democracias liberais que restaram; a saber, em ordem de democratização decrescente: Dinamarca, Suécia, Estônia, Suíça, Noruega, Irlanda, Nova Zelândia, Finlândia, Costa Rica, Bélgica, Alemanha, França, República Checa, Austrália, Holanda, Luxemburgo, Chile, Reino Unido, EUA, Uruguai, Letônia, Espanha, Itália, Canadá, Islândia, Japão, Taiwan, Barbados, Butão, Coréia do Sul, Seicheles, Suriname.

Assim inverte-se tudo. Basta, para tanto, uma revisão dos conceitos. Tal revisionismo pode ser operado com quatro medidas:

Em primeiro lugar, reduzir democracia à cidadania ou à oferta estatal de bem-estar para o povo pobre (“casa, comida e roupa lavada” dispensadas por um governo popular) ou à luta pela redução das desigualdades socioeconômicas.

Em segundo lugar, avaliar que as mais avançadas democracias do planeta, as democracias plenas, as democracias liberais, são falsas democracias (“democracias burguesas” ou governos do “macho branco no comando”), regimes impostos pelas elites (classistas dominantes ou neocolonialistas) para estabilizar sua forma de dominação e continuar explorando o “terceiro mundo”; ou, agora, o “sul global”.

Em terceiro lugar estabelecer que a democracia não é um valor universal, mas ocidental e que, portanto, tanto faz uma ditadura ou uma democracia: a Rússia ou a Ucrânia, a China ou Taiwan, o Irã ou Israel.

Em quarto lugar, assumir que as autocracias são preferíves às democracias quando se colocam ao lado das grandes massas despossuídas do mundo contra o imperialismo norte-americano e o colonialismo europeu, que supostamente seriam as fontes de todo mal que assola a humanidade.