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Oportunismo Político

A ascensão de Donald Trump e a adoção de suas políticas, especialmente no âmbito migratório, tem funcionado como combustível para governos impopulares tentarem um regaste de prestígio diante de sua população. Vimos isso acontecer com a deportação de imigrantes ilegais colombianos e brasileiros dos EUA, algo que movimentou o cenário externo nos últimos dias.

Petro, presidente da Colômbia, mergulhado em uma desaprovação que ultrapassa 60%, busca incansavelmente caminhos que recuperem sua popularidade. Achou uma brecha com a repatriação de imigrantes ilegais colombianos dos Estados Unidos. Havia aceitado receber os deportados. Fez um post celebrando a chegada de seus compatriotas com “bandeiras e flores” e depois deletou. Mudou de ideia para criar um fato político. Trump considerou sua mudança de atitude como ato de hostilidade e desonestidade. Retaliou. Petro recuou e acatou integralmente os termos dos EUA.

O Brasil seguiu pelo mesmo caminho. A polêmica por aqui se estabeleceu sobre o transporte dos imigrantes ilegais devolvidos em voo fretado pelos EUA. Há reclamação de que o grupo voltou algemado. O procedimento utilizado tem sido padrão desde 1980, usado também para transporte de presos nacionais dentro do seu próprio território. O padrão é adotado por dois motivos. Protege aquele que está sob custódia do Estado, que pode nesse tipo de situação se machucar ou até cometer algum ato extremo contra si próprio. O outro é a proteção dos agentes de segurança. Além disso, os voos são parte de um acordo firmado em 2018, durante o governo Temer.

Percebemos, na verdade, que o imbróglio possui fundo político, uma vez que estamos diante do mesmo rito e mecanismos usados há pelo menos 45 anos. Foram 22 ministros de Lula que mostraram indignação sobre brasileiros deportados no primeiro voo durante o governo Trump. Durante o terceiro mandato de Lula já foram 32 voos trazendo deportados da mesma forma. O governo jamais havia tecido qualquer crítica.

Todos sabem que o Brasil possui um governo antiamericano, algo inegável. Por questões políticas e ideológicas, Lula nunca escondeu sua visão sobre os Estados Unidos. Seu círculo mais íntimo de assessores, especialmente na área internacional, ainda carrega uma visão ultrapassada e obsoleta de mundo, responsáveis por equívocos como este.

Assim como Petro, o governo brasileiro tem usado o oportunismo político como arma para alavancar sua popularidade. Atualmente, Lula possui taxa de reprovação que supera a aprovação. Assim como Petro, enxerga sua popularidade derreter, colocando em xeque as chances de reeleição. Ambos procuram usar este fato como combustível político para resgatar o apoio popular perdido em meio aos erros de seus governos.

O número de ilegais deportados vem caindo sistematicamente desde o governo Clinton – aquele que mais deportou (com folga) nas últimas décadas e o número de deportados que havia caído com Obama e Trump, voltou a subir com Biden. Estes são fatos. Os EUA seguirão sendo um país de imigrantes, mas sobretudo de leis. Aqueles que migram de acordo com as regras, serão muito bem recebidos, porém, aqueles que infringirem as normas, estarão em risco de serem devolvidos aos seus países. Enquanto isso, não faltarão líderes populistas para lucrar nas costas dos deportados, algo que no dicionário de Brasília se chama de oportunismo político.

As Garras da América

A águia foi escolhida como o símbolo oficial dos Estados Unidos por representar valores como liberdade, coragem, resiliência e determinação. Incluída no selo do país em 1776, tornou-se icônica, simbolizando orgulho e força. Suas garras representam sua arma mais poderosa, usadas tanto como instrumento de ataque, como de defesa.

“A Era de ouro da América começa agora”, pontuou Donald Trump, na abertura de seu discurso durante o triunfal retorno a Washington depois de quatro anos. Estamos diante de um Presidente que buscará exercer seu poder sem rodeios ou necessidade de aprovação. Esta sempre foi sua postura como empresário e como mandatário em seu primeiro mandato. Neste que, constitucionalmente deve ser o último, não hesitará em impor sua doutrina e atitude, que consiste na reforma dos mecanismos internos do país e na mudança de postura na frente internacional.

Veremos os Estados Unidos usarem efetivamente seu peso e poder ao redor do mundo. Ao contrário do Presidente Theodore Roosevelt, que assumiu publicamente a postura estratégica de “falar com suavidade e ter à mão um grande porrete”, a política do big stick, Donald Trump deve falar com assertividade e deixar claro que carrega centenas de porretes à sua disposição, algo que faz enorme sentido diante dos contornos políticos internacionais conhecidos de nosso tempo.

As primeiras incursões de sua política, sinalizadas antes da posse, já produziram uma série de resultados efetivos. Diante do fato de que a China tem usado a costa da Groenlândia para facilitar seu transporte de cargas, Trump lançou a ideia de compra do território. Resultado efetivo: o governo de Copenhague propôs o aumento de bases americanas na Groenlândia como forma de cessar as iniciativas de compra do território. Ponto para ele.

A negociação do cessar-fogo e retorno dos reféns para Israel foi negociado por Steve Witkoff, enviado de Trump para o Oriente Médio. Trump mete medo no Hamas e Netanyahu sabe que precisa do seu apoio. O resultado foi o acordo. Mais um ponto para o novo Presidente americano. Na Europa, em discurso a militares, Macron pediu ao continente para “acordar” e gastar mais com defesa. A fala veio depois de Trump pedir a países da Otan que elevassem os gastos militares para 5% do PIB. Os americanos hoje pagam grande parte deste custo. A Europa deve ceder. Mais um ponto para Trump.

Fato é que a simples sinalização da mudança de postura dos americanos já começou a movimentar as peças do tabuleiro no cenário internacional. A reação dos Estados Unidos chega em um momento crucial, especialmente diante da postura imperial de uma Rússia disposta a invadir seus vizinhos e uma China que se sentia livre para exercer seu poder e influência em diferentes pontos do planeta, seja pela compra de apoio e subserviência por meio da Nova Rota da Seda, seja pela imposição militar.

A reintrodução de uma América forte neste jogo, pautado atualmente pelos fenômenos do imperialismo e da desglobalização, é essencial para reequilibrar as forças no xadrez internacional. As garras de Washington nunca foram tão necessárias em um cenário que envolve atores dispostos a patrocinar a instabilidade internacional. A conferir.   

Foto: Sérgio Lima/Poder360

A complexidade da política

A política praticada como continuação da guerra por outros meios está sujeita a condições infensas a julgamentos morais de partida. Isso não quer dizer que os democratas devam abrir mão dos seus princípios morais. Mas quer dizer que, na política degenerada como luta contra inimigos internos ou externos (quer dizer, guerra), raramente os atores modulam seus impulsos e ações a partir de imperativos morais.

A política (essa política e qualquer política) lida com correlações complexas de forças, em configurações mutantes que são, em si, muitas vezes, contraditórias.

É o que aconteceu em Atenas, na época da invenção da primeira democracia: a intervenção dos autocratas espartanos em Atenas (inimigos figadais da democracia) acabou sendo decisiva para a deposição do tirano Hípias, sem a qual a reforma distrital de Clístenes (em 509 a.C.) não teria prosperado. E se ela não tivesse prosperado jamais teríamos ouvido a palavra democracia.

Vejamos, porém, dois exemplos mais recentes.

Exemplo 1 – O “centrão” no Brasil

No Brasil, se não fosse o chamado “centrão”, em boa parte fisiológico e corrupto, nossa democracia estaria em estado muito mais avançado de erosão (de vez que aquele “pântano” congressual resistiu às tentativas golpistas de Bolsonaro, assim como continua resistindo às investidas hegemonistas de Lula).

Por que? Ora, porque o “centrão” vive, por assim dizer, da política como negócio (é o seu ganha-pão) e não quer que uma força golpista consiga – alterando a natureza do regime – abolir ou restringir esse livre “mercado”. E também não quer que um “monopólio” se erija, com a prevalência de uma força hegemonista.

Resultado. No jogo político o “centrão” atua – objetivamente – como uma força democrática, mesmo que seus integrantes não sejam democratas.

Exemplo 2 – A ascensão mundial da extrema-direita

No mundo todo, se não fosse a ascensão de uma extrema-direita antissistema, o eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã et coetera) já teria conquistado um número muito maior de regimes eleitorais não-liberais, ensejando que governos populistas não-autoritários se tornem hegemônicos. É o caso dos governos populistas de esquerda, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, etc. Isso para não falar dos governos populistas autoritários já alinhados ao eixo autocrático, como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Angola.

Cabe esclarecer que o eixo autocrático – com exceção de Bharat (a nova Índia nacional-populista de Modi), cuja posição ainda é incerta, e também de Hungria, Turquia, El Salvador, Israel, Itália, EUA (a partir de 20/01/2025) e, talvez, Eslováquia – é composto, majoritariamente, por países que não são governados por forças políticas de extrema-direita ou de direita. Tirando Rússia e Bielorrússia (que não podem ser classificados adequadamente pelo esquema anacrônico esquerda x direita), temos China, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Vietnam, Laos, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola etc. – ou seja, a imensa maioria de esquerda ou de regimes mais simpáticos à esquerda do que à direita. Forças populistas de extrema-direita ameaçam, ainda de fora dos governos, as democracias: Salvini (mais extremo do que Meloni, na Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia) – nenhum desses está chefiando governos em 2025.

A esquerda quer esconder tudo isso dizendo que o principal (ou único) inimigo da democracia é a “internacional fascista” (que congrega seis, provavelmente oito ou, no máximo, dez governos). Sim, os regimes dominados por governos de extrema-direita são um perigo para as democracias, mas não são a única ameaça, nem a principal.

Forças de extrema-direita – objetivamente – impedem que governos populistas de esquerda consigam conquistar hegemonia sobre as sociedades que dominam. É contraditório porque essas forças pertencem ao eixo autocrático ou estão alinhadas a uma parte dele. Mas, por outro lado, sem a polarização que elas ensejam com as forças políticas populistas de esquerda, essas últimas também não se afirmariam (por exemplo, no Brasil, sem o bolsonarismo o lulopetismo perderia força para continuar se prorrogando no governo). Pode-se dizer que a polarização e a divisão que elas instalam nas sociedades é um elemento central da netwar atual, ou seja, da segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais.

Entretanto, em termos gerais, para o eixo autocrático, a divisão das sociedades democráticas é mais importante do que o predomínio de uma força política populista de esquerda ou de direita. Porque seu objetivo último é exterminar as democracias liberais, o que começa por cindir as sociedades democráticas. Mesmo assim, em algumas circunstâncias, as forças de extrema-direita (nacional-populistas ou populistas-autoritárias) impedem (ou dificultam) que as forças populistas de esquerda empalmem o poder alterando por dentro o “DNA” da democracia.

Isso não quer dizer que as forças populistas de extrema-direita sejam democráticas. Pelo contrário, elas são autocráticas. Mas, repetindo, quer dizer que, em certas circunstâncias, elas impedem que forças populistas de esquerda, que também não são democráticas, conquistem hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado por elas aparelhado, delongando-se no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, a natureza do regime democrático. Ainda que a polarização e a divisão das sociedades, introduzidas pelo choque entre dois populismos, impeçam que os regimes parasitados ascendam à condição de democracia liberal ou plena. Ou seja, impeçam (ou dificultem) a emergência de uma força política democrática-liberal capaz de fazer isso, quer dizer, de operar a transição de um regime eleitoral (uma democracia defeituosa ou apenas eleitoral) para uma democracia liberal.

Para entender essa complicada configuração é preciso perceber que as forças políticas de extrema-direita não são propriamente uma alternativa estratégica (positiva). A rigor elas não têm estratégia a não ser destruir o sistema tal como está configurado e funciona. Sua ascensão corresponde a uma revolução (conquanto reacionária) e só é possível porque a democracia representativa entrou em crise. E porque, como causa e ao mesmo tempo em consequência desse declínio democrático, o número de agentes democráticos decaiu para níveis subótimos, insuficientes para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.

Mas não fosse o choque que elas provocam nas democracias em crise, o sistema tenderia a se reciclar, passando a se estruturar e a funcionar em estado larvar, mais imune às mudanças exigidas pela continuidade do processo de democratização. Sem um choque desse tipo as democracias que não sucumbissem à autocratização, poderiam paralisar seus processos de democratização.

O establishment democrático “tradicional” (se se puder falar assim) não está preparado para, por si só, sair da crise da democracia ou superá-la mantendo-se como está (na base do “conservadorismo democrático”: da defesa das velhas instituições, da preservação dos atuais mecanismos de freios e contrapesos, da vigência de direitos políticos e liberdades civis como até então foram concebidos e praticados). Em poucas palavras: a democracia que temos não está mais conseguindo configurar ambientes favoráveis à emergência das democracias que queremos.

Essa é a crise. O establishment democrático tradicional, deixado a si mesmo, tende a se manter conservadoramente. Em certo sentido, a democracia não está dando conta de defender a democracia. Porque defender a democracia não é apenas mantê-la e sim seguir adiante, o que nos remete à metáfora da bicicleta (parou de pedalar cai) – o que já é assunto para outro artigo.

Reconhecer que a ascensão da extrema-direita é uma revoluçãonão tem a ver com aprovar esse movimento avesso à democracia liberal e contrário aos direitos (e valores) humanos (ou humanizantes). Reconhecer que as forças populistas de esquerda que se opõem à extrema-direita não são democráticas por causa disso – nem menos perigosas para as democracias liberais – é fundamental para defender a democracia, sobretudo se essas forças se alinham ao eixo autocrático.

E, mesmo sabendo disso, algumas vezes os democratas têm que apoiar um candidato de uma força populista (contra-liberal) de esquerda para evitar a chegada ao governo ou a permanência nele de um candidato de uma força populista (iliberal) de extrema-direita. Foi o que aconteceu no Brasil em 2022, na opção por Lula para impedir a reeleição de Bolsonaro. Não que Lula (hegemonista), no médio ou longo prazos, fosse menos perigoso para a democracia liberal do que Bolsonaro (golpista). Mas a conquista de hegemonia é um processo longo, que dá mais tempo para as forças democráticas-liberais se organizarem do que um golpe de Estado, fulminante no curto prazo (se tivesse sido bem-sucedido – o que, no caso da tentativa bolsonarista ter se concretizado, é para lá de duvidoso).

Eis a complexidade da política. Os democratas não podem operar apenas com as forças boas. É impossível fazer política sem os adversários ou, no caso da política degenerada como guerra, sem os inimigos. Pessoas que têm uma apreensão religiosa da política (mesmo que seja a de uma religião laica como o marxismo) e pessoas que querem tomar a política seguindo imperativos morais, na partida e na chegada, tentando conformá-la à ética, dificilmente entenderão isso.

A formação do Ocidente

Guerras no Oriente Médio, invasão da Ucrânia, a ameaça do fundamentalismo islâmico, o imperialismo russo e a estupidez woke/identitária.

Esses foram alguns temas que abordei nos artigos que escrevi ao longo de 2024.

Neste novo texto, gostaria de focar mais no significado do Ocidente, a fim de salientar o que está em jogo com tais ameaças.

Passo a expor, portanto, de forma resumida, o conteúdo do livro O que é o Ocidente, do filósofo político francês, Philippe Nemo.

A tese central desse livro é que, no Ocidente, “foram alcançadas certas figuras do universal cujo desaparecimento ou enfraquecimento afetaria a humanidade como um todo.”

Segundo o autor, a civilização ocidental pode se definir “pelo Estado de Direito, pela democracia, pelas liberdades intelectuais, pela racionalidade crítica, pela ciência e por uma economia de liberdade baseada na propriedade privada”.

Tais valores e instituições foram o fruto de uma longa luta de construção histórica e de determinados acontecimentos essenciais.

Grécia e Roma

O princípio do governo da lei e o princípio da liberdade individual, por exemplo, foram uma inovação grega, herdada pelos romanos e posteriormente reformulada pelos filósofos políticos ingleses na forma do rule of law, um governo de leis e não de homens, cerne do ideal liberal moderno.

Os gregos inventaram o governo de lei, mas foram os magistrados e jurisconsultos romanos que o aperfeiçoaram no período da República Romana.

Os filósofos estoicos já haviam elaborado a teoria do cosmopolitismo, estabelecendo que a humanidade constitui uma comunidade única partilhando uma natureza humana idêntica.

As relações sociais no seio da comunidade deveriam, portanto, ser regradas tendo por referência uma lei natural, racional, da qual as leis positivas de cada cidade seriam uma aproximação.

O arcabouço conceitual trabalhado pelo direito romano procurou definir a propriedade privada, delimitando juridicamente o “meu” e o “teu” nas diversas situações possíveis.

Ao definir assim o domínio próprio de cada um, assegurando os seus direitos, o conceito de indivíduo ganhou relevância.

O Direito Romano foi não apenas uma das colunas principais sobre as quais se estruturaram os sistemas jurídicos modernos, mas também uma das fontes do humanismo ocidental.

Junto ao civismo grego, o progresso feito por Roma no Direito imprimiu na cultura ocidental o valor do Eu, fornecendo as bases sobre as quais o cristianismo se apoiou para afirmar o valor absoluto da pessoas humana, livre, moralmente responsável, criada e amada por Deus, dotada de uma dignidade intrínseca a despeito de quaisquer fatores contingentes como raça, condição social, gênero, etc.

A moral cristã

Embora se apoie na tradição moral e jurídica herdada da antiguidade pagã, a moral evangélica a supera e transforma por meio do sublime sentimento da compaixão, da caridade.

À exigência de justiça já presente no profetismo judaico, Jesus junta a misericórdia e uma elevada exigência de ação em direção ao outro, ao sofredor, ao próximo.

Trata-se de uma ética da superabundância, que não se esgota no dar a cada um o que é devido, mas alarga-se como doação de si no dever do amor.

“Ama o teu próximo como a ti mesmo”, eis a máxima.

Porque Jesus realizou na Terra o supremo sacrifício, o apelo cristão tornou-se um móbil para a própria sociedade que, insuflada e impulsionada pelos imitadores do Cristo, progrediu gradativamente no caminho da fraternidade universal.

A César o que é de César

Embora tenha havido momentos de confusão entre o poder religioso e o poder temporal, é possível defender a tese de que a dessacralização do poder na Europa foi fruto da religião judaica e da religião cristã, sendo a noção de laicidade depreendida do próprio texto bíblico.

No judaísmo e no cristianismo, o poder espiritual não se curva ao poder temporal; a salvação depende da conversão interior dos homens, nas quais trabalhavam os profetas e os santos.

A missão do Estado, por sua vez, era garantir a ordem social. A frase de Jesus “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”, sanciona essa separação de papéis.

Essa cisão ou irredutibilidade entre os dois mundos, que será uma das fontes de nascimento das democracias modernas, também se expressa quando, ao ser confrontado por Pilatos acerca da sua realeza (Tu és rei?), Jesus responde: “Meu reino não é deste mundo”.

A mensagem bíblica, portanto, é uma mensagem de dessacralização do Estado. O Ocidente acostumou-se com essa mensagem e por ela se deixou moldar.

Não obstante, houve diversas tentativas de “ressacralização do Estado, seja sob uma forma autoritária ou absolutista (Maquiavel, Hobbes, Rousseau, Hegel…seja sob uma forma totalitária”.

À esquerda ou à direita, encontram-se inimigos da sociedade aberta, que é a sociedade de direito e de livre mercado, a sociedade que preza a ordem espontânea.

Democracias liberais

Segundo Philippe Nemo, “a democracia é o nome especial dado ao liberalismo político e ao pluralismo nos procedimentos de nomeação de governantes e da tomada de decisões políticas.”

Ela não se desenvolveu, porém, de modo contínuo, mas foi um ideal lançado que precisou contornar inúmeros obstáculos e desvios a fim de reencontrar seu elã inicial e continuar o processo de abertura da sociedade.

Apesar de ter se configurado no Ocidente, a sociedade aberta concerne direta ou indiretamente a toda a espécie humana. Houve um avanço real na organização social e abrir mão desse avanço é uma escolha clara pelo retrocesso.

Adversários externos e internos

Na medida em que o Islã é uma das religiões do livro, há algum aspecto de proximidade do mundo árabe-muçulmano com o Ocidente.

Mas o Islã transformou e descaracterizou profundamente a ética recebida do judaísmo e do cristianismo.

Além disso, o mundo islâmico não assimilou os princípios do civismo grego e do direito romano.

Durante séculos, a educação do Ocidente formou a juventude com seus valores, ideais e normas.

As escolas e universidade formaram mentalidades ocidentais que, por sua vez, asseguravam a perpetuação dessas mesmas instituições.

Esse movimento circular foi rompido.

Tal rompimento, porém, não configurou progresso, mas retrocesso.

A cultura de cada geração é, de modo geral, o resultado da forma como foi educada a geração anterior.

O que hoje se convencionou chamar “cultura woke” é a consequência de décadas de uma educação ocidental marcada pelo desprezo dos seus próprios valores.

Nesse contexto, a excêntrica e perigosa aliança entre a esquerda woke (identitária) e o islamismo faz com que a atual disputa política deixe de ser um debate interno saudável e legítimo dentro do contexto de uma democracia para se tornar uma clivagem civilizacional que ameaça o próprio Ocidente.

Além do G20

O Brasil, sob o governo Lula, já escolheu de qual lado ficará na disputa geopolítica mundial entre democracias e autocracias. E a resposta é clara: estamos alinhados ao eixo autocrático. A decisão foi consolidada com uma série de acordos que colocam o país em sinergia com o projeto global da China, mesmo que isso seja convenientemente disfarçado por discursos sobre interesses meramente comerciais.

A nova dinâmica foi celebrada pela embaixada chinesa, que não perdeu tempo em anunciar que as relações entre Brasil e China atingiram “um novo patamar”. Isso inclui a formação de um grupo de trabalho para alinhar as políticas de desenvolvimento brasileiras à Nova Rota da Seda, o plano de expansão econômica e política do governo chinês. A adesão oficial não foi anunciada, mas os mais de 40 acordos assinados, incluindo áreas sensíveis como inteligência e satélites, já indicam o caminho.

O discurso público do governo brasileiro, no entanto, joga com a ambiguidade. A narrativa oficial tenta afastar preocupações, enfatizando a natureza “comercial” da parceria. É a típica estratégia de soft power usada pelo governo chinês: sugerir um afastamento para não alarmar, enquanto os fatos mostram o contrário. Quem questiona esse alinhamento é rapidamente taxado de exagerado ou bolsonarista, como se fosse impossível criticar a aproximação com uma ditadura sem cair em extremos ideológicos.

O que muda?

Mas o que realmente muda com esse novo alinhamento? Não é apenas uma questão de acordos econômicos. É sobre os valores que o Brasil está disposto a endossar.

A China é uma autocracia que reprime dissidentes, proíbe religiões, mantém campos de concentração para a minoria Uigur e censura qualquer oposição. Essa postura ficou evidente durante o G20, realizado em território brasileiro, quando seguranças chineses foram rápidos ao intervir com manifestantes e jornalistas. E o governo brasileiro? Permaneceu calado.

Essa omissão não é apenas simbólica, ela reflete o novo posicionamento estratégico do Brasil. Ao ignorar ações antidemocráticas em seu próprio território, o país dá um recado claro sobre suas prioridades. Não se trata apenas de pragmatismo econômico, mas de uma escolha ideológica: sacrificar a transparência e os valores democráticos em nome de benefícios comerciais e alianças políticas convenientes.

“Anti-patriotismo”?

E quem critica essa aproximação com autocracias? Os apoiadores do governo rapidamente transformam qualquer crítica em uma afronta ao Brasil. A estratégia é conhecida: alinhar discordâncias a um discurso de “anti-patriotismo”, como se questionar relações com ditaduras fosse um ataque ao país e não uma defesa de seus princípios.

Paralelamente, a oposição política parece incapaz de formular uma resposta eficiente. Em vez de um discurso claro e fundamentado, opta por uma retórica do “eu avisei”, que mais parece birra de quinta série do que uma defesa séria da democracia.

O alinhamento do Brasil com a China de Xi Jinping não é um fato isolado, mas parte de um movimento maior que redefine o papel do país no cenário global. A questão não é apenas econômica, mas moral e estratégica. O governo Lula deve ser transparente sobre o custo dessa escolha porque os impactos não se limitam a balanças comerciais ou parcerias de infraestrutura. Eles dizem respeito ao tipo de nação que o Brasil deseja ser.

Democracia não se defende com boas intenções ou discursos genéricos. Ela exige ação consistente, clareza e coragem para enfrentar as consequências de escolhas difíceis. O tempo dirá se o Brasil optará por isso ou se contentará com a conveniência de alianças que comprometem os valores que uma democracia deveria sustentar.

Foto: Ricardo Stuckert/PR

Relação do Brasil com a China de Xi Jinping alcança um novo patamar

O Brasil, sob o governo Lula, já escolheu de qual lado ficará na disputa geopolítica mundial entre democracias e autocracias. E a resposta é clara: estamos alinhados ao eixo autocrático. A decisão foi consolidada com uma série de acordos que colocam o país em sinergia com o projeto global da China, mesmo que isso seja convenientemente disfarçado por discursos sobre interesses meramente comerciais.

A nova dinâmica foi celebrada pela embaixada chinesa, que não perdeu tempo em anunciar que as relações entre Brasil e China atingiram “um novo patamar”. Isso inclui a formação de um grupo de trabalho para alinhar as políticas de desenvolvimento brasileiras à Nova Rota da Seda, o plano de expansão econômica e política do governo chinês. A adesão oficial não foi anunciada, mas os mais de 40 acordos assinados, incluindo áreas sensíveis como inteligência e satélites, já indicam o caminho.

O discurso público do governo brasileiro, no entanto, joga com a ambiguidade. A narrativa oficial tenta afastar preocupações, enfatizando a natureza “comercial” da parceria. É a típica estratégia de soft power usada pelo governo chinês: sugerir um afastamento para não alarmar, enquanto os fatos mostram o contrário. Quem questiona esse alinhamento é rapidamente taxado de exagerado ou bolsonarista, como se fosse impossível criticar a aproximação com uma ditadura sem cair em extremos ideológicos.

O que muda?

Mas o que realmente muda com esse novo alinhamento? Não é apenas uma questão de acordos econômicos. É sobre os valores que o Brasil está disposto a endossar.

A China é uma autocracia que reprime dissidentes, proíbe religiões, mantém campos de concentração para a minoria Uigur e censura qualquer oposição. Essa postura ficou evidente durante o G20, realizado em território brasileiro, quando seguranças chineses foram rápidos ao intervir com manifestantes e jornalistas. E o governo brasileiro? Permaneceu calado.

Essa omissão não é apenas simbólica, ela reflete o novo posicionamento estratégico do Brasil. Ao ignorar ações antidemocráticas em seu próprio território, o país dá um recado claro sobre suas prioridades. Não se trata apenas de pragmatismo econômico, mas de uma escolha ideológica: sacrificar a transparência e os valores democráticos em nome de benefícios comerciais e alianças políticas convenientes.

“Anti-patriotismo”?

E quem critica essa aproximação com autocracias? Os apoiadores do governo rapidamente transformam qualquer crítica em uma afronta ao Brasil. A estratégia é conhecida: alinhar discordâncias a um discurso de “anti-patriotismo”, como se questionar relações com ditaduras fosse um ataque ao país e não uma defesa de seus princípios.

Paralelamente, a oposição política parece incapaz de formular uma resposta eficiente. Em vez de um discurso claro e fundamentado, opta por uma retórica do “eu avisei”, que mais parece birra de quinta série do que uma defesa séria da democracia.

O alinhamento do Brasil com a China de Xi Jinping não é um fato isolado, mas parte de um movimento maior que redefine o papel do país no cenário global. A questão não é apenas econômica, mas moral e estratégica. O governo Lula deve ser transparente sobre o custo dessa escolha porque os impactos não se limitam a balanças comerciais ou parcerias de infraestrutura. Eles dizem respeito ao tipo de nação que o Brasil deseja ser.

Democracia não se defende com boas intenções ou discursos genéricos. Ela exige ação consistente, clareza e coragem para enfrentar as consequências de escolhas difíceis. O tempo dirá se o Brasil optará por isso ou se contentará com a conveniência de alianças que comprometem os valores que uma democracia deveria sustentar.

Foto: picture alliance / ASSOCIATED PRESS | Vyacheslav Prokofyev

Convescote Autocrático

Kazan foi o palco escolhido por Vladimir Putin para reafirmar sua presença internacional, mesmo que em meio a um grupo de países autocráticos. Ao hospedar a atual reunião de cúpula dos Brics às margens do rio Volga, Putin consegue driblar o mandado emitido pelo Tribunal Penal Internacional que ordena sua prisão e posa de líder ao lado de outros presidentes também polêmicos, como Xi Jinping da China e Masoud Pezeshkian do Irã.

O Brics substitui aquilo que era chamado no passado de países não alinhados, uma vez que o bloco não é uma instituição, mas apenas um grupo político que atualmente gira em torno da China, defendendo sua agenda e interesses, contrapondo-se ao G7.  Moscou e Pequim, os reais líderes, usam a oportunidade de palco informal para apoio ao chamado “Sul Global”, designação que na cartilha de seus membros substitui a antiga expressão “Terceiro Mundo” ou “países em desenvolvimento”.

O bloco recentemente passou por uma ampliação, recebendo Egito, Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Etiópia e Irã como membros plenos. Este será o 1º encontro com os chefes de governo dos novos participantes, que se integram aos fundadores, Brasil, Rússia, Índia, China e (depois) África do Sul, que se reúnem desde 2009.

Vladimir Putin usa o evento como forma de demonstrar alguma liderança internacional desde que sua imagem foi atingida com a invasão da Ucrânia. Atualmente ele está banido de reuniões nos Estados Unidos e em países europeus e busca mostrar liderança entre o chamado Sul Global, mas também na Ásia Central, onde estão localizadas as antigas repúblicas soviéticas e em regiões da África, onde divide seu imperialismo político com o domínio econômico chinês.  

Com o objetivo de diminuir o impacto das sanções internacionais contra o Kremlin, Putin aposta na redução das transações em dólares. Para isso pretende usar o Brics e seu banco, o NDB, atualmente sob comando formal do Brasil. O objetivo é forçar com que a moeda dos EUA, o dólar, deixe de ser referência no comércio e finanças globais e, assim, perca a relevância como reserva de valor. Tudo, claro, combinado com os chineses.

Liderado pela China, o palco de Putin foi montado também para mostrar a musculatura e potencial de influência das autocracias que comandam o grupo. Como forma de ampliar seu poder, porém sem perder controle decisório, o bloco procura implementar uma nova modalidade de membros associados. Participariam de reuniões, mas sem votar. Assim, a reunião decidiu receber líderes de 24 nações, como Bahrein, Belarus, Bolívia, Nicarágua, Síria, Cuba, Argélia, Venezuela, entre outros, ou seja, nenhuma que navegue de forma calma pelas águas de um regime democrático. Um movimento que deixa claro o caminho trilhado pelo Brics: um clube autocrático em ampliação.

Ao fim da celebração russa, a presidência rotativa do bloco será transferida para o Brasil, que sediará a 17ª reunião de cúpula. Seria uma oportunidade para nosso país falar de temas importantes que passam ao largo da agenda do bloco, ignorados solenemente pelos países que lideram as discussões. Ao optar pelo silêncio, democracias como o Brasil apenas chancelam a cruzada autoritária de seus membros. Na verdade, o Brics se tornou um convescote autocrático financiado por ditaduras que oprimem suas populações. Já passou da hora de repensarmos nossa presença neste clube.

O lulopetismo vai afundar com suas ditaduras amigas

A ideologia marxista – ou marxista-leninista – já não existe em lugar nenhum do mundo em sua forma original, tendo-se repartido por formas peculiares de esquerdismo; umas mais brandas, outras mais extremas e nefastas.

Algumas dessas ramificações ideológicas vão se prolongando para além dos seus fundadores, como é o caso do castrismo em Cuba ou do chavismo na Venezuela.

No Brasil, a principal ideologia de esquerda ainda é o lulopetismo. Por sobre o respaldo do embasamento sindical do seu início, essa sub-ideologia estendeu seus tentáculos pela sociedade com confessado objetivo gramsciano de hegemonia cultural.

Nesse objetivo, avançou bastante: uma parte da Igreja católica brasileira, vinculada à teologia da libertação, é francamente lulopetista; nas universidades o lulopetismo herdou o intenso ativismo político das décadas de 60 e 70 do século passado; na imprensa há lulopetistas confessos, inconfessos e mesmo os que o são inocentemente, sem nem se dar conta; no ambiente artístico e cultural dá-se o mesmo.

A força arraigada do lulopetismo manteve a viabilidade eleitoral de Lula mesmo quando ele esteve preso. Naquele momento, se fosse elegível, seria eleito mesmo dentro da cadeia.

Em tese, com a eleição de Lula em 2022, o lulopetismo, vitorioso, deveria se fortalecer. Mas é o contrário que está acontecendo; ele hoje definha e se esgarça.

O terceiro governo Lula tem decepcionado muitos entusiastas dos mandatos anteriores. Trata-se de um governo fraco e ruim; sofrível, quando muito. No PT, Lula é forte e age como autocrata; no governo, submete-se às chantagens dos fisiológicos do centrão e é mais governado do que governa.

Lula está desconstruindo rapidamente a tal frente ampla que o elegeu. Nessa desconstrução, aliás, o presidente conta com a peçonha transbordante das alas extremistas do lulopetismo, que atacam com furor qualquer pessoa ou entidade que apresente alguma discordância.

Se ele realmente for candidato à reeleição, a nova frente lulista avançará apenas do PT para as franjas mais extremistas da esquerda; as mesmas que, no meu entender, estão catalizando repulsas que levarão ao esgotamento do próprio lulopetismo.

Visão tosca, primitiva e retrógrada

Convém notar que a frente ampla que elegeu Lula não era uma frente pró-Lula propriamente dita, mas uma frente pró-democracia. A ameaça reacionária representada pelos aloprados bolsonaristas foi entendida, naquele momento, como mais perigosa para a democracia do que o retorno de Lula ao poder.

Por mero pragmatismo e não por convicção democrática, Lula aparenta internamente algum respeito às instituições. Isso porque ele sabe que não contaria com o apoio da sociedade se explicitasse seu ranço autoritário e empreendesse abertamente alguma manobra inconstitucional.

Restou para ele, então, admirar e bajular aqueles que conseguiram estabelecer, lá fora, em seus países, a ditadura que ele não logrou estabelecer aqui. Da Venezuela a Rússia, passando pelo pelo Irã, Lula aproximou o Brasil do que há de mais contrário à civilização, aos direitos humanos, à liberdade e à democracia.

Como corretamente afirmou o professor Denis Rosenfield, em recente artigo, “a sua convicção antidemocrática transparece principalmente em sua visão das relações exteriores”. 

William Waack também foi no ponto quando asseverou que Lula acredita estar do lado certo, inevitável e vitorioso da história, aquele que vai destruir o “imperialismo americano” com ajuda da China e da Rússia.

Lula e sua assessoria internacional, segundo Waack, “entendem a grande ruptura geopolítica atual em linha com um determinismo no sentido de que é inevitável o triunfo do ´Sul´ (os pobres, os emergentes, os espezinhados pela hipocrisia Ocidental) conduzido pela China. Essa visão de mundo parte da premissa de que valores como democracia ou direitos humanos são mero pretexto de países ocidentais para avançar seus interesses, sobretudo econômicos. E que sanções não passam de ferramentas para atrapalhar os contestadores dessa ordem. É uma visão tosca, primitiva e retrógrada.

As ditaduras latinas amigas

A fraude eleitoral na Venezuela foi escandalosa e a violência anunciada é praticada pelo ditador Maduro e seus esbirros sem nenhuma cautela ou pudor; mesmo diante de práticas tão abjetas, o lulopetismo extremista realça a “democracia” chavista e enaltece o ditador Maduro.

Tal discurso, expresso sem rodeios, esfrangalha a capa democrática com que o lulopetismo tradicional tentou se cobrir; e sem essa capa o lulopetismo torna-se imprestável e inviável.

No caso da Nicarágua, as violências da ditadura de Daniel Ortega contra o povo do seu país vieram a ter alguma resposta do governo brasileiro apenas quando a perseguição contra o clero católico chegou ao ponto de o próprio Papa Francisco pedir para Lula intervir.

Como se sabe, a ala progressista da Igreja Católica no Brasil é ponto de apoio do Partido dos Trabalhadores desde a sua fundação. Mesmo que se deva considerar a reação tardia do governo brasileiro aos abusos perpetrados pelo regime nicaraguense, resta patenteada a ferocidade de um ditador que Lula defendeu por muito tempo e que o lulopetismo extremista continua a defender.

O presidente Lula e a ala do PT na qual restou algum juízo já dão mostras de perceber o potencial de desgaste devido ao acovardamento e a cumplicidade diante das tiranias latinas. Apenas por isso começam a esboçar reações diplomáticas um pouco mais condizentes com a bela tradição da escola do Barão do Rio Branco.

Ainda assim, são reações eivadas de cinismo. Celso Amorim, por exemplo, declarou em recente entrevista à GloboNews que não tem confiança nas atas disponibilizadas pela oposição venezuelana. Falta-me a paciência quando leio na imprensa que isso é prudência diplomática. Não é. É maldade, cara de pau, falta de caráter e hipocrisia.

Lula e a “reeleição” de Maduro na Venezuela

A questão com Maduro representa o maior desafio diplomático que o governo Lula já enfrentou. A resposta de Lula à eleição de Maduro talvez não signifique muito para a Venezuela, onde a situação é complicada, mas é de extrema importância para o Brasil. A maneira como o governo Lula se posicionará indicará o que ele considera ser uma democracia.

É claro que muitos dirão que já sabiam, que Lula sempre demonstrou suas intenções. Mas a situação agora é diferente. Classificar situações diferentes como iguais é um erro, e precisamos evitar sermos dominados por políticos que se aproveitam dessa confusão. No momento, a questão é: o que o governo Lula fará?

Lula conseguiu enviar um emissário para observar as eleições na Venezuela, algo que outros líderes, como Boric, Milei e Lacalle Pou, não fizeram. Lula declarou que se esforçaria para que o processo fosse democrático. No entanto, se seu enviado disser que as eleições não foram democráticas, isso representará uma derrota gigantesca para Lula, colocando-o em uma sinuca de bico.

Até agora, o comunicado do Itamaraty afirmou que o processo foi pacífico, o que contradiz os relatos de prisões, desaparecimentos e mortes. Lula ainda está indeciso sobre qual caminho tomar. Se optar por apoiar Maduro, ele pode se alinhar às grandes ditaduras, mas isso terá um preço alto para o Brasil, incluindo consequências econômicas e políticas.

Os países ditatoriais enfrentam bloqueios e boicotes internacionais que afetam profundamente suas populações. Caso o Brasil se alinhe a essas ditaduras, a população brasileira também sofrerá as consequências, incluindo aqueles que fazem oposição ao governo.

Portanto, a declaração de Lula sobre a Venezuela é crucial para nós. Se ele aceitar a fraude eleitoral na Venezuela, isso indicará os movimentos futuros do Brasil. Não importará se você gosta ou não de Lula; todos nós estaremos nesse barco. A questão agora é: o povo brasileiro tem maturidade para pressionar o governo a não reconhecer como democrática uma eleição fraudada ou preferirá ver o circo pegar fogo apenas para dizer “eu avisei”?

As duas caras de Lula e o jornalismo servil

A última semana foi marcada por dois eventos sintomáticos que, a meu ver, ilustram o dom camaleônico de Lula: a recepção um tanto quanto afetada do presidente francês Emmanuel Macron — com direito a foto de mãos dadas na floresta — e a fingida indignação com a proibição, na Venezuela, da candidatura de Corina Yoris, substituta da injustamente inelegível Corina Machado.

Tenho chamado atenção, em alguns de meus artigos, para o aspecto propriamente maquiavélico da ação política de Lula. Como se sabe, Maquiavel, em O Príncipe, reclama para o governante uma adaptabilidade às circunstâncias, sob a forma de esperteza e ardil. O príncipe não pode ter sua conduta balizada por princípios morais, mas pode ocasionalmente fingir levá-los em consideração quando isso se fizer necessário. A política, assim concebida e vivenciada, é o jogo retórico do poder no qual impera a hipocrisia.

O leitor poderá dizer que 90% dos políticos se movem dentro dessa perspectiva amoral e pragmática, no que tendo a concordar. Nem por isso é ocioso o ofício de denunciar as contradições entre o discurso e a ação dos nossos representantes.

Jornalismo

Até ontem eu pensava, inclusive, que essa vigilância crítica era quase sinônimo de jornalismo, mas entendi melhor a crise de credibilidade da imprensa brasileira quando vi o constrangedor vídeo da Globo News no qual a jornalista Daniela Lima se vangloria, de forma patética, por ter passado seu telefone pra Janja, que o passou para Lula e Macron para que vissem alguns memes. O Macron, segundo Lima “se divertiu horrores” e o Lula “ficou meio meu deus do céu”.

A cobertura de uma agenda política entre dois chefes de Estado, feita por tietes risonhas foi devidamente ridicularizada nas redes sociais. Mas apontar o ridículo da vassalagem de parte da imprensa a Lula não é suficiente. É preciso retomar o fio das questões importantes com a seriedade que o momento requer.

O que o Brasil ganhou com a visita de Macron?

Macron desembarcou no Brasil com uma comitiva de 140 empresários franceses, com o propósito bem definido de atrair investidores brasileiros, a maioria ligados à bioeconomia. O marketing em torno da visita trabalhou principalmente para projetar os dois presidentes como líderes ambientais. Macron conseguiu tudo que queria, a começar pela foto com os indígenas, que muito lhe interessava.

Foi anunciada uma coalizão de recursos em projetos de pesquisa sobre bioeconomia e sustentabilidade no valor de 5,4 bilhões de reais, em uma parceria entre bancos públicos brasileiros e franceses. O Brasil não conseguiu, portanto, um investimento unilateral. A expectativa de uma doação direita da França para o fundo da Amazônia foi frustrada.

O outro balde de água fria para o Brasil foi a rejeição categórica, por parte do presidente francês, do acordo UE-Mercosul, que Lula finge querer avançar. Macron disse que os termos do acordo eram péssimos e que seria uma loucura assiná-lo.

Usinas

Outra frustração foi a recusa francesa em assinar o empréstimo bilionário para o desenvolvimento das usinas nucleares de Angra 1 e Angra 3. No lugar do esperado recurso financeiro para desenvolvimento das usinas brasileiras, firmou-se um Memorando de Entendimento entre o Serviço Geológico Brasileiro (SGB) e o Serviço Geológico Francês (BRGM) para a exploração de minerais estratégicos, principalmente o Urânio.

Cerca de 70% da eletricidade francesa é de origem nuclear e um de seus principais fornecedores africanos, o Niger, passa por fortes instabilidades políticas. Poder explorar o Urânio brasileiro é realmente motivo para Macron “se divertir horrores”, tirar fotos saltitantes de mãos dadas com Lula e vender para o mundo a falsa ideia de que Lula “restaurou o equilíbrio institucional”, como escreveu em suas redes sociais.

A visita de Macron não serviu propriamente ao Brasil, mas a Lula, que tenta reverter uma queda de popularidade, provocada principalmente pela sua política externa bizarra, que vai desde a cumplicidade com as ditaduras de Putin e Maduro até as comparações infames de Israel com o nazismo.

Hipocrisia sobre guerra na Ucrânia

É justamente na política internacional que o cinismo de Lula fica mais patente. É lamentável que Emmanuel Macron, que tem engrossado a voz para liderar o esforço europeu em favor da Ucrânia e contra a Rússia, não tenha confrontado com firmeza a postura pró-Putin de Lula.

Em entrevista coletiva, os dois presidentes foram submetidos a uma pertinente questão (feita por um jornalista francês porque, se depender do jornalismo brasileiro, como diria a Daniela Lima “é só love”):

Presidente Lula, o que o senhor pensa do fato de o presidente Macron não descartar o envio de tropas para a Ucrânia? E senhor presidente Macron, o que o senhor pensa de o presidente Lula convidar Vladimir Putin para o G20?”, questionou o jornalista estrangeiro.

O primeiro a responder foi Macron, que disse que Lula era responsável pelo seu convite, mas que deveria submetê-lo a todos os membros do G20, devendo respeito a todos. 

Grosseria

A resposta de Lula, por sua vez, foi grosseira, abusada e cínica. Ele começou criticando a pergunta: “Seria tão bom se a gente tivesse pergunta pra falar da relação Brasil e França”. Depois, ele veio com essa pérola: “Veja, estou a tantos mil quilômetros de distância da Ucrânia que eu não sou obrigado a ter o mesmo nervosismo que o povo francês que está mais próximo, o povo alemão, o povo europeu”.

A hipocrisia foi logo apontada nas redes sociais. Usuários do X reagiram à fala de Lula em tom jocoso “ao contrário da Faixa de Gaza, que está aqui do lado e por isso o presidente se preocupa tanto”, lê-se em um irônico perfil.

Mas a coisa não ficou só aí. Lula mentiu ao afirmar que a postura do Brasil em relação à guerra da Ucrânia sempre foi bastante clara. Não é verdade. Sempre foi uma postura ambígua e cínica que tenta equiparar o país invasor com o país invadido. Ao final da sua resposta à pergunta do jornalista francês, Lula volta a isso afirmando que “os dois bicudos vão ter que se entender em algum momento.” Traduzindo: Lula considera Zelensky um “bicudo” por não se render ao poderio de Putin e negar-se a entregar a Ucrânia e seu povo à mãe Rússia.

Ao dizer, ainda na resposta à mesma pergunta, que conheceu Putin em reuniões de organizações internacionais nas quais há encontros com “muita gente que você não concorda”, Lula faz Macron de besta que, por sua vez, se finge de besta para melhor passar. Afinal, é difícil imaginar que o presidente francês não tenha conhecimento das inúmeras provas de simpatia, amizade e apoio que Lula, seus assessores diretos e seu partido já deram ao ditador russo.

Estamos, portanto, diante de um político maquiavélico, cujo método é a dissimulação. O PT, como já foi noticiado, parabenizou Putin pela vitória em uma eleição de fachada, considerando um “feito histórico” o espetáculo eleitoral marcado pela repressão, prisão e assassinato de opositores.

Uma política externa esquizofrênica

O cientista político Sergio Fausto, no artigo A infame nota do PT sobre a reeleição de Putin, publicado no Estadão, apontou a contradição entre o que o PT prega no Brasil e o que pratica e defende no âmbito internacional, chamando essa contradição de “esquizofrenia.”

O referido artigo alerta ainda que, se o PT fosse irrelevante, essa esquizofrenia seria um problema interno do partido, mas, como se trata do partido que tem a presidência da República, o tema é de interesse nacional.

Uma nação democrática deve defender princípios e valores democráticos internamente e externamente. É inadmissível que continuemos a apoiar ditaduras na América Latina e ao redor do mundo. 

Essa política externa — que Sergio Fausto chama de esquizofrênica e eu chamo de maquiavélica, hipócrita, cínica e infame — está custando a Lula a sua popularidade e só por isso ele condescendeu que o Ministério de Relações Exteriores fizesse recentemente uma nota alegando preocupação com o “processo eleitoral” da Venezuela.

Hipocrisia sobre eleição da Venezuela

A nota do Itamaraty é uma peça retórica de dissimulação e má-fé. Como Duda Teixeira explicou didaticamente em sua nota na Crusoé, o texto, na verdade, chancela Maduro e repete a narrativa oficial do ditador.

A nota afirma que onze candidatos de oposição lograram se candidatar, o que é uma mentira; a nota fala em fortalecer a democracia, onde democracia não há; a nota critica as sanções americanas que visam restabelecer a democracia e, finalmente, a nota normaliza o impedimento de Maria Corina Machado, expressando preocupação apenas com o veto à sua substituta.

A fala de Lula sobre assunto, por ocasião ainda da coletiva de imprensa ao lado de Emmanuel Macron, repete os mesmos subterfúgios da nota do Itamaraty.

O impedimento da candidatura de Maria Corina Machado por um Suprema Corte controlado por Maduro já tinha deixado claro que os Acordos de Barbados não seriam cumpridos. Mesmo assim, Lula disse o seguinte na coletiva: “Eu disse pro Maduro: garanta que as eleições sejam a mais democrática.´”

Sem pronunciar o nome da líder da oposição, Corina Machado, a quem se refere apenas como “aquela que foi proibida de ser candidata pela justiça”, Lula disse considerar grave que a sua substituta não tenha conseguido se registrar, dando por algo de somenos importância o impedimento anterior da principal adversária de Maduro.

Lula quer que Maduro mantenha a sua ditadura, mas que tenha ardil suficiente para fazer isso aparentando ter havido eleições livres. Não nos esqueçamos do conselho do astuto Lula ao companheiro chavista: “Se eu quiser vencer uma batalha, eu preciso construir uma narrativa para destruir o meu potencial inimigo. Você sabe a narrativa que se construiu contra a Venezuela, de antidemocracia e autoritarismo”, disse Lula, em maio de 2023, dirigindo-se a Maduro, e acrescentou que cabia à Venezuela “mostrar a sua narrativa para que as pessoas possam mudar de opinião”.

Pouco importa a Lula, portanto, se a Venezuela é uma democracia ou não, desde que aparente ser e a sua popularidade deixe de cair por apoiar tal regime. 

Assim como reconheceu a farsa eleitoral russa e parabenizou Putin pela sua expressiva vitória, Lula estava totalmente disposto a fazer o mesmo com uma futura eleição de Maduro na qual a sua maior opositora estaria eliminada do jogo. 

Mas Maduro é aloprado demais. Sem saber como aplicar a lição do companheiro mais astuto e mostrando-se inábil na construção de uma narrativa verossímil de democracia na Venezuela, o ditador vizinho está se tornando um estorvo para Lula.

Duas caras

Lula tem duas caras. Ele quer ser o líder das autocracias do sul global sem deixar de ser bajulado por líderes progressistas e globalistas do Ocidente, a exemplo de Emmanuel Macron. 

Parte da imprensa que ainda respira no Brasil tem apontado essas contradições, dando a conhecer o presidente do Brasil por aquilo que ele realmente é e não por aquilo que ele quer aparentar ser. 

Ao cidadão, cabe, cada vez mais, a responsabilidade de buscar um jornalismo comprometido e vigilante e repudiar um certo tipo de jornalismo servil, feito por mentes infantilizadas, que não conseguem conter o embevecimento juvenil com a proximidade do poder.