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Luladay ou #Bolsonaroday? Na política brasileira, todo dia é primeiro de abril

O Brasil caminha a passos largos para oficializar o primeiro de abril como feriado político nacional. A cada dia, a mentira é tratada como narrativa legítima. A verdade, como afronta. E o mais assustador é o quanto isso se naturalizou. Tornou-se regra. Tornou-se método. Quem diz a verdade é perseguido. Quem inventa versões convenientes, aplaudido.

Essa inversão começa com a figura mais nociva da política recente: o fã de político. Uma legião de aduladores que decidiu tratar Lula e Bolsonaro como santos modernos. Acordam e dormem defendendo seus líderes, sem jamais questionar. E se alguém ousa criticar qualquer um dos dois, recebe na hora o rótulo. Gado, traidor, isentão, fascista. Não importa o conteúdo do que foi dito. Importa apenas se favorece ou não o político promovido a santo.

Houve um tempo em que criticar governo era esporte nacional. E nem estamos falando de democracia consolidada. Na ditadura militar, falar mal do governo em casa era hábito de gente de todos os matizes políticos. Hoje, basta discordar de um político para ser tratado como ameaça. A crítica virou heresia. E quem critica é punido com difamação.

A apoteose da imbecilidade também criou a ideia de que quem votou em alguém não pode reclamar da pessoa. Também não pode se arrepender. Como se mudar de opinião fosse falha de caráter. Como se errar em uma eleição obrigasse o sujeito a manter o erro pra sempre, só pra não dar o braço a torcer. O resultado disso é uma população que prefere perder, mas ter razão. Que não quer melhorar o país, só confirmar que estava certa. Se ninguém mudar de opinião, não precisa mais de eleição, o resultado sempre será o mesmo.

Enquanto isso, políticos mentem. E mentem com tranquilidade. Sabem que têm uma base fiel que vai repetir qualquer coisa. Mentiras são justificadas. Verdades, editadas. E, se nada funcionar, inventa-se um ataque contra o crítico, só pra desviar o assunto. Funciona. Sempre funcionou.

O que muda agora é que essa dinâmica virou padrão. Todo mundo entrou no jogo. Quem não aceita esse teatro é tratado como alienado. Ou vendido. Ou “isentão”, o novo xingamento favorito dos fanáticos. Como se não querer ser trouxa fosse motivo de vergonha. Como se o cidadão que rejeita ser manipulado por político fosse o problema.

A verdade é simples: o brasileiro não ficou mais politizado. Ficou mais histérico. O debate político virou fofoca de novela. É baseado em print, vídeo editado, conversa de grupo e xingamento. E é nessa lama que os políticos prosperam. Porque quanto menos gente pensa, mais fácil é mentir. Enquanto houver torcida organizada de político, todo dia será primeiro de abril.

Lulo-madurismo ou bolso-trumpismo: a encruzilhada do atraso

A polarização entre lulismo e bolsonarismo é uma praga que há tempos vem corroendo a política e apodrecendo o cérebro da sociedade brasileira, reduzindo o debate político-eleitoral ao nível fanatizado da lacração e do insulto.

É lugar comum da análise das ideologias a consideração de que a esquerda e a direita se unem em seus extremos. 

No caso em tela, temos que o extremo-esquerdismo lulopetista se une ao extremo-direitismo bolsonarista por modos que vão além da indigência do discurso; um desses modos é a adoção de ídolos.

No caso do lulopetismo a idolatria ideológica é vasta, destacando-se, porém, a paixão de que foi objeto o ditador cubano Fidel Castro. Hoje, destaca-se a fixação adulatória no ditador venezuelano Nicolás Maduro.

No caso do bolsonarismo, a idolatria ideológica resgatou durante algum tempo a figura de Brilhante Ustra, comandante do (DOI-CODI) e um dos principais símbolos da repressão durante a ditadura militar brasileira. Hoje, destaca-se a fixação adulatória no presidente norte-americano, Donald Trump.

Historicamente, obsessões ideológicas costumam desnortear os políticos e levá-los a decisões desastrosas. 

Considerando-se o tenso contexto da atual geopolítica, deixar o Brasil a mercê das idiossincrasias ideológicas do lulopetismo ou do bolsonarismo pode levar a desastres maiores do que aqueles que já foram por eles produzidos.

Lula, Maduro e o “exército de Stédile”

Após a escandalosa fraude na última eleição presidencial da Venezuela, Lula tinha controlado um pouco sua incontinência adulatória em relação ao ditador Maduro, mas terminou sendo arrastado pela incontrolável paixão do extremo petismo e está recompondo a velha amizade; isto no quadro nebuloso de uma composição fundiária e militar.

Paralelamente a um acordo de cooperação técnica em agricultura celebrado por Maduro e Lula, o ditador venezuelano cedeu 180 mil hectares de terra para ocupação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o conhecido movimento invasor de terras liderado por João Pedro Stédile.

Que uma composição com o MST seja também militar é algo que emerge da própria fala do presidente Lula que, em 2015, no contexto de forte pressão política após denúncias, pela operação Lava Jato, do esquema de corrupção petista, exclamou, durante discurso: “também sabemos brigar. Sobretudo quando o Stédile colocar o Exército dele nas ruas”.

No artigo “MST é a tropa de choque de Maduro”, Duda Teixeira denuncia, com razão, a doação de terras de Maduro para o MST como uma “caso clássico de ingerência externa, em que um ditador estrangeiro financia um grupo armado que gera instabilidade no Brasil, violando as leis brasileiras”.

O jornalista também nos lembra, em seu artigo, as vezes em que o MST já atuou como a tropa de choque de Maduro além das suas fronteiras, a exemplo do que ocorreu em 2019, quando o movimento ocupou a embaixada da Venezuela em Brasília para expulsar diplomatas do presidente interino Juan Guaidó.

Nesse contexto, deve-se atentar ainda para o – temporariamente suspenso – projeto de Maduro de invadir a Guiana. 

Estando agora parte do MST em terras cedidas pelo governo da Venezuela, se o ditador Maduro decidir fazer avançar o plano postergado, poderá certamente contar, mais uma vez, com o leal “exército de Stédile.”

I love you, Trump”

Consta no anedotário político brasileiro que, por ocasião da Assembleia Geral da ONU, em 2019, diplomatas presentes na sala que abrigava presidentes antes e depois dos discursos, presenciaram o momento em que o então presidente Jair Bolsonaro disparou para Donald Trump um “I love you” e recebeu um “nice to see you again”.

De lá pra cá a paixão só aumentou. A paixão, porém, quando invade a cena política, pode colocar os atores e a plateia em risco.

Desde o início do seu novo mandato na Casa Branca o objeto da paixão do ex-presidente brasileiro tem governado com imprevisibilidade e desrespeito ao próprio legado histórico-político dos Estados Unidos. 

Sob Trump, o outrora farol do mundo livre, traiu os melhores ideais da América, entrincheirando-se em um nacionalismo-populista tosco e boçal, deixando atônitos seus antigos aliados europeus.

A direita brasileira sabuja mostra-se, porém, incapaz de fazer uma crítica a Trump, mesmo diante da sequência estonteante de ditos e feitos deploráveis do presidente americano.

Da direita brasileira não vem nenhuma crítica à infame postura pró-Rússia, nenhuma crítica à cruel política de deportação de imigrantes, nenhuma crítica à insana guerra comercial contra a Europa, nenhuma crítica aos arroubos expansionistas que ameaçam a Groenlândia, o Panamá e o Canadá.

A reação do bolsonarismo a qualquer medida do governo dos EUA será sempre acrítica. Quaisquer que sejam elas, serão recebidas com entusiasmo, louvor e integral apoio.

Já era assim antes, ainda mais agora que Eduardo Bolsonaro se licenciou do cargo de deputado federal no Brasil para permanecer nos EUA prestando serviço em tempo integral à família Trump na esperança de angariar apoio para livrar o seu pai da cadeia.

Encruzilhada do atraso

A polarização entre lulistas e bolsonaristas dará novamente o tom na disputa eleitoral de 2026?

O lulopetismo tem ao mesmo tempo vantagem e desvantagem por estar no poder. A desvantagem vem do desgaste de um governo ruim; a vantagem vem do fato de o presidente Lula já ter contratado um marqueteiro a preço de ministério e não estar economizando nos gastos de campanha.

O bolsonarismo tem a desvantagem de, não estando no poder, não poder usar a máquina pública a seu favor, como fez em 2022, quando perdeu por pouco. Mas tem a vantagem de que o ex-presidente Bolsonaro, declarado inelegível pelo TSE, não pode ser candidato.

Se pudesse ser candidato em 2026, Bolsonaro perderia por muito, mas um seu substituto (ou substituta) pode ter melhor sorte.

Azar mesmo é o da população brasileira se continuar paralisada nessa encruzilhada do atraso.

Manual do Isentão

Por que bolsononaristas e lulopetistas não são democratas (no sentido pleno ou liberal do termo). 

Este pode ser o manual de todo aquele que os populistas (de direita e de esquerda) chamam de “isentão”

Vamos falar a verdade. Bolsonaristas e lulopetistas usam o regime eleitoral, mas não são democratas no sentido liberal ou pleno do termo. Eis aqui as razões, na forma de um decálogo que pode servir como um verdadeiro manual do isentão.

Mas atenção! Isso não vale para simples eleitores de Bolsonaro ou de Lula e sim para militantes das seitas que ambos lideram.

1 – Democratas se opõem e resistem a qualquer tirania (seja de direita ou de esquerda).

➡️ Bolsonaristas se opõem à ditaduras de esquerda (como a Venezuela), mas contemporizam com ditaduras de direita (como a Hungria).

➡️ Lulopetistas, por sua vez, se opõem a ditaduras de direita (como El Salvador), mas contemporizam com ditaduras de esquerda (como Cuba).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas, aliás, contemporizam, ambos, com ditaduras que estão na vanguarda do eixo autocrático (como a Rússia).

2 – Democratas não praticam a política como continuação da guerra por outros meios (e por isso recusam o majoritarismo, o hegemonismo e o “nós contra eles”).

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas tratam adversários como inimigos, buscando deslegitimá-los como players válidos e destruí-los ou exterminá-los.

3 – Democratas não querem destruir nenhum sistema ou ‘modo de produção’ supostamente responsável por todo mal que assola a humanidade.

➡️ Bolsonaristas são reacionários (antissistema) disfarçados de conservadores.

➡️ Lulopetistas são, em boa parte, revolucionários (anticapitalistas) travestidos de progressistas.

4 – Democratas se dedicam a fermentar o processo de formação de uma opinião pública democrática. Não querem conduzir massas. São o fermento, não a massa.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas se dedicam a arrebanhar massas para seguir um líder salvador do povo (ou do que chamam de democracia).

5 – Democratas não são populistas, não acham que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe o povo (o “verdadeiro povo”, composto pelos que os seguem) às elites (ou ao sistema).

➡️ Bolsonaristas são populistas-autoritários (ou nacional-populistas) como Trump, Orbán, Modi, Bukele, Ventura, Abascal, Wilders, Weidel, Salvini, Le Pen, Farage.

➡️ Lulopetistas são neopopulistas como Obrador-Sheinbaum, Manoel-Xiomara Zelaya, Petro, Evo-Arce, Lula, Ramaphosa. E defendem populistas de esquerda (ou socialistas) que viraram ditadores como Lourenço, Chávez-Maduro, Daniel-Murillo Ortega.

6 – Democratas não reduzem a democracia à eleições.

➡️ Bolsonaristas e lulopetistas dizem-se democratas porque adotam a via eleitoral, mas usam as eleições contra a democracia, não como um metabolismo normal do regime político e sim como instrumento para empalmar o poder e nele se delongar.

7 – Democratas tomam a liberdade e não a ordem como sentido da política (e é nesse sentido originário do termo que podem se dizer liberais).

➡️ Bolsonaristas acham que o sentido da política é a ordem, por isso querem implantar uma ordem supostamente mais condizente com a natureza, com a natureza humana (seja lá o que for) ou com a vontade divina.

➡️ Lulopetistas também acham que o sentido da política é a ordem, uma ordem mais justa, mais consonante com as leis da história e praticam a política como uma guerra para implantar essa ordem – preconcebida por eles – ex ante à interação.

➡️ Bolsonaristas são iliberais.

➡️ Lulopetistas são não liberais.

8 – Democratas respeitam o Estado democrático de direito, não violam as leis escritas e procuram se adequar às normas não escritas que garantem a vigência dos critérios da legitimidade democrática (a liberdade, a eletividade, a publicidade ou transparência, capaz de ensejar uma efetiva accountability, a rotatividade ou alterância, a legalidade e a institucionalidade).

➡️ Bolsonaristas violam as leis escritas e, não raro, são golpistas (querem destruir as instituições que compõem o que chamam de “o sistema”).

➡️ Lulopetistas, quando obedecem às leis escritas, violam as normas não escritas que garantem a legitimidade democrática e, não raro, são hegemonistas (não querem destruir as instituições e sim ocupá-las e fazer maioria em seu interior para colocá-las a serviço de seu projeto de conquista de hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para se delongar no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, o “DNA” da democracia).

9 – Democratas trabalham para universalizar a cidadania, mas não confundem democracia com cidadania, não acham que a igualdade socioeconômica seja precondição para a liberdade política, defendem os direitos das minorias (inclusive das minorias políticas).

➡️ Bolsonaristas não priorizam a cidadania, acham que as leis devem ser feitas para a maioria e não respeitam os direitos das minorias sociais e políticas.

➡️ Lulopetistas usam a democracia realmente existente, mas querem construir outro tipo de regime (supostamente) democrático, onde a democracia seja redefinida como cidadania para todos (ou para a ampla maioria) ofertada pelo Estado quando nas mãos certas (ou seja, nas mãos dos progressistas), a redução das desigualdades socioeconômicas (operada, é claro, pelo Estado nas mãos certas) seja condição para a fruição das liberdades civis, os direitos políticos sejam iguais para todas as minorias (menos para as minorias políticas que não sejam progressistas, isto é, os conservadores estarão fora).

10 – Democratas são pluralistas, nos sentidos social e político do termo.

➡️ Bolsonaristas são antipluralistas nos sentidos social e político do termo. Almejam um tipo de regime autocrático em que as pessoas não apenas ajam sob comando, mas pensem sob comando segundo valores que consideram conservadores (mas que, na verdade, são reacionários): família (monogâmica), deus (ou religião), pátria (na acepção nacionalista), ordem como sentido da política (e a defesa do pensamento “lei e ordem”), aumento do uso da força policial como solução para o “problema da violência”, anticomunismo, antiparlamentarismo, racismo, misoginia, xenofobia, a volta a um passado (idealizado) onde a vida, supostamente, era melhor.

➡️ Lulopetistas são antipluralistas no sentido político do termo. Querem conquistar hegemonia sobre a sociedade a tal ponto que as pessoas tenham as ideias “certas” sem necessidade de comando explícito segundo valores que consideram progressistas (mas que, em boa parte, são revolucionários: anticapitalistas): a ordem (“mais justa”) – e não a liberdade – como sentido da política, antiliberalismo, estatismo, a crença numa imanência histórica, na existência de leis da história que podem ser conhecidas por quem tem a teoria verdadeira ou o método correto de interpretação da realidade e a luta de classes (ou a luta identitária: a afirmação da diferença convertida em separação) como motor da história, a igualdade (ou a redução da desigualdade) socioeconômica como pré-condição para a liberdade (ou para a igualdade política), a equivalência entre democracia e cidadania (ou a redução da democracia à cidadania para todos) e a fuga para um futuro (idealizado) onde a vida, supostamente, será melhor.

Censura à direita: a batalha política pela linguagem

Tão logo pensei na expressão “censura à direita” para servir de título a este artigo, dei-me conta da sua ambiguidade.

O duplo sentido decorre da estrutura sintática da frase. De fato, a preposição “a” na locução “à direita” pode indicar tanto a direita como sujeito agente da censura (apontando a censura promovida pela direita) quanto a direita como sujeito paciente da censura (apontando a censura promovida pela esquerda).

Sabendo que o leitor tenderá a interpretar a frase com base no seu conhecimento prévio, valores e expectativas, achei por bem manter a anfibologia do título como uma espécie de armadilha ou pegadinha com a qual espero ter fisgado leitores de ambos os espectros políticos.

De todo modo, acrescentei um subtítulo que dá ao leitor ansioso uma pista acerca do rumo que esse artigo tende a tomar: “a batalha política pela linguagem.”

Em artigo publicado no mês passado, intitulado “Trump, a revolução do senso comum e o fim da cultura woke” escrevi que a eleição de Donald Trump foi uma reação ao avanço da agenda delirante e intolerante da esquerda progressista, mas escrevi também que deveríamos estar atentos, pois o absurdo da cultura woke não deveria ser enfrentado por meios igualmente absurdos e autoritários.

Infelizmente, porém, as coisas estão tomando esse rumo e à “revolução do senso comum” tem faltado o mais elementar bom senso.

O governo Trump está eliminando, com sucesso, programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI). O problema é que, para conseguir isso, ele está também cerceando, em certos aspectos, a liberdade de expressão e apagando um pouco da história.

O jornal New York Times compilou uma lista extensa de termos que estão sendo evitados ou proibidos pela gestão do atual presidente americano.

A lista inclui termos já esperados como “LGBTQ”, “não binário”, “identidade de gênero”, “multicultural” “sexualidade”, mas também “defensores”, “ativismo”, “opressão”, “nativo americano”“mulheres”, “injustiça”, “imigrantes”, “vítimas”, “deficiência”, “prostitutas”, “socioeconômico” e por aí vai.

As centenas de palavras sob bandeira vermelha estão sendo apagadas de sites públicos e currículos escolares.

Em alguns casos, gerentes de agências federais foram apenas orientados a ter cautela no uso dos termos, em outros casos, porém, as palavras foram proibidas.

A presença das “palavras erradas” também pode sinalizar automaticamente a necessidade de revisão de propostas de subsídios e contratos.

Essa política não se limita à linguagem em documentos textuais. De acordo com a matéria veiculada no jornal suíço Neue Zürcher Zeitung (NZZ), o Pentágono está revisando seu acervo fotográfico para remover imagens que não se alinham com essa nova diretriz, tendo criado uma base de dados com milhares de fotos destinadas à remoção.

Entre as imagens em risco de remoção está a da aeronave “Enola Gay”, que lançou a primeira bomba atômica sobre Hiroshima em 1945, embora o nome da aeronave remeta não à condição homossexual, mas ao nome da mãe do piloto.

Fotos dos “Tuskegee Airmen”, primeiros pilotos afro-americanos da Segunda Guerra, reconhecidos como heróis por sua contribuição para o fim da segregação militar nos Estados Unidos, além de fotos das primeiras mulheres em papéis ativos nas Forças Armadas também correm risco de ser removidas.

Apesar de o presidente Trump e seu fiel conselheiro, Elon Musk, se apresentarem como arautos da liberdade de expressão e serem assim aclamados pela direita brasileira, a identificação e supressão de vocabulário específico pode implicar uma séria e perigosa restrição do debate em relação a tópicos considerados indesejados pelo governo.

A situação é um tanto complexa quando consideramos que o extenso e extravagante vocabulário woke disseminado por décadas representa, de fato, a tentativa de controle da narrativa por parte da esquerda progressista. Mas a forma como o combate ao wokismo está evoluindo na guerra cultural dos EUA aponta para um estreitamento do debate genuíno.

A linguagem, que deveria ser instrumento de reflexão e libertação, é manipulada ora por um lado, ora pelo outro, sob diferentes pretextos ideológicos. Seja na gestão Biden, seja na gestão Trump, o que se percebe é a tentativa reiterada de controle linguístico.

O que podemos tirar de lição é que tanto a esquerda quanto a direita batalham para encaminhar a sociedade a um mundo autoritário – quiçá totalitário – no qual não há verdade e a linguagem é apenas o reflexo do poder.

Foto: EFE/Andre Coelho.

Decadência Política

Lula é classificado como um líder político habilidoso, capaz de governar com facilidade e criar maiorias no parlamento, encantamento nas ruas e condescendência da imprensa. Seu terceiro mandato, entretanto, tem sido diferente, longe das características que o levaram a deixar o Planalto em 2010 com uma popularidade que beirava os 87%, Lula hoje enfrenta seus mais baixos índices de aprovação, com cerca de 46% e seu governo tem números ainda piores, de 41%.

Fato é que muitos se perguntam se ele perdeu a magia ou a capacidade de mobilizar apoios como no passado. Na verdade, estamos falando sobre uma série de fatores que somados provam esta tese, entretanto, existe um fato que raramente é considerado nesta equação, ou seja, que Lula jamais foi uma figura dotada de uma qualidade ímpar no campo da articulação, mas alguém que tinha em torno em si nomes que foram capazes de gerir seu capital político. Longe deles, Lula se tornou um político comum.

Neste terceiro mandato, Lula cometeu um dos erros mais prosaicos da política, aquele que mostra a principal fraqueza de um mandatário, ou seja, cercou-se de pessoas que apenas concordam com tudo que diz e opina, chamados na política americana de “yes man”. Estas pessoas servem apenas para aplaudir, porém jamais para ponderar, opinar, discordar e oferecer visões diferentes. Um erro comum, mas fatal nas esferas de poder.

Isto explica a guinada à esquerda depois de uma eleição que venceu pelo centro. Lula poderia ter construído um terceiro mandato de união nacional pelo centro político, algo que certamente redirecionaria o país da polarização em quatro anos. Sua aposta, contudo, foi no sentido oposto e os resultados começam a ser colhidos em uma onda crescente de impopularidade que pode levá-lo à primeira derrota eleitoral desde 1998.

Justamente pela falta de visões diferentes em torno de si, surgiu neste mandato um Lula em estado puro, apresentando um governo datado, ultrapassado, vacilante, fora de foco ou sintonia com as ruas e com os desafios internacionais atuais. Vemos programas serem reeditados, boas ideias desprezadas, um modelo superado de comunicação e uma administração refém de pautas que não dialogam com a sociedade e as demandas dos brasileiros. Lula governa para um país que somente ele acredita que ainda existe.

Ao redor de si, o Presidente não possui sequer um dos nomes que estavam na condução da política quando chegou ao Planalto. Alguns se afastaram de sua órbita cotidiana como Luiz Dulci e Gilberto Carvalho, muitos foram atingidos pelas operações contra corrupção, como José Dirceu e Antônio Palocci. Houve quem optasse pelo caminho da aposentadoria, como José Genoíno e alguns faleceram como Márcio Thomaz Bastos e Luiz Gushiken. Isto significa que todos aqueles nomes influentes e com acesso direto a Lula não circulam mais pelos corredores do Planalto. Hoje, o Presidente é cercado de uma plateia disposta a aplaudir e bajular, ao invés de possuir assessores e líderes políticos dispostos a construir e contribuir.

Lula é um líder político em decadência, alguém sem o viço de outro tempos, que deixou de cativar, inspirar ou influenciar as pessoas como antes. Talvez seja tarde demais para corrigir este erro. Hoje temos um Presidente refém de si mesmo.

A ameaça da China à democracia global

Michael Beckley & Hal Brands, Journal of Democracy, Janeiro 2023

Abstract

 Um regime chinês poderoso, mas ansioso, está agora engajado em um esforço agressivo para tornar o mundo seguro para a autocracia e para corromper e desestabilizar democracias. A promoção da democracia pode estar fora de moda na política externa dos EUA, mas a prevenção da democracia está muito no centro da estratégia chinesa hoje.

Desde os tempos antigos, as disputas entre grandes potências frequentemente envolvem disputas de ideias. A Guerra do Peloponeso não foi simplesmente um choque entre uma Esparta reinante e uma Atenas em ascensão, mas também colocou uma protodemocracia liberal e marítima que se via como a “escola da Hélade” contra um estado escravocrata militarizado e agrário. A ameaça ideológica que a França revolucionária representava para a ordem europeia era tão séria quanto a militar. Na preparação para a Segunda Guerra Mundial, potências fascistas e democracias se enfrentaram; durante a Guerra Fria, as superpotências dividiram grande parte do mundo ao longo de linhas ideológicas.

O entrelaçamento de ideologia e geopolítica não deveria ser surpreendente: no fundo, a política externa é como um país busca tornar o mundo seguro para seu próprio modo de vida. Muitos analistas aceitam que a política externa dos EUA é movida por impulsos ideológicos. Até mesmo os “realistas” radicais das relações internacionais admitem a importância da ideologia quando lamentam o domínio que as paixões liberais têm sobre a política de Washington. Curiosamente, porém, tem havido mais resistência à ideia de que pode haver um componente ideológico na grande estratégia do principal rival dos Estados Unidos — a República Popular da China (RPC). Pequim não está fazendo nenhum “grande esforço estratégico para minar a democracia e espalhar a autocracia”, escreve um importante sinólogo. Sua política externa é baseada em “decisões pragmáticas sobre os interesses chineses”. 1  Os realistas dizem que a China pratica  a Realpolitik  enquanto os Estados Unidos ignoram o conselho de John Quincy Adams de 1821 de “não ir para o exterior em busca de monstros para destruir”. Outros analistas sugerem que é uma distração ou mesmo uma “ilusão” enfatizar os aspectos ideológicos da rivalidade sino-americana em detrimento do desafio militar e económico de Pequim. 2

Na verdade, o inverso é verdadeiro: para entender o desafio chinês, precisamos entender suas dimensões ideológicas. Se Woodrow Wilson e seus seguidores queriam tornar o mundo seguro para a democracia, os governantes da RPC querem fazer o mesmo pela autocracia. Para eles, a autocracia não é simplesmente um meio de controle político ou um bilhete para o autoenriquecimento, mas um conjunto de ideias profundamente arraigadas sobre o relacionamento adequado entre governantes e as massas. Em seu discurso principal de outubro de 2022 no Vigésimo Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC) — durante o qual ele próprio foi empossado para um terceiro mandato como líder máximo, enquanto no último dia teve seu antecessor Hu Jintao escoltado sem cerimônia para fora da sala — Xi Jinping insistiu que “escrever constantemente um novo capítulo na Sinicização do Marxismo é a solene responsabilidade histórica dos comunistas chineses contemporâneos” e deixou claro que “a autoridade do Comitê Central do Partido” continuará a estar “no cerne da liderança no controle da situação geral”. Tudo no discurso depende do PCC permanecer como o único responsável por “desenvolver o socialismo com características chinesas”. 3

Essa crença na superioridade de um modelo chinês autocrático coexiste com uma profunda insegurança: a RPC é um regime brutalmente iliberal em um mundo liderado por um hegemon liberal, uma circunstância da qual o PCC extrai uma sensação de perigo generalizado e um forte desejo de remodelar a ordem mundial para que a forma particular de governo da RPC não seja apenas protegida, mas privilegiada. É por isso que um regime chinês poderoso, mas ansioso, está agora engajado em um esforço agressivo para tornar o mundo seguro para a autocracia e para corromper e desestabilizar democracias. A promoção da democracia pode estar fora de moda na política externa dos EUA, mas o que o acadêmico Jason Brownlee chama de “prevenção da democracia” está muito no cerne da estratégia chinesa hoje.

As fontes da conduta chinesa

De certa forma, a tentativa da China de primazia na Ásia e no mundo é um novo capítulo na história mais antiga da história: à medida que os países se tornam mais poderosos, eles se interessam mais em remodelar o mundo. Estados em ascensão buscam influência, respeito e poder; eles descobrem interesses vitais em lugares que estavam simplesmente além de seu alcance antes. Durante o final do século XIX e início do século XX, uma Alemanha em ascensão exigiu seu “lugar ao sol”; após a Guerra Civil, os Estados Unidos da América reunificados e economicamente ascendentes expulsaram seus rivais do Hemisfério Ocidental e começaram a exercer seu peso globalmente. Como escreveu o grande estudioso realista Nicholas Spykman, “o número de casos em que um estado dinâmico forte parou de se expandir… ou estabeleceu limites modestos para seus objetivos de poder foi muito pequeno, de fato”. 4  Dada a rapidez com que o poder da China aumentou nas últimas quatro décadas, seria muito estranho se Pequim  não  estivesse se afirmando no exterior.

No entanto, a China é movida por mais do que a lógica fria da geopolítica. Ela também está buscando a glória como uma questão de destino histórico. Os líderes chineses se veem como herdeiros de um estado chinês que foi uma superpotência durante a maior parte da história registrada. Uma série de impérios chineses reivindicaram “tudo sob o céu” como seu mandato e comandaram a deferência de estados menores ao longo da periferia imperial. Na visão de Pequim, um mundo liderado pelos EUA no qual a China é uma potência de segunda linha não é a norma histórica, mas uma exceção profundamente irritante. Essa ordem foi criada após a Segunda Guerra Mundial, no final de um “século de humilhação” durante o qual potências estrangeiras vorazes saquearam uma China dividida. O mandato do PCC é consertar a história, retornando a China ao topo da pilha.

E então há o imperativo ideológico. Uma China forte e orgulhosa ainda pode representar problemas para Washington, mesmo que um governo liberal-democrático tenha poder em Pequim. O fato de a China ser governada por autocratas comprometidos em suprimir implacavelmente o liberalismo em casa turbina o revisionismo chinês globalmente. Um estado profundamente autoritário nunca pode se sentir seguro em seu próprio governo porque não desfruta do consentimento livremente dado pelos governados; nunca pode se sentir seguro em um mundo dominado por democracias porque as normas internacionais liberais desafiam as práticas domésticas não liberais. “Autocracias”, escreve o estudioso da China Minxin Pei, “simplesmente são incapazes de praticar o liberalismo no exterior enquanto mantêm o autoritarismo em casa”. 5

Isto não é exagero. O infame Documento Número 9, uma diretiva política emitida há quase uma década no início da presidência de Xi, mostra que o PCC vê uma ordem mundial liberal como inerentemente ameaçadora. 6  “Como a China e os Estados Unidos têm conflitos de longa data sobre suas diferentes ideologias, sistemas sociais e políticas externas”, um documento militar chinês declarou na década de 1990, “será impossível melhorar fundamentalmente as relações sino-americanas”.  Por décadas, de fato, autoridades chinesas alegaram que Washington vem travando uma campanha deliberada e bem orquestrada — uma “Terceira Guerra Mundial sem fumaça”, nas palavras de Deng Xiaoping — para enfraquecer e subverter fatalmente o PCC. 7  Deng culpou os Estados Unidos por estarem por trás dos “chamados democratas” que ousaram protestar na Praça da Paz Celestial em 1989. 8

Mesmo quando os Estados Unidos se envolveram com a China, os líderes desta última detectaram uma conspiração para derrubar seu regime. Em 1998, o sucessor de Deng, Jiang Zemin, alertou seus colegas de que, independentemente de os Estados Unidos estarem tomando uma posição de “contenção” ou “engajamento” em relação à RPC, o verdadeiro objetivo de Washington era promover uma “conspiração política” para “dividir nosso país” e “mudar o sistema socialista de nosso país”. 9  Depois de Jiang, veio Hu Jintao, que falou ao seu Ministério das Relações Exteriores em 2003 sobre a “séria realidade de que as forças hostis ocidentais ainda estão implementando a ocidentalização e os projetos políticos divisionistas na China”. 10

Os líderes chineses estão errados se pensam que os Estados Unidos estão ativamente buscando derrubar o regime do PCC. Eles não estão errados, no entanto, ao pensar que um mundo enraizado em valores liberais é aquele em que seu próprio governo deve ser perpetuamente precário. Em um sistema internacional construído com base no respeito aos direitos humanos e na preferência pela democracia, governos que assassinam seus próprios cidadãos correm o risco de censura, ostracismo e punição — como aconteceu com Pequim após a Praça da Paz Celestial em 1989 e está acontecendo novamente hoje em resposta à brutalização da minoria uigur. Um sistema internacional em que as democracias são fortes, vibrantes e globalmente engajadas é aquele em que tendências subversivas tentarão continuamente estados governados por tiranos: em 1989, os manifestantes da Praça da Paz Celestial ergueram uma réplica da Estátua da Liberdade, enquanto aqueles em Hong Kong trinta anos depois agitaram publicamente bandeiras americanas e cantaram “The Star-Spangled Banner”. No que é e no que faz, uma democracia hegemônica ameaça o regime chinês.

A insegurança resultante tem implicações poderosas para a arte de governar de Pequim. Os líderes chineses sentem uma compulsão para tornar as normas e instituições internacionais mais amigáveis ​​ao governo iliberal. Eles buscam afastar influências liberais perigosas das fronteiras da RPC: na mente de Pequim, escreve Timothy Heath, uma “Ásia harmoniosa” apresentaria uma “ordem política moldada pelos princípios políticos chineses”. Os governantes em Pequim sentem que devem arrancar a autoridade internacional de uma superpotência democrática com uma longa história de levar autocracias à ruína. E à medida que uma China autoritária se torna poderosa, ela inevitavelmente busca fortalecer as forças do iliberalismo — e enfraquecer as da democracia — como uma forma de aumentar sua influência e reforçar seu próprio modelo. 11  A China está fazendo isso, além disso, em um momento em que o mundo, e sua distribuição predominante de poder ideológico, apresenta ao PCC tanto ansiedades agudas quanto oportunidades tentadoras.

Ansiedade e Oportunidade

No momento mais sombrio da Segunda Guerra Mundial, havia talvez uma dúzia de democracias no mundo. Ainda em 1989, havia o dobro de governos autocráticos do que democracias. Vinte anos depois, no entanto, as democracias superavam as autocracias em 100 para 78, e a parcela da população mundial vivendo sob autocracia havia caído pela metade. Da perspectiva dos EUA, o avanço global da democracia foi um dos desenvolvimentos mais esperançosos da era pós-1945. Da perspectiva dos líderes da China, no entanto, foi um sinal claro de que a ordem mundial liberal estava manipulada contra sua forma de governo e precisava ser mudada antes que destruísse seu regime.

De acordo com a narrativa de Pequim, o problema começou no início do período pós-guerra, quando os Estados Unidos exploraram seu domínio para injetar ideias liberais radicais em instituições internacionais. Por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948 da ONU foi modelada na Declaração de Direitos dos EUA. A DUDH afirma que todos os humanos nascem livres e têm o direito de derrubar governos que não respeitam essa liberdade. Nas décadas seguintes, Pequim assistiu com horror enquanto dezenas de nações, incluindo Coreia do Sul e Taiwan, evoluíram para democracias prósperas. O grupo global em expansão de democracias posteriormente usou força militar, sanções econômicas e uma série de organizações de mídia e direitos humanos para minar dezenas de regimes autocráticos — não apenas os de ditadores de lata, mas também a União Soviética e quase a própria RPC em 1989.

Embora os líderes da RPC tenham se irritado por muito tempo com essa pressão ideológica, ela era suportável enquanto a China desfrutava de uma economia em expansão e uma periferia estável. Quando o Produto Interno Bruto estava crescendo três vezes mais rápido do que a média democrática durante as décadas de 1990 e 2000, foi fácil para Pequim persuadir as pessoas em casa e no exterior de que o autoritarismo era melhor para a China, se não para outros países.

Mas agora, a economia da China está desacelerando, e o regime está sofrendo maior pressão interna — testemunhe os protestos em larga escala que eclodiram contra a política de zero covid de Xi em várias cidades e em dezenas de campi universitários no final de 2022. Pequim está enfrentando crescentes críticas e resistência internacionais em outras frentes também. Em todo o mundo, as visões negativas da China atingiram níveis nunca vistos desde o Massacre da Praça da Paz Celestial de 1989. Os taiwaneses estão mais determinados do que nunca a manter sua soberania de fato. O Japão está dobrando seus gastos com defesa e se preparando explicitamente para a guerra contra a China nesta década. Sob um novo governo democraticamente eleito, as Filipinas estão reforçando seus laços de defesa com os Estados Unidos. A Índia está concentrando forças na fronteira ocidental da China. A União Europeia recentemente rotulou a China como um “rival sistêmico” e suspendeu seu tratado de investimento com Pequim. Até mesmo a ONU, na qual a China ocupa vários cargos de liderança, divulgou recentemente um relatório declarando que Pequim pode ter cometido “crimes contra a humanidade” em Xinjiang. Abalroada por ventos contrários crescentes, a autocracia não é mais uma venda fácil para o PCC. Os cidadãos chineses estavam dispostos a abrir mão de direitos políticos quando suas carteiras e o status internacional de seu país estavam inchando, mas é uma questão em aberto se eles continuarão a fazê-lo sob condições mais duras. Essa questão é especialmente urgente no que diz respeito aos millennials da China, nascidos nas décadas de 1980 e 1990, que não conheceram nada além de ascensão econômica e mobilidade internacional.

Os governantes da China também entenderam há muito tempo o que os cientistas políticos provaram empiricamente: as autocracias geralmente caem em ondas, à medida que a atividade revolucionária em um país inspira revoltas populares em outros. 12  Um efeito dominó democrático derrubou regimes comunistas na Europa Central e Oriental em 1989. A autoimolação de um vendedor de frutas tunisiano no final de 2010 incendiou grande parte do mundo árabe. A lição é que uma revolução em qualquer lugar é uma ameaça à autocracia em todos os lugares. Xi Jinping sabe disso: não muito depois da Primavera Árabe, ele se preocupou em particular com o presidente Barack Obama e o vice-presidente Joe Biden que a China era um alvo de “revoluções coloridas” e vulnerável ao tipo de revolta que engolfava o Oriente Médio. 13

O PCC respondeu com repressão intensificada na última década — prendendo dissidentes, mobilizando forças de segurança, censurando informações e prevenindo a agitação popular. No entanto, a China agora é forte o suficiente para fazer mais do que apenas se agachar diante da pressão estrangeira. Xi acredita que o poder doméstico do PCC será aprimorado se o autoritarismo prevalecer e as democracias forem disfuncionais — colegas déspotas não punirão a China por abusos de direitos, e o povo chinês não desejará imitar o caos dos sistemas liberais. Ele acha que impedir revoltas contra o autoritarismo em outros países diminuirá as chances de tal revolta irromper na China. E ele acredita que silenciar os críticos no exterior limitará os desafios que o PCC enfrenta na China. Xi vê a reversão da democracia no exterior como parte de seu plano para proteger seu regime em casa.

Prevenção da Democracia

A RPC escreveu sua primeira estratégia formal de segurança nacional sob Xi, em 2014. 14  Enquanto a segurança do regime costumava ser uma das muitas prioridades do governo (embora a mais importante), agora é  a  prioridade. 15  Todas as outras questões — comércio, diplomacia, modernização militar — são complementos para manter o PCC no poder. Como resultado, cada questão é uma questão de segurança do regime. Uma guerra comercial com democracias ricas não é mais apenas um desacordo econômico; é um ataque ao estado chinês e um possível prelúdio para uma guerra armada.

Enquanto as administrações chinesas anteriores defendiam a “manutenção da estabilidade”, o foco sob Xi está na prevenção de ameaças. Documentos chineses comparam explosões populares a tumores cancerígenos que precisam ser extirpados rapidamente antes que se espalhem para órgãos vitais do estado. Ideologias que podem rivalizar com o comunismo, incluindo o liberalismo e o islamismo, são vistas como doenças infecciosas contra as quais a população da China deve ser imunizada. Como Sheena Chestnut Greitens demonstrou, essas metáforas médicas justificam mirar e “tratar” pessoas muito antes que elas apresentem sintomas ameaçadores. 16  A ilustração mais clara está em Xinjiang, onde a China prendeu extrajudicialmente mais de um milhão de uigures. 17  Mas a China está aplicando essa lógica preventiva além de suas fronteiras também.

Pequim gasta bilhões de dólares anualmente em um “kit de ferramentas antidemocrático” de organizações não governamentais, veículos de mídia, diplomatas, conselheiros, hackers e subornos, todos projetados para sustentar autocratas e semear discórdia nas democracias. 18  O PCC fornece armas, dinheiro e proteção contra a censura da ONU para outras autocracias, enquanto aplica sanções a defensores estrangeiros dos direitos humanos. Autoridades chinesas oferecem a seus irmãos autoritários equipamentos de controle de distúrbios e conselhos sobre como construir um estado de vigilância; o comércio, o investimento e os empréstimos da RPC permitem que esses ditadores evitem a condicionalidade ocidental em relação à anticorrupção ou à boa governança.

Pequim usa seus órgãos de mídia que abrangem o globo para apregoar as realizações do governo iliberal enquanto destaca as falhas e hipocrisias dos governos democráticos. A China trabalha com regimes autoritários companheiros, como o de Vladimir Putin na Rússia, para empurrar normas favoráveis ​​aos autocratas de gerenciamento da internet em instituições internacionais e órgãos de definição de padrões. Pequim também ajuda outros regimes iliberais próximos ou na Ásia Central a perseguir e reprimir exilados e dissidentes. Não menos importante, a China está travando uma campanha de coerção política e militar para desestabilizar Taiwan, uma nação florescente cuja própria existência refuta as alegações do PCC de que a cultura chinesa é incompatível com a democracia. O problema fundamental que Taiwan representa para a China, escrevem Andrew Nathan e Andrew Scobell, “vem de Taiwan simplesmente ser o que é — uma sociedade chinesa moderna que é economicamente próspera e politicamente democrática”. 19

Pode ser tentador descartar os esforços de prevenção da democracia da China como “política mundial como sempre”. Afinal, os autocratas têm conspirado para manter o liberalismo sob controle desde que os monarcas da Áustria, Prússia e Rússia se uniram para lutar contra a França Revolucionária há mais de dois séculos. Mas o ataque ideológico da China é especialmente ameaçador, por três razões.

Primeiro, o alcance global da China é mais penetrante do que o de qualquer potência iliberal anterior. Sua economia massiva e 1,4 bilhão de consumidores a armam com cenouras e porretes poderosos para silenciar a liberdade de expressão muito além de suas fronteiras. Austrália, Canadá, República Tcheca, Japão, Lituânia, Noruega, Filipinas, Coreia do Sul, Taiwan e Estados Unidos — além de dezenas de empresas privadas e indivíduos de nações democráticas — experimentaram recentemente a ira econômica da China. Em muitos casos, a punição foi amplamente desproporcional ao suposto crime. Por exemplo, a China aplicou tarifas altas em quase todas as principais exportações da Austrália depois que Canberra solicitou uma investigação internacional sobre as origens da covid-19.

Além de armas econômicas, a China ocupa cargos de liderança na ONU e em outras grandes instituições internacionais que dão a Pequim chances de dobrar a governança global em uma direção antiliberal. Por exemplo, quando Belarus violou normas internacionais ao forçar a queda de um avião que transportava um dissidente procurado em 2021, a China exerceu sua autoridade como chefe da Organização Internacional de Aviação Civil da ONU para proteger o regime brutal de Alyaksandr Lukashenka da censura. 20  E se a diplomacia e os incentivos econômicos falharem, Pequim pode usar sua marinha, agora a maior do mundo, e força de mísseis convencionais para coagir países a obedecer ou até mesmo para varrer democracias do mapa, como a China está ameaçando fazer com Taiwan.

Em segundo lugar, a campanha antiliberal da China capitaliza uma tendência global perturbadora: como relata a Freedom House, o autoritarismo se espalhou durante todos os anos desde 2006, enquanto a democracia recuou. Essa “recessão democrática” deu à China uma janela de oportunidade ideológica para promover uma visão de uma sociedade hierárquica e harmoniosa e uma crítica de um Ocidente desordenado e decadente. Em todo o mundo, a fé pública nas instituições democráticas caiu para níveis nunca vistos desde a década de 1930. O solo político amadureceu para o autoritarismo criar raízes, e a China, a Rússia e outros estados autoritários estão fertilizando essa planta antidemocrática com desinformação digital que seus propagandistas injetam nos feeds de mídia social de bilhões em todo o mundo. 21

O terceiro e mais importante fator que impulsiona os esforços da China é a revolução digital em andamento. 22  O PCC possui poder de coleta de dados e mensagens para rivalizar com o da Apple, Amazon, Facebook, Google e Twitter. 23  Ao combinar inteligência artificial (IA) e “big data” com tecnologias cibernéticas, biométricas e de reconhecimento facial e de fala, Pequim está sendo pioneira em um sistema que permitirá que ditadores saibam tudo sobre seus súditos — o que as pessoas estão dizendo e assistindo, com quem andam, do que gostam e não gostam e onde estão localizados em um determinado momento — e disciplinar cidadãos instantaneamente restringindo seu acesso a crédito, educação, emprego, assistência médica, telecomunicações e viagens, se não para caçá-los para formas mais medievais de punição.

Esta revolução tecnológica ameaça perturbar o equilíbrio global entre democracia e autoritarismo ao tornar a repressão mais acessível e eficaz do que nunca. 24  Em vez de depender de exércitos caros e potencialmente rebeldes para brutalizar uma população ressentida, um autocrata agora terá meios de controle mais insidiosos. Milhões de espiões podem ser substituídos por centenas de milhões de câmeras sem piscar. Tecnologias de reconhecimento facial podem classificar rapidamente feeds de vídeo e identificar encrenqueiros. Bots podem entregar propaganda personalizada para grupos específicos. Malware pode ser instalado em computadores por meio de aplicativos ou links aparentemente inócuos, e então hackers do governo podem invadir as redes de computadores de dissidentes ou coletar informações sobre suas operações. Essas informações, por sua vez, podem ser usadas para cooptar movimentos de resistência subornando seus líderes ou atendendo suas demandas mais inócuas. Alternativamente, as autoridades podem imprimir uma lista montada por IA de supostos ativistas e matar todos nela.

O gênio maligno desse “autoritarismo digital” é que a maioria das pessoas será aparentemente livre para cuidar de suas vidas cotidianas. Na verdade, porém, o estado estará constantemente censurando tudo o que veem e rastreando tudo o que fazem. Com o autoritarismo da velha escola, pelo menos se sabia de onde vinha a opressão. Mas agora as pessoas podem ser cutucadas e persuadidas por algoritmos invisíveis que entregam conteúdo personalizado para seus telefones. Em eras passadas, os autocratas tinham que fazer escolhas difíceis entre financiar esquadrões da morte ou desenvolvimento econômico. Hoje, no entanto, a repressão não é apenas acessível, mas também lucrativa, porque as tecnologias de “cidade inteligente” que permitem um controle social rígido também podem ser usadas para combater o crime, diagnosticar doenças e fazer os trens circularem no horário.

Essas tecnologias são o sonho de um tirano. Reconhecendo essa demanda, as empresas chinesas já estavam vendendo e operando sistemas de vigilância em mais de oitenta países em 2020. 25  À medida que o PCC se sente cada vez mais ameaçado em casa e no exterior, há todos os motivos para esperar que Pequim exporte o autoritarismo digital para mais longe e mais amplamente. Muitos países já o querem, e a China tem ferramentas poderosas para obrigar aqueles que não o querem. Quer acesso ao vasto mercado da RPC? Deixe a Huawei instalar os principais componentes da sua rede 5G. Quer um empréstimo chinês? Aceite a tecnologia de vigilância da RPC na sua capital.

À medida que mais governos fizerem parcerias com Pequim, o alcance do estado de vigilância da China aumentará. 26  As autocracias existentes se tornarão mais totalitárias, e algumas democracias irão migrar para o campo autoritário. Os conflitos internacionais provavelmente proliferarão — não apenas os de ideias, mas os de armas, pois, como ilustra a invasão da Ucrânia por Putin, a ditadura frequentemente se transforma em nacionalismo de sangue e solo e revanchismo violento. A crença liberal de que a democracia e a paz estão destinadas a se espalhar pelo mundo será derrubada. O mesmo acontecerá com o mito reconfortante de que a humanidade evoluiu além do ponto de atrocidades em massa, porque o autoritarismo digital não desloca gulags e genocídios; ele os possibilita. Quando as ditaduras aumentam a repressão digital, elas também se envolvem em mais torturas e assassinatos. 27  Computadores e câmeras que lidam com a vigilância cotidiana liberam os soldados rasos do regime para tarefas como limpeza étnica e espancamento de dissidentes até a submissão. Xinjiang, com suas cidades inteligentes e campos de concentração, oferece um vislumbre desse futuro terrível. 28

Proteção da Democracia

A ofensiva ideológica da China está, portanto, no cerne de seu esforço para remodelar a ordem global. Uma parte crucial da estratégia da China no mundo democrático, portanto, deve envolver a proteção de instituições democráticas contra ataques autoritários. Se  a promoção da democracia  tem má fama,  a proteção  da democracia está se tornando indispensável.

Esta campanha ideológica não implica buscar uma mudança de regime na China. A democracia pode eventualmente se consolidar naquele país, mas há pouca perspectiva disso em breve, e esforços ativos para desestabilizar o PCC podem ser contraproducentes e perigosos. Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos nunca tentaram realmente derrubar o governo soviético. Isso foi por preocupação de que isso pudesse desencadear a guerra quente que Washington esperava evitar. O mesmo princípio de cautela deve ser aplicado hoje. A proteção da democracia é uma estratégia essencialmente defensiva, embora em alguns casos exija táticas mais assertivas do que aquelas que os Estados Unidos e seus aliados têm estado dispostos a empregar até o momento.

Em sua essência, a proteção da democracia requer o que os planejadores militares chamam de “defender para a frente” — salvaguardar os sistemas democráticos enfraquecendo ativamente a capacidade de um oponente de danificá-los. 29  Os Estados Unidos devem fazer o que puderem para reforçar a democracia em casa e no exterior, mas a prioridade imediata deve ser abrir buracos na cortina de ferro digital que Pequim está desenhando em grandes áreas do globo. Se o mundo está de fato em um “ponto de inflexão” na luta entre democracia e autocracia, como Biden e Xi parecem pensar que está, uma América que permaneça na defensiva não fará a balança pender. Colocar “a casa democrática da América em ordem” é uma ideia maravilhosa, mas levará anos, se não décadas, e daria apenas ajuda indireta para deter a disseminação da autocracia no exterior. Formar uma aliança gigante de democracias é um objetivo digno, mas pode gerar debates intermináveis ​​em vez de ações decisivas. Em 2000, o governo Bill Clinton criou a “Comunidade das Democracias”, que, no final, incluía 106 países. Após anos de reuniões, sua única realização foi uma declaração insípida criticando o golpe militar de 2021 na Birmânia.

Em vez de construir mais uma organização em expansão ou remendar humildemente buracos nas defesas democráticas, os Estados Unidos deveriam levar a luta ao inimigo e mobilizar “gangues” rudes e prontas de aliados para degradar e deter as iniciativas de guerra política da China. O primeiro passo seria hackear sistemas autoritários digitais. Uma qualidade redentora dos estados policiais digitais é que eles têm uma miríade de pontos de falha. Qualquer computador ou capanga do governo é um ponto de entrada potencial para malware. Os hackers podem furtivamente alimentar “entradas adversárias” em sistemas de vigilância alterando alguns pixels em certas imagens, inserindo pontos de dados falsos ou inserindo código malicioso nos patches que os técnicos autoritários usam para consertar sistemas defeituosos. Os hacks podem permitir que notícias proibidas se tornem virais, enganar os sistemas de vigilância para ignorar a atividade dissidente e classificar erroneamente os leais ao regime como inimigos do estado.

Governos democráticos nem precisam atacar estados autoritários diretamente; democracias podem postar paródias online e deixar dissidentes ao redor do mundo usá-las como armas. E defensores da democracia não precisam interromper todos os regimes autoritários digitais — alguns erros de alto perfil podem ser o suficiente para diminuir a demanda pelos produtos de Pequim. Pense nisso como uma imposição de custo ideológica: o tempo, energia e dinheiro que a China terá que dedicar para consertar seu estado de vigilância doméstica serão tempo, energia e dinheiro que Pequim não pode gastar manipulando políticas democráticas no exterior.

Uma segunda tarefa vital é desacelerar a disseminação da tecnologia que permite a repressão. Em parte, isso significará produzir alternativas acessíveis aos produtos chineses de telecomunicações e cidades inteligentes. Essas alternativas podem incluir satélites de órbita baixa da Terra (como os mais de 3.000 satélites pequenos que compõem a rede Starlink) para fornecer banda larga global. Mais importante, isso também significará impedir que empresas dos EUA e aliadas transfiram certas tecnologias — como aquelas para reconhecimento avançado de fala e facial, visão computacional e processamento de linguagem natural — para regimes autoritários, bem como impedir que empresas estrangeiras envolvidas em repressão autoritária levantem capital nos mercados financeiros das democracias. 30  Durante a Guerra Fria, os governos ocidentais mantiveram o Comitê Coordenador para Controles Multilaterais de Exportação (Co-Com) para impedir que tecnologia avançada fosse vendida ao bloco soviético. Algo como a abordagem do Co-Com é adequado no que diz respeito à China. Washington e os aliados dos EUA já restringiram o acesso da RPC a semicondutores avançados, principalmente até agora por meio de novas regulamentações agressivas que o Departamento de Comércio dos EUA implementou em outubro de 2022. Embargos semelhantes serão necessários para prejudicar o estado de vigilância em expansão de Pequim. 31

Isso se relaciona a um terceiro imperativo — frustrar os esforços da China para expandir o alcance de sua internet autoritária. Uma maneira de fazer isso seria os Estados Unidos e seus aliados dividirem preventivamente a internet global criando um bloco digital no qual dados e produtos fluam livremente, excluindo a China e outros países que se recusam a respeitar a liberdade de expressão ou direitos de privacidade. Isso pode parecer drástico, mas pode ser necessário para combater o PCC, que atualmente desfruta do melhor dos dois mundos: ele administra uma rede fechada em casa (impedindo que cidadãos da RPC acessem sites estrangeiros e limitando o acesso digital de empresas ocidentais) enquanto também acessa seletivamente a internet globalmente para roubar propriedade intelectual, interferir em eleições democráticas, espalhar propaganda e hackear infraestrutura crítica. Esta é uma versão da era digital da infame Doutrina Brezhnev da União Soviética: o que é meu é meu, e o que é seu está em disputa.

Para combater essa exploração, Richard Clarke e Rob Knake propuseram formar uma “Internet Freedom League”, uma iniciativa que é melhor vista menos como uma aliança multilateral em expansão do que como uma espécie de união alfandegária digital. 32  Sob esse sistema, os países que aderirem à visão de uma internet livre e aberta permaneceriam conectados uns aos outros, enquanto os países que se opuserem a essa visão enfrentariam acesso restrito ou seriam excluídos. Todo o tráfego da web de não membros não seria bloqueado, apenas o tráfego de empresas e organizações que auxiliam e incentivam o autoritarismo digital ou o crime cibernético. Claro, o governo da RPC é um desses maus atores, então ele e as entidades que fazem suas licitações — sejam instituições governamentais ou empresas nominalmente privadas que estão profundamente ligadas ao estado chinês — seriam cortadas.

Quarto, uma maior cooperação entre democracias — econômicas e outras — diminuirá a capacidade da China de assustá-las e fazê-las silenciar punindo uma delas. A recente campanha da China contra a Austrália enfatizou isso. Em abril de 2020, Canberra pediu uma investigação internacional independente sobre as origens da pandemia de covid. Uma Pequim enfurecida aplicou tarifas altas sobre carvão, carne bovina, trigo, vinho e outros produtos australianos, ao mesmo tempo em que exigia que o governo australiano abafasse vozes domésticas “hostis” à RPC.

Para seu crédito, Canberra se recusou a ceder e lentamente encontrou mercados alternativos, em parte lançando uma campanha de relações públicas “combata o comunismo, compre vinho australiano”. O governo Biden informou às autoridades da RPC que as tensões bilaterais não diminuiriam se o PCC estivesse atacando os aliados dos EUA, e Washington prometeu fornecer à Austrália tecnologia nuclear para alimentar submarinos de ataque de ponta. A economia da Austrália sofreu um golpe, no entanto — e, desajeitadamente, empresas de outras democracias abocanharam parte da fatia de mercado resultante. Laços econômicos mais densos entre democracias e não democracias amigáveis ​​que temem a coerção chinesa, como Vietnã e Cingapura, podem cortar os custos de resistência futura. Ainda melhor seria se democracias ricas concordassem em infligir dor recíproca a Pequim por meio de contra-sanções. A China ainda poderia tentar censurar o discurso democrático em países estrangeiros, mas apenas ao custo de seu próprio crescimento econômico.

A China certamente se irritaria com essas medidas, mas até certo ponto isso é uma coisa boa, porque fornece oportunidades para incitar Pequim a erros estratégicos. Lembre-se do que aconteceu em março de 2021, quando os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido e o Canadá sancionaram quatro autoridades chinesas por abusos de direitos humanos em Xinjiang. As sanções foram tapas no pulso, mas desencadearam uma explosão autodestrutiva de “guerreiro-lobo”: Pequim desencadeou uma fuzilaria diplomática e sancionou autoridades e think tanks da UE; a UE respondeu congelando o pendente Acordo Abrangente sobre Investimento China-UE. Os Estados Unidos e seus aliados podem incitar a China de maneiras sutis que não correm o risco de guerra, mas provocam reações exageradas e tempestuosas por meio das quais Pequim se isola.

Estratégias de isca e sangramento, no entanto, exigem resiliência. Quando a mídia estatal chinesa ameaçou, em março de 2020, mergulhar a América em “um poderoso mar de coronavírus” negando-lhe produtos farmacêuticos, ela ressaltou a capacidade de Pequim de retaliar feio contra democracias que se recusam a seguir sua linha. 33  Um quinto requisito dessa estratégia, então, será desenvolver rapidamente redes de produção de mundo livre para recursos críticos que a China atualmente domina, incluindo minerais de terras raras e suprimentos médicos de emergência. A alternativa ao desenvolvimento proativo dessas redes é desenvolvê-las reativa e a um custo muito maior durante uma crise — como a Europa descobriu com sua transição forçada do fornecimento de energia russo devido à guerra na Ucrânia.

Um sexto aspecto da defesa avançada envolve lutar mais ativamente na guerra da informação. A estratégia da China envolve promover incansavelmente os supostos benefícios de seu próprio modelo, enquanto atiça as chamas da discórdia política em sociedades democráticas. Expor grupos falsos da sociedade civil ou veículos de mídia que são ferramentas de influência chinesa é obviamente vital. Igualmente importante, porém, é ser mais agressivo em virar o jogo contra Pequim, espalhando a notícia de seus abusos de direitos, crescentes problemas econômicos e sociais, corrupção desenfreada, práticas predatórias de empréstimos no exterior e outros crimes e deficiências do PCC. Os Estados Unidos acumularam muita experiência com tais esforços durante a Guerra Fria, quando instituições como a extinta Agência de Informação dos EUA disseram a verdade sobre o bloco soviético enquanto contestavam mentiras comunistas sobre o mundo livre. 34  Hoje, mensagens semelhantes podem não ressoar com líderes estrangeiros cleptocráticos que são financiados por Pequim — mas tais comunicações ajudarão a tornar o ambiente global de informações menos favorável à propaganda do PCC.

Sétimo, os Estados Unidos e seus aliados devem contestar mais efetivamente o terreno institucional, porque aqueles que governam os organismos internacionais do mundo escrevem as regras do mundo. Transformar organizações internacionais em ferramentas de entrincheiramento doméstico e influência global para regimes autoritários é uma estratégia de longa data do PCC. Pequim compra regularmente votos de estados-membros nessas organizações, que então elegem candidatos favorecidos pela RPC para liderá-los. Para deter a marcha da China em direção ao domínio institucional, os Estados Unidos devem aprender a reunir coalizões mutáveis ​​de países democráticos por trás de candidatos que defenderão os valores básicos do mundo livre. Isso aconteceu em setembro de 2022, quando Doreen Bogdan-Martin foi eleita secretária-geral da União Internacional de Telecomunicações da ONU.

Finalmente, os Estados Unidos precisam ajudar a proteger democracias que fazem fronteira com agressores autoritários. Defender nações vulneráveis ​​importa, principalmente porque a coerção autoritária bem-sucedida em um lugar pode encorajar ações perigosas em outro lugar. O principal campo de batalha hoje é a Ucrânia, com Taiwan em segundo lugar. Ao reforçar Taiwan com proteção militar e linhas de vida econômicas, Washington pode preservar uma alternativa ideológica potente ao PCC — e fortalecer uma coalizão de mundo livre que pode manter o mundo seguro para a democracia nas próximas décadas.

Este ensaio é uma adaptação do livro dos autores, Danger Zone: The Coming Conflict with China  (2022).

NOTAS

1. Jessica Chen Weiss, “Um mundo seguro para a autocracia? A ascensão da China e o futuro da política global”,  Foreign Affairs  98 (julho–agosto de 2019): 93–94.

2. Elbridge Colby e Robert D. Kaplan, “A ilusão ideológica: a competição da América com a China não é sobre doutrina”, Foreign Affairs,  4 de setembro de 2020.

3. “The Long and Short of the CCP Congress,” China Media Project, 16 de outubro de 2022,  https://chinamediaproject.org/2022/10/16/the-long-and-short-of-xis-political-report .  As palavras citadas são da versão curta do discurso de Xi, que pode ser baixada em chinês de um link nesta página e, em seguida, executada por um programa de tradução.

4. Nicholas Spykman,  Estratégia da América na Política Mundial: Os Estados Unidos e o Equilíbrio de Poder (Nova York: Harcourt and Brace, 1942), 20–22.

5. Minxin Pei, “Pragmatismo assertivo: ascensão econômica da China e seu impacto na política externa chinesa”, Departamento de Estudos de Segurança do IFRI, outono de 2006,  https://www.ifri.org/sites/default/files/atoms/files/Prolif_Paper_Minxin_Pei.pdf .

6. Suisheng Zhao, “O renascimento maoísta de Xi Jinping”,  Journal of Democracy 27 (julho de 2016): 85, www.journalofdemocracy.org/wp-content/uploads/2016/07/Zhao-27-3.pdf .

7. Citações de Christopher A. Ford,  China Looks at the West: Identity, Global Ambitions, and the Future of Sino-American Relations (A China olha para o Ocidente: identidade, ambições globais e o futuro das relações sino-americanas) (Lexington: University Press of Kentucky, 2015), 186; Samuel Kim, “Human Rights in China’s International Relations”, em Edward Friedman e Barrett L. McCormick, eds.,  What If China Doesn’t Democratize? Implications for War and Peace (E se a China não se democratizar? Implicações para a guerra e a paz) (Nova York: ME Sharpe, 2000), 130–31.

8. Citado em Rush Doshi,  The Long Game: China’s Grand Strategy to Displace American Order (Nova York: Oxford University Press, 2021), 52.

9. Doshi,  Jogo Longo, 54–55.

10. Doshi,  Jogo Longo, 56.

11. Timothy R. Heath, “O que a China quer? Discernindo a estratégia nacional da RPC”,  Asian Security 8 (março de 2012): 54–72.

12. Samuel P. Huntington,  The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century  (Norman: University of Oklahoma Press, 1993). Para dados, veja o Mass Mobilization Project,  https://massmobilization.github.io .

13. Chris Buckley e Steven Lee Myers, “Em tempos turbulentos, Xi constrói uma fortaleza de segurança para a China e para si mesmo”,  New York Times,  6 de agosto de 2022.

14. “O Comitê Central do PCC – Proposta Formulada para o 14º Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico e Social Nacional e Metas de Longo Prazo para 2035”,  www. xinhuanet.com/2020-10/29/c_1126674147.htm .

15. Jude Blanchette, “Segurança ideológica como segurança nacional”, CSIS, 2 de dezembro de 2020,  www.csis.org/analysis/ideological-security-national-security .

16. Sheena Chestnut Greitens, “Repressão preventiva: segurança interna e grande estratégia na China sob Xi Jinping”, ms. não publicado, 2021.

17. Sheena Chestnut Greitens, Myunghee Lee e Emir Yazici, “Contraterrorismo e repressão preventiva: a mudança de estratégia da China em Xinjiang”,  International Security  44 (inverno de 2019–20): 9–47.

18. Christopher Walker e Jessica Ludwig, “The Long Arm of the Strongman: How China and Russia Use Sharp Power to Threaten Democracies”,  Foreign Affairs,  12 de maio de 2021; Elizabeth. C. Economy, “Exporting the China Model”, Testemunho perante a Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China, 13 de março de 2020,  www.uscc.gov/sites/default/files/testimonies/USCCTestimony3-13-20%20(Elizabeth%20Economy)_justified.pdf .

19. Andrew J. Nathan e Andrew Scobell,  A busca da China por segurança (Nova York: Columbia University Press, 2012), 213.

20. Yaroslav Trofimov, Drew Henshaw e Kate O’Keeffe, “Como a China está assumindo o controle de organizações internacionais, um voto de cada vez”,  Wall Street Journal,  29 de setembro de 2020.

21. Michael J. Mazarr et al.,  Manipulação social hostil: realidades atuais e tendências emergentes  (Santa Monica: RAND Corporation, 2019); Jeff Kao, “Como a China construiu uma máquina de propaganda no Twitter e depois a soltou no coronavírus”,  ProPublica,  26 de março de 2020,  https://www.propublica.org/article/how-china-built-a-twitter-propaganda-machine-then-let-it-loose-on-coronavirus .

22. Veja os artigos na edição de janeiro de 2019 do  Journal of Democracy intitulados coletivamente “The Road to Digital Unfreedom”; veja também Richard Fontaine e Kara Frederick, “The Autocrat’s New Toolkit”,  Wall Street Journal,  15 de março de 2019.

23. Larry Diamond, “O caminho para a falta de liberdade digital: a ameaça do totalitarismo pós-moderno”,  Journal of Democracy  30 (janeiro de 2019): 22.

24. Tiberiu Dragu e Yonatan Lupu, “Autoritarismo digital e o futuro dos direitos humanos”,  Organização Internacional  75 (outono de 2021): 991–1017.

25. Sheena Chestnut Greitens, “Lidando com a demanda por exportações de vigilância global da China”,  Global China, abril de 2020,  www.brookings.edu/research/dealing-with-demand-for-chinas-global-surveillance-exports .

26. Alina Polyakova e Chris Meserole, “Exportando autoritarismo digital: os modelos russo e chinês”, Brookings Institution Policy Brief, agosto de 2019,  www.brookings.edu/wp-content/uploads/2019/08/FP_20190827_digital_authoritarianism_polyakova_meserole.pdf .

27. Andrea Kendall-Taylor, Erica Frantz e Joseph Wright, “Os ditadores digitais: como a tecnologia fortalece a autocracia”,  Foreign Affairs  99 (março–abril de 2020).

28. Ross Andersen, “O Panóptico Já Está Aqui”,  Atlantic,  setembro de 2020.

29. O Comando Cibernético dos Estados Unidos, por exemplo, adotou essa abordagem para proteger redes dos EUA. Veja Erica D. Lonergan, “Operationalizing Defend Forward: How the Concept Works to Change Adversary Behavior,”  Lawfare,  12 de março de 2020,  lawfareblog.com/operationalizing-defend-forward-how-concept-works-change-adversary-behavior .

30. Derek Scissors, “Limits Are Overdue in the US-China Technology Relationship”, Declaração ao Comitê Judiciário do Senado dos EUA, Subcomitê sobre Crime e Terrorismo, 4 de março de 2020.

31. Para uma lista de tecnologias críticas, veja Emma Rafaelof, “Unfinished Business: Export Control and Foreign Investment Reforms,” US-China Economic and Security Review Commission, Issue Brief, 1 de junho de 2021.

32. Richard A. Clarke e Rob Knake, “A Liga da Liberdade da Internet: Como reagir contra o ataque autoritário à Web”,  Foreign Affairs  98 (setembro–outubro de 2019).

33. Barnini Chakraborty, “China sugere negar medicamentos que salvam vidas para os Estados Unidos contra o coronavírus”, Fox News, 13 de março de 2020.

34. Hal Brands,  A luta crepuscular: o que a Guerra Fria nos ensina sobre a rivalidade entre grandes potências hoje  (New Haven: Yale University Press, 2022), 186–89

Michael Beckley is associate professor of political science at Tufts University and nonresident senior fellow at the American Enterprise Institute.

Hal Brands is the Henry Kissinger Distinguished Professor at the Johns Hopkins School of Advanced International Studies and senior fellow at the American Enterprise Institute. 

O sistema venceu no Congresso. Você gostou?

No Brasil, certas frases mudam de significado dependendo de quem as usa. Se a direita dissesse que “o Brasil é dos brasileiros”, ou Trump dissesse que “a América é dos americanos” já teríamos textos indignados na imprensa, colunistas denunciando a “xenofobia estrutural” e agências de checagem decretando que se trata de um discurso de ódio. Mas e quando a frase vem do governo Lula? Aí vale tudo.

O problema começa pela intenção do governo com esse boné. Segundo o ministro Alexandre Padilha é uma resposta ao icônico boné vermelho de Donald Trump, o Make America Great Again, usado por Bolsonaro. A ideia era atacar o fato de um patriota usar símbolos de outro país. Só que, ao invés de contradizer Trump, ele apenas fez uma cópia descarada da ideia.

Pior de tudo é que a versão petista veio exatamente no mesmo tom de azul do boné dos Irmãos Metralha, uma piada pronta.

O pior é a frase, que não diz nada e, ao mesmo tempo, diz muito. Se o objetivo era adesão popular, a frase “O Brasil é dos brasileiros” foi um tiro no pé. Primeiro, porque não significa nada em termos práticos. Segundo, porque se um político de direita dissesse isso, o rótulo de xenofobia viria na hora.

Afinal, o Brasil sempre foi um dos países mais acolhedores para refugiados e imigrantes, muitos dos quais se tornaram cidadãos plenos, trabalhando, contribuindo e se integrando ao país. Agora, do nada, surge um governo que decide criar uma divisão desnecessária.

Pior ainda: essa frase é um slogan usado por partidos de extrema direita na Alemanha. Se a intenção era se bancar o antifascista ou democrata, o governo Lula conseguiu o oposto: aproximou-se do tipo de nacionalismo que, se dito pelo adversário político, seria condenado sem hesitação.

Mas talvez o verdadeiro problema esteja na mentalidade que produz esse tipo de decisão política. O governo Lula tem se especializado em criar pautas artificiais, focadas mais na estética do que na realidade. Enquanto o país enfrenta crises reais, inflação alta e um governo paralisado pelo próprio fracasso, os estrategistas do Planalto decidem gastar tempo e dinheiro com um boné que ninguém pediu.

O que impressiona é que essa estratégia continua sendo usada como se ninguém percebesse a manipulação. A velha política se mantém ativa, encenando disputas e polarizações artificiais para manter sua base mobilizada. Enquanto isso, a população lida com a economia instável e a falta de perspectiva, mas pelo menos o PT tem um boné para distrair.

O curioso é que se alguém do governo Lula resolvesse produzir um boné com a frase “O trabalho liberta”, talvez ninguém se escandalizasse. O Brasil chegou a esse ponto.

Direita e esquerda: os dois polos da estupidez

Direita e esquerda reduziram-se, no Brasil, a dois polos de estupidez. Isso chegou a um nível tal que não parece haver mais vida inteligente em nenhum dos lados dessa militância.

Cada um dos polos ideológicos, claro, vai se julgar superior; direitistas reacionários, principalmente aqueles que adquiriram seus conhecimentos políticos via Olavo de Carvalho e Brasil Paralelo medirão seu próprio conhecimento por contraposição à educação doutrinária e militante predominantemente de esquerda, a qual chamam depreciativamente (com uma dose de razão) de educação Paulo Freire.

Em ambos os lados, porém, há mero verniz intelectual encobrindo vasta ignorância. E aqui não faço apologia a um eruditismo vão e pedante. Pelo contrário, penso que faz falta nos dias de hoje a simplicidade da vida comum, o desprezo cético por teorias e discussões inócuas.

Temos vivenciado uma contínua subordinação das mais diversas esferas da vida às exigências políticas. Mas não há pensamento onde só há ideologia e, paradoxalmente, a politização de tudo equivale à própria destruição da política.

Isso tende a provocar nas pessoas mais sóbrias e ponderadas uma saturação, uma hostilidade e desprezo pela política e suas questões.

O debate público passa a padecer, com isso, de uma fuga de cérebros: aqueles que poderiam contribuir com alguma palavra sensata rendem-se ao cansaço e ao tédio, enquanto os exaltados, os fanáticos, os parvos e os mal-intencionados alçam a voz, preenchendo ruidosamente todos os espaços públicos, das redações de jornais aos púlpitos das igrejas, das tribunas às cátedras universitárias, das redes sociais aos quadros do funcionalismo público.

Essa extensão da visão político-partidária-ideológica para instâncias nas quais a importância política está justamente no caráter apolítico do exercício de tais funções é perigosa.

Há décadas, no importante ensaio “Verdade e Política”, a pensadora Hannah Arendt já alertava que determinadas instituições públicas, embora estabelecidas e apoiadas pelos poderes, precisam estar ciosamente protegidas da influência e da pressão política.

A politização, por exemplo, do judiciário e das instituições de ensino, algo tão gritante no Brasil, é inegavelmente prejudicial à cultura democrática, embora os que politizam tais setores o façam, na maioria das vezes, em nome da democracia.

Outro setor seriamente afetado pela estupidificação ideológica, pela má-fé e pelo servilismo dos que se curvam ao poder em detrimento de suas precípuas funções é a imprensa.

Em artigo recente, o jornalista Felipe Moura Brasil analisou o problema do ativismo no jornalismo mostrando os prejuízos da ausência de distinção entre informação e juízo de valor:

“No mercado da comunicação, além da eventual indistinção entre setores noticiosos, analíticos e opinativos, há profissionais e ´especialistas´ que buscam dar ares de informação a seus juízos de valor, enviesando o noticiário e turbinando um dos maiores problemas do nosso tempo: a perda da base comum de realidade objetiva, que finca as discussões públicas em alicerces factuais”, escreveu o diretor de Jornalismo desse portal O Antagonista e da revista Crusoé.

No já referido ensaio, Hannah Arendt analisa essa confusão entre fato e opinião, assim como a hostilidade à verdade factual quando esta se opõe ao lucro ou ao prazer de um determinado grupo. Esse aspecto também é abordado no artigo de Felipe Moura, que denuncia o ativismo político autoritário que busca deslegitimar com ofensas e distorções as poucas fontes idôneas de conhecimento factual.

Hannah Arendt foi uma filósofa judia, que fugiu do nazismo e se estabeleceu nos Estados Unidos, tornando-se uma pensadora mundialmente reconhecida por ocasião da publicação de As origens do totalitarismo (1951).

Sua obra analisa não apenas as entranhas de uma sociedade que se precipitou no abismo totalitário, mas expõe também os resquícios de tendências totalitárias que permanecem em germe nas sociedades atuais.

Não apenas na sociedade mundial, mas também aqui, na sociedade brasileira, há uma atmosfera autoritária perigosa, um ar difícil de respirar, politizado demais. Os sinais de que estamos no caminho da servidão voluntária são numerosos.

Esse caminho se alarga mais toda vez que o influente militante da direita aponta o dedo para toda a esquerda, amaldiçoando-a e o influente militante da esquerda aponta o dedo para toda a direita, defenestrando-a, como se apenas ali, no espectro político que não lhe diz respeito, estivesse todo o perigo e todo o mal.

A demonização do adversário político serve aos propósitos dos autoritários e o pendor autoritário é ambidestro.

O Brasil está mergulhado em um caos social. A raiva, o rancor, a decepção, a frustração dos brasileiros será mais uma vez manipulada, instrumentalizada se não rompermos a bolha da ignorância e do fanatismo.

Ainda somos uma democracia. Uma democracia disfuncional, agonizante. Cabe a nós, porém, revigorarmo-nos como nação livre, plural e tolerante ou deixarmos o nosso país se enterrar de vez ao som da trombeta apocalíptica de qualquer discurso político demagógico de ocasião.

Foto: Sérgio Lima/Poder360

A complexidade da política

A política praticada como continuação da guerra por outros meios está sujeita a condições infensas a julgamentos morais de partida. Isso não quer dizer que os democratas devam abrir mão dos seus princípios morais. Mas quer dizer que, na política degenerada como luta contra inimigos internos ou externos (quer dizer, guerra), raramente os atores modulam seus impulsos e ações a partir de imperativos morais.

A política (essa política e qualquer política) lida com correlações complexas de forças, em configurações mutantes que são, em si, muitas vezes, contraditórias.

É o que aconteceu em Atenas, na época da invenção da primeira democracia: a intervenção dos autocratas espartanos em Atenas (inimigos figadais da democracia) acabou sendo decisiva para a deposição do tirano Hípias, sem a qual a reforma distrital de Clístenes (em 509 a.C.) não teria prosperado. E se ela não tivesse prosperado jamais teríamos ouvido a palavra democracia.

Vejamos, porém, dois exemplos mais recentes.

Exemplo 1 – O “centrão” no Brasil

No Brasil, se não fosse o chamado “centrão”, em boa parte fisiológico e corrupto, nossa democracia estaria em estado muito mais avançado de erosão (de vez que aquele “pântano” congressual resistiu às tentativas golpistas de Bolsonaro, assim como continua resistindo às investidas hegemonistas de Lula).

Por que? Ora, porque o “centrão” vive, por assim dizer, da política como negócio (é o seu ganha-pão) e não quer que uma força golpista consiga – alterando a natureza do regime – abolir ou restringir esse livre “mercado”. E também não quer que um “monopólio” se erija, com a prevalência de uma força hegemonista.

Resultado. No jogo político o “centrão” atua – objetivamente – como uma força democrática, mesmo que seus integrantes não sejam democratas.

Exemplo 2 – A ascensão mundial da extrema-direita

No mundo todo, se não fosse a ascensão de uma extrema-direita antissistema, o eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã et coetera) já teria conquistado um número muito maior de regimes eleitorais não-liberais, ensejando que governos populistas não-autoritários se tornem hegemônicos. É o caso dos governos populistas de esquerda, como os do México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, talvez Indonésia, etc. Isso para não falar dos governos populistas autoritários já alinhados ao eixo autocrático, como Cuba, Nicarágua, Venezuela, Angola.

Cabe esclarecer que o eixo autocrático – com exceção de Bharat (a nova Índia nacional-populista de Modi), cuja posição ainda é incerta, e também de Hungria, Turquia, El Salvador, Israel, Itália, EUA (a partir de 20/01/2025) e, talvez, Eslováquia – é composto, majoritariamente, por países que não são governados por forças políticas de extrema-direita ou de direita. Tirando Rússia e Bielorrússia (que não podem ser classificados adequadamente pelo esquema anacrônico esquerda x direita), temos China, Coreia do Norte, Irã e seus braços terroristas, Vietnam, Laos, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Angola etc. – ou seja, a imensa maioria de esquerda ou de regimes mais simpáticos à esquerda do que à direita. Forças populistas de extrema-direita ameaçam, ainda de fora dos governos, as democracias: Salvini (mais extremo do que Meloni, na Itália), Kaczynski e Duda (Polônia), Bolsonaro (Brasil), Farage (Reino Unido), Ventura (Portugal), Abascal (Espanha), Wilders (Holanda), Chrupalla e Weidel (Alemanha) e Purra (Finlândia) – nenhum desses está chefiando governos em 2025.

A esquerda quer esconder tudo isso dizendo que o principal (ou único) inimigo da democracia é a “internacional fascista” (que congrega seis, provavelmente oito ou, no máximo, dez governos). Sim, os regimes dominados por governos de extrema-direita são um perigo para as democracias, mas não são a única ameaça, nem a principal.

Forças de extrema-direita – objetivamente – impedem que governos populistas de esquerda consigam conquistar hegemonia sobre as sociedades que dominam. É contraditório porque essas forças pertencem ao eixo autocrático ou estão alinhadas a uma parte dele. Mas, por outro lado, sem a polarização que elas ensejam com as forças políticas populistas de esquerda, essas últimas também não se afirmariam (por exemplo, no Brasil, sem o bolsonarismo o lulopetismo perderia força para continuar se prorrogando no governo). Pode-se dizer que a polarização e a divisão que elas instalam nas sociedades é um elemento central da netwar atual, ou seja, da segunda guerra fria movida pelo eixo autocrático contra as democracias liberais.

Entretanto, em termos gerais, para o eixo autocrático, a divisão das sociedades democráticas é mais importante do que o predomínio de uma força política populista de esquerda ou de direita. Porque seu objetivo último é exterminar as democracias liberais, o que começa por cindir as sociedades democráticas. Mesmo assim, em algumas circunstâncias, as forças de extrema-direita (nacional-populistas ou populistas-autoritárias) impedem (ou dificultam) que as forças populistas de esquerda empalmem o poder alterando por dentro o “DNA” da democracia.

Isso não quer dizer que as forças populistas de extrema-direita sejam democráticas. Pelo contrário, elas são autocráticas. Mas, repetindo, quer dizer que, em certas circunstâncias, elas impedem que forças populistas de esquerda, que também não são democráticas, conquistem hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado por elas aparelhado, delongando-se no governo por tempo suficiente para alterar, por dentro, a natureza do regime democrático. Ainda que a polarização e a divisão das sociedades, introduzidas pelo choque entre dois populismos, impeçam que os regimes parasitados ascendam à condição de democracia liberal ou plena. Ou seja, impeçam (ou dificultem) a emergência de uma força política democrática-liberal capaz de fazer isso, quer dizer, de operar a transição de um regime eleitoral (uma democracia defeituosa ou apenas eleitoral) para uma democracia liberal.

Para entender essa complicada configuração é preciso perceber que as forças políticas de extrema-direita não são propriamente uma alternativa estratégica (positiva). A rigor elas não têm estratégia a não ser destruir o sistema tal como está configurado e funciona. Sua ascensão corresponde a uma revolução (conquanto reacionária) e só é possível porque a democracia representativa entrou em crise. E porque, como causa e ao mesmo tempo em consequência desse declínio democrático, o número de agentes democráticos decaiu para níveis subótimos, insuficientes para fermentar a formação de uma opinião pública democrática.

Mas não fosse o choque que elas provocam nas democracias em crise, o sistema tenderia a se reciclar, passando a se estruturar e a funcionar em estado larvar, mais imune às mudanças exigidas pela continuidade do processo de democratização. Sem um choque desse tipo as democracias que não sucumbissem à autocratização, poderiam paralisar seus processos de democratização.

O establishment democrático “tradicional” (se se puder falar assim) não está preparado para, por si só, sair da crise da democracia ou superá-la mantendo-se como está (na base do “conservadorismo democrático”: da defesa das velhas instituições, da preservação dos atuais mecanismos de freios e contrapesos, da vigência de direitos políticos e liberdades civis como até então foram concebidos e praticados). Em poucas palavras: a democracia que temos não está mais conseguindo configurar ambientes favoráveis à emergência das democracias que queremos.

Essa é a crise. O establishment democrático tradicional, deixado a si mesmo, tende a se manter conservadoramente. Em certo sentido, a democracia não está dando conta de defender a democracia. Porque defender a democracia não é apenas mantê-la e sim seguir adiante, o que nos remete à metáfora da bicicleta (parou de pedalar cai) – o que já é assunto para outro artigo.

Reconhecer que a ascensão da extrema-direita é uma revoluçãonão tem a ver com aprovar esse movimento avesso à democracia liberal e contrário aos direitos (e valores) humanos (ou humanizantes). Reconhecer que as forças populistas de esquerda que se opõem à extrema-direita não são democráticas por causa disso – nem menos perigosas para as democracias liberais – é fundamental para defender a democracia, sobretudo se essas forças se alinham ao eixo autocrático.

E, mesmo sabendo disso, algumas vezes os democratas têm que apoiar um candidato de uma força populista (contra-liberal) de esquerda para evitar a chegada ao governo ou a permanência nele de um candidato de uma força populista (iliberal) de extrema-direita. Foi o que aconteceu no Brasil em 2022, na opção por Lula para impedir a reeleição de Bolsonaro. Não que Lula (hegemonista), no médio ou longo prazos, fosse menos perigoso para a democracia liberal do que Bolsonaro (golpista). Mas a conquista de hegemonia é um processo longo, que dá mais tempo para as forças democráticas-liberais se organizarem do que um golpe de Estado, fulminante no curto prazo (se tivesse sido bem-sucedido – o que, no caso da tentativa bolsonarista ter se concretizado, é para lá de duvidoso).

Eis a complexidade da política. Os democratas não podem operar apenas com as forças boas. É impossível fazer política sem os adversários ou, no caso da política degenerada como guerra, sem os inimigos. Pessoas que têm uma apreensão religiosa da política (mesmo que seja a de uma religião laica como o marxismo) e pessoas que querem tomar a política seguindo imperativos morais, na partida e na chegada, tentando conformá-la à ética, dificilmente entenderão isso.

A queda da categoria “extremista”

Os democratas comemoram a queda do governo Assad.

Os tolos, os analfabetos democráticos e os infectados pela realpolitik, dizem: “Depois do Assad virão os extremistas. Vai piorar”.

Ora, isso pode acontecer mesmo. Mas é difícil. Veja por quê.

A dinastia Assad não era extremista, no sentido exato do termo: não queria romper as regras do jogo, não queria derrubar o regime. Só que o jogo desse regime, mantido há meio século por Hafez e Bashar, era tenebroso: ditatorial, sanguinário, assassino. 

É improvável que o HTS e outros rebeldes extremistas, se instalando no poder, consigam chegar perto das 800 mil pessoas que sucumbiram sob os governos dos carniceiros Assad (pai e filho). 

Sim, vejam a resposta do Grok, IA do X:

“Sob o governo de Hafez al-Assad, que governou a Síria de 1971 até sua morte em 2000, estima-se que cerca de 300.000 pessoas foram mortas, particularmente durante eventos como a repressão à Irmandade Muçulmana na década de 1980, incluindo o massacre de Hama em 1982.

Sob o governo de Bashar al-Assad, desde que assumiu o poder em 2000, a guerra civil que começou em 2011 resultou em um número significativamente maior de mortes. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH) reportou que até março de 2021, o conflito havia causado a morte de pelo menos 388.652 pessoas, com uma estimativa total de quase 500.000 mortes até 2021.

Portanto, combinando as estimativas, pode-se dizer que sob os governos de Hafez e Bashar al-Assad, o número total de mortes pode chegar a aproximadamente 800.000 pessoas, considerando os dados disponíveis e as estimativas de mortes em contextos de conflito e repressão”.

Isso é mais uma evidência de como a categoria “extremista” é inadequada. Ditadores não extremistas podem causar mais prejuízos à humanidade do que rebeldes extremistas

Bastam dois exemplos. A rigor, Stalin e Mao não eram extremistas – não depois que chegaram ao poder. 

Durante o governo Stalin morreram 10 a 20 milhões de pessoas por execuções diretas (durante a Grande Purga dos anos 1930, em campos de trabalho ou Gulags), por fome (especialmente durante a Holodomor na Ucrânia entre 1932-1933, onde milhões pereceram) e por deportações forçadas e outras formas de repressão.

Durante o governo de Mao Tsé-Tung entre 30 a 45 milhões de pessoas foram mortas por fomes (principalmente no Grande Salto Adiante, onde políticas agrícolas desastrosas levaram a uma das piores fomes da história humana), execuções e perseguições políticas (durante a Revolução Cultural e outras campanhas, muitos foram mortos ou morreram devido à tortura ou condições de trabalho nos campos de reforma) e em campanhas de repressão (como as campanhas “Cinco Antis” e “Três Antis”).

Está simplesmente errado dizer todo mal que assola a humanidade vem dos “extremistas”. Putin não é extremista. Xi Jinping não é extremista. Seus alinhados nas democracias parasitadas por populismos, como Obrador e Cláudia, Manuel e Xiomara, Petro, Evo e Arce, Lula e Ramaphosa, não são extremistas. E, no entanto – juntamente com outras ditaduras, como a de Canel, de Maduro, de Ortega e Murillo, de Kim, de Khamenei e Assad (até ontem) – compõem hoje o eixo autocrático: a maior coalizão antidemocrática (contra as democracias liberais) já articulada no planeta em toda a história.

Então estamos “comemorando” não apenas a queda da brutal ditadura de Assad, mas a queda da noção de “extremismo” como categoria de análise.